Parece que já se acalmaram as reacções à receita da bifana de Gordon Ramsay. Mas todas as críticas que encontrei foram de ordem sobretudo gastronómica. Não me deparei com nenhum comentário político. É pena e merecia, porque se sabe que o nosso espectro político é composto nas suas alas pela esquerda caviar (nomeadamente o Bloco de Esquerda e o Livre) que se complementa, do outro lado, com a direita bifana (tradicionalmente o CDS e agora o Chega). Pergunta-se então: onde é que cabe então esta nova bifana imaginada pelo cozinheiro inglês?... Alguém me explicou: aquilo que vemos na fotografia abaixo é a tradicional bifana portuguesa só que enriquecida com os fundos da bazooka que António Costa nos anda a prometer que está sempre para chegar! Não sabendo muito bem o que fazer ao dinheiro, investe-se na bifana. Pensando assim, até é caso para nos queixarmos que até esta bandeira da bifana o Costa quer roubar à direita!...
31 agosto 2021
A NOTÍCIA NA SUÉCIA QUE SE PODERIA TRANSFORMAR NUM ESCÂNDALO SE FOSSE NOUTROS PAÍSES
Dada como originária de Estocolmo, na Suécia, esta notícia de 31 de Agosto de 1961 explica-se a si própria, lendo-a. Falta de alojamento para os estudantes da Universidade de Lund levou a que se tivesse de improvisar recorrendo a antigas carruagens-cama dos caminhos de ferro. E a situação manter-se-á durante todo o ano lectivo. Acrescente-se que, quanto ao seu prestígio, a Universidade de Lund é a segunda universidade mais antiga da Suécia, foi fundada em 1666. Oriunda da Suécia, esta notícia é apenas uma notícia. Se fosse originária de tantos outros países, tinha todo o potencial para se tornar num escândalo: como é que o governo sueco - a universidade é pública - deixou que se chegasse a esta situação? Aos suecos não lhes dava para esse género de queixas e contestações - afinal, as maravilhas da social-democracia nórdica também assentavam em importantes factores subjectivos.
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30 agosto 2021
OS DEFENSORES DA «DOUTRINA ANTÓNIO MOURÃO»
«Oh tempo... Volta p'a trás... Traz-me tudo o que eu perdi...» O entrevistado abaixo vai fazer 52 anos em Dezembro e sempre me deu a impressão, em conjunto com as suas célebres promessas de "porrada" e com o recurso a uma ironia que aprecio, que era alguém com ambições políticas no PSD. Um percurso que eu tenho seguido com interesse. Afinal, por esta entrevista, parece que não. Ou então, se calhar ainda acha que é muito novo... e que o tempo - e o PSD - ainda pode(m) voltar para trás. Se me querem fazer acreditar que o retorno de Pedro Passos Coelho é a melhor solução que o PSD tem para oferecer, então o PSD não têm solução alguma.
Deixei de acreditar na doutrina António Mourão há 38 anos, quando foram chamar Otto Glória, a glória do Mundial de 66, para porem à frente da selecção nacional: o regresso ao passado terminou com um 5-0 da União Soviética (27 Abril 1983). Contudo e pior do que no futebol, Passos Coelho não foi nenhum Eusébio. Quanto a sebastianismos, porque as opiniões são avulsas e as memórias são curtas, apetece-me recordar a do companheiro de José Eduardo Martins que, há oito anos, dizia a Pedro Passos Coelho que «ele estava a enterrar o país». E eu até achava que ele tinha razão!, o anónimo militante da distrital do Porto do PSD, que esse, só dessa vez deu na televisão e nem chegou a ser entrevistado depois para os jornais...
Adenda: eu gostaria de receber uma bonificação cada vez que isto acontece. Um video permanece desinteressante e ignorado, como que esquecido, no Youtube durante anos. Alguém - neste caso eu - o recupera e lhe dá contexto e interesse e, pelos vistos, promoção. Não dura um mês até descobrirmos que foi entretanto apagado... Há casos em que posso atribuir o gesto ao desagrado do autor original em descobrir o seu video tratado informativamente ao contrário do que desejara. Mas aqui essa questão nem se põe, quem publicou o video não gostava mesmo da conduta do antigo 1º ministro, só resta mesmo o incómodo para um certa memória hagiográfica da passagem de Pedro Passos Coelho pelo poder... e estas coincidências.
ALEX SALMOND É UM PORCO MAS NÃO É UM CRIMINOSO
Para quem não conheça os preâmbulos das vicissitudes associadas a Alex Salmond, antigo chefe do governo regional escocês e ex-líder do partido nacionalista local (SNP), sugiro-lhe este artigo, já que não é muito comum acompanhar-se por cá a vida política escocesa. O folhetim, que começou em finais de 2014, teve este fim de mês mais um episódio com a edição deste livro acima, que o Times publicou um extracto para o qual escolheu o significativo título: «Hoje ele não está um porco chateado... é apenas um porco nojento». A frase terá sido retirada de uma mensagem de uma assessora de Salmond... Pelos vistos, o que o novo livro procura demonstrar de maneira categórica é que Alex Salmond não gozava de qualquer popularidade junto daqueles que trabalhavam mais proximamente com ele - especialmente as mulheres... O problema é que, para conferir gravidade política ao assunto, o comportamento javardo de Alex Salmond foi tratado originalmente como se de um delito criminal se tratasse. Resultado: Alex Salmond acabou por ser absolvido em 12 acusações de tentativa de violação e de assalto sexual, num julgamento em que, significativamente, o júri foi composto por oito mulheres e cinco homens. Um resultado que o réu veio depois a utilizar para se vitimizar e tirar com isso vantagem no campo político. O assunto volta à baila. Apesar de não o ter lido, este livro parecer-me-á uma tentativa honesta para recolocar o caso de Alex Salmond nas suas devidas proporções: o homem é um porco mas não é um criminoso. Ser-se um porco é certamente muito censurável do ponto de vista político, mas não vale a pena forçar as acusações para as arrastar para o foro penal, conferindo-lhes uma gravidade mediática que depois se vem a verificar, em julgamento, que não têm. Espero que este episódio seja o percursor de um regresso do tema dos assédios e correlacionados a propósitos mais razoáveis do que os excessos que nos últimos anos foram desencadeados a pretexto da eclosão do movimento #MeToo: tudo era grave, tudo era crime. As vítimas eram sobreviventes, um termo que insulta as vítimas do Holocausto onde aí, de facto, se sobrevivia. Agora, é saudável que, daqui para diante e em substituição da histeria da indignação, a opinião publicada faça a distinção necessária e pertinente entre, por exemplo, as acusações contra o governador Cuomo e as que pesam sobre o príncipe André de Inglaterra. Politicamente, Cuomo é um alvo e André não é. O interesse em enterrar a carreira política do primeiro comparar-se-á com a mera coscuvilhice a respeito da vida privada do segundo. Mas as acusações que pendem sobre André são - essas sim - do foro criminal. É chato para com o príncipe, o homem até é bem parecido ao contrário do Salmond, mas isso de andar a dormir com menores é ilegal...
A PROPÓSITO DE CONGRESSOS SOCIALISTAS...
...lembrei-me de evocar este, que se realizava em Paris a 30 de Agosto de 1946, o 38º Congresso nacional dos socialistas franceses, para uma eventual comparação com a montra e o resto do evento que teve lugar este fim de semana em Portimão. Como se pode ler acima a direcção cessante passou por um mau bocado, com o seu relatório político a ser rejeitado e com a consequente demissão colectiva do directório do partido. Eram tempos em que aconteciam coisas nos congressos. O que a notícia não diz, mas que aqui vale a pena contar, é que em alternativa circulava pelo congresso uma moção encabeçada por Guy Mollet (que sairia do congresso como dirigente máximo do partido e que viria a ser um futuro primeiro-ministro francês, em 1956) militava por «uma recentragem do partido a respeito das noções de "socialismo científico", de "materialismo dialéctico" e de "luta de classes"». Era a ala esquerda do partido a fazer das suas. Agora, imaginar documentos com qualquer daquelas expressões durante o 23º Congresso dos socialistas portugueses, mesmo se apresentadas pela facção esquerdista de Pedro Nuno Santos, dá apenas vontade de rir a bandeiras despregadas...
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29 agosto 2021
VIGARICE INFORMATIVA
Um exemplo canónico da manipulação da opinião daqueles leitores que só lêem os títulos: o conteúdo da notícia desmente rotundamente o que consta do título. Apenas dois filhos do falecido senador Robert Kennedy (e ambos destacados pela referência ao seu nome) se mostraram favoráveis à libertação do assassino do seu pai. Há outros seis (e esses já não têm direito a serem nomeados...) emitiram um comunicado conjunto mostrando-se contrários à decisão. Porém, quem ler apenas o cabeçalho fica com a impressão oposta. Pode não ser aquilo que os jornais gostam de contar para encantar os seus leitores mas é a Verdade. Adulterá-la chama-se vigarice informativa. Tratando-se de um assunto americano, é mais do que provável que a adulteração tenha sido na origem, mas também assim se percebe o quanto estes trabalhos de tradução - do inglês para o português - são de uma mediocridade passiva.
CAMARADAS, AQUILO DO «SOCIALISMO REAL» DEU O «ESTOIRO»
29 de Agosto de 1991. O Comité Central do PCP publica uma extensa «resolução» tentando salvar o que fosse possível da ziguezaguiante conduta que os orgãos directivos do partido haviam adoptado durante a tentativa de golpe de Estado que ocorrera na União Soviética dez dias antes. Por uma vez, aquele que era considerado um dos partidos comunistas mais seguidistas do Ocidente e arredondara um texto onde se demarcara da ortodoxia canónica do centralismo democrático (a tal «primeira nota», que agora precisava «ser de novo analisada»...). Mas isso era apenas o aspecto superficial do problema. Descontando esses detalhes bizantinos do refraseamento ideológico, reinterpretando o que fora escrito para ser interpretado de maneira oposta, a verdade nua e crua é que em consequência do gesto dos conservadores do partido soviético, o imperialismo russo, que fora a causa que providenciara a força material do movimento comunista internacional durante décadas, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, mostrava-se agora nas vascas da agonia... e com ele a importância doméstica do PCP. Por coincidência e nesse mesmo dia, era anunciada a dissolução do partido comunista da União Soviética (PCUS).
28 agosto 2021
O GAJO QUE COSTUMA IR PARA A ENTRADA DOS CONGRESSOS DO PS DIZER UMAS COISAS GIRAS AOS JORNALISTAS
Estas são imagens a recordar a presença de Sérgio Sousa Pinto à entrada do 21º Congresso do PS em Lisboa em Junho de 2016. Não posso assegurar que Sérgio Sousa Pinto fosse congressista acreditado no referido congresso (possivelmente sim, por inerência de algum cargo). Também não posso assegurar se o mesmo Sérgio Sousa Pinto terá chegado a intervir nos trabalhos do referido congresso, discursando (ninguém está interessado em compilar e publicitar os trabalhos - apenas o discurso de consagração do chefe: uma hora de discurso!). Nem consigo saber o que eventualmente Sérgio Sousa Pinto poderá ter dito no local previsto - o palanque - para que os militantes dêem as suas opiniões. Provavelmente não terá dito nada, porque tudo o que Sérgio Sousa Pinto diz é material jornalístico de primeira, e teria sido aproveitado nessa eventualidade. Como aliás se constata pelas fotografias insertas: uma pessoa que tem a verve de Sérgio Sousa Pinto é disputada desde a sua chegada a cotoveladas de microfone por toda a comunicação social que se aglomera à porta do pavilhão onde decorre o evento. É aí - à entrada - que acontecem as coisas que interessarão a Sérgio Sousa Pinto, não propriamente lá dentro, onde as centenas de compenetrados militantes socialistas presentes nem perceberão a inteligência clarividente daquelas coisas que ele costuma dizer... Estou com curiosidade de saber se ainda iremos assistir a uma cena parecida agora no 23º Congresso do PS em Portimão, quando entretanto Sérgio Sousa Pinto se guindou ao estrelato do music-hall opinativo na televisão e quando antecipo que é capaz de haver uma certa dificuldade de compatibilizar as duas agendas (o programa da TVI passa aos Sábados à noite)... Mas estou com muita vontade que haja cena - depois da palhaçada da promoção da montra de luxo dos sucessores de António Costa, acho muito bem que o PS conte com Sérgio Sousa Pinto para que haja alguém que mande uma pedrada a partir a vitrine da montra...
27 agosto 2021
EVOCAÇÃO DO JORNALISMO DE HÁ CEM ANOS, ANTES DA ERA DOS CABEÇALHOS
27 de Agosto de 1921. Ao fim da tarde do dia anterior, o governo, que era presidido por Barros Queiroz, apresentara a sua demissão depois de três meses de governação e apesar de umas eleições que entretanto vencera (embora com uma maioria muito frágil). Mas quem queira procurar o destaque da crise política na primeira pagina da edição do jornal do dia seguinte é esta sobriedade que vai encontrar, já que os destaques foram por mim acrescentados. Isto não quer dizer que nessa altura as crises políticas fossem menos palpitantes do que hoje (sussurava-se que Barros Queiroz iria ser reconduzido ou então que o seu sucessor poderia ser António Granjo...), o que quero realçar era que o seu acompanhamento pela comunicação social era menos histriónico.
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26 agosto 2021
A REVOLTA DE 26 DE AGOSTO DE 1931
26 de Agosto de 1931. Eclodia em Lisboa e nas regiões circundantes um pronunciamento militar contra a Ditadura. A coreografia foi a tradicional de todas estas revoltas: tropas de Metralhadoras 1, de Artilharia 3 e de Caçadores 7 saíram, acompanhadas de civis a quem haviam distribuído armas - daí a advertência explícita no cartaz acima. A elas se opuseram tropas de Infantaria 1, Cavalaria 2, Artilharia 1 e Caçadores 5, complementadas - sobretudo - por destacamentos da GNR, que foi o corpo que se destacou no domínio da revolta. E depois foram trocar tiros para locais que já se convencionara ser importante ocupar nestas ocasiões: a Rotunda, o Largo do Rato, etc. A novidade é que, desta vez, os insurrectos contavam com aviação. Porém, quando quiseram bombardear os seus objectivos, num forte em Almada, falharam-no e acabaram acertando em civis que estavam no largo contíguo, matando três.
Aliás, quando a revolta foi dominada - ao fim de 9 horas - e quando depois se procedeu ao apuramento do número e identificação das vítimas - 40 mortos e cerca de duas centenas de feridos - uma apreciável percentagem era composta por civis, tivessem eles participado directamente na revolta ou fossem apenas meros transeuntes que haviam sido apanhados pelos combates. Desta vez, a oficialidade que encabeçara o movimento virá a ser exilada, mas para mais longe do que era tradicional, desta vez foi para Timor, do outro lado do mundo. Sobretudo, o que se notava na opinião publicada, mesmo a que não era particularmente afecta à Ditadura como era o caso do Diário de Lisboa, era uma saturação («O país não quere (sic) mais revoluções») com todos esses revolucionários profissionais, que, mais do que oficiais, eram políticos que se haviam especializado em pronunciamentos militares, e que não queriam mudar de ramo.
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25 agosto 2021
A RENÚNCIA DO PRESIDENTE JÂNIO QUADROS
25 de Agosto de 1961. Jânio Quadros, o presidente do Brasil, renúncia ao cargo, sete meses apenas depois de ter tomado posse. «Ao Congresso Nacional. Nesta data, e por este instrumento, deixando com o Ministro da Justiça, as razões de meu a(c)to, renuncio ao mandato de Presidente da República. Brasília, 25-8-61.» lê-se na missiva, complementada pela carta contendo as razões da decisão. A razão imediata estaria associada às reacções críticas da ala político-militar do regime a uma condecoração que Jânio Quadros conferira a Ernesto «Che» Guevara no dia 19 (acima). Mas esse eram apenas os aspectos folclóricos da luta política doméstica. Na verdade, Jânio Quadros - que se celebrizara durante a campanha eleitoral por empunhar uma vassoura para varrer a corrupção - quando no cargo presidencial depressa atingira um impasse diante dos poderes que domina(va)m o Brasil. Jânio Quadros era uma excrescência na política tradicional brasileira: não era fotogénico, nem simpático, não fazia parte de um dos tradicionais clãs brasileiros, não tivera padrinhos, não era dono de jornal, não estava associado a um grupo económico, não era particularmente bem quisto entre os americanos, nem entre os soviéticos. E sobretudo parecia, naquela época, incorruptível. Talvez por isso vencera as eleições presidenciais com uma vantagem de 15% sobre o opositor. Embora, naquele sistema presidencialista, decalcado do norte-americano, isso depois pudesse não se concretizar em nada de substantivo quanto à capacidade executiva. Terá sido o sentimento de impotência que levou Jânio Quadros a decidir-se a renunciar. Ou então há quem especule que se tratou de uma manobra política que lhe correu mal. De qualquer maneira, o efeito foi o de uma bomba! Como acontece nestes casos - estou-me a lembrar da renúncia em Portugal do presidente Manuel Teixeira Gomes em 1925 ou a de Charles de Gaulle em França em 1969 - tanto a cobertura noticiosa imediata do acontecimento, como depois as resenhas históricas que se escrevem a esse respeito, nunca conseguem lidar de forma confortável com a decisão do(s) protagonista(s). As regras do jogo desejam-se tão claras que alguém que mostra desapego ao poder é como uma nota desafinada na narrativa melódica.
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24 agosto 2021
«O PRIMEIRO DIA DE APLICAÇÃO DO DECRETO SOBRE O CONSUMO DE GASOLINA»
24 de Agosto de 1941. Domingo. Por causa da (segunda) guerra (mundial) entra em vigor um regime restritivo para a circulação de viaturas automóveis, visando a poupança de combustível. A descrição da circulação da artérias principais da cidade de Lisboa (que se pode ler mais acima) parece aquilo que os organizadores do Dia Europeu sem Carros teriam desejado que tivesse acontecido 60 anos depois... mas que nunca aconteceu. Ainda a respeito das coreografias dos tais Dias Europeus, atente-se como o artigo não faz qualquer referência a pessoas em bicicletas, comprovando quanto os lisboetas, quando entregues à busca das suas próprias soluções, já então descartavam tal solução, que seria apropriada a outras capitais europeias, mas não às colinas de Lisboa. Um pormenor do artigo que escapará decerto aos leitores modernos: quando se refere a afluência de passageiros a usar as linhas de Cascais e de Sintra, escreve-se que ela foi tanta que alguns «tiveram que utilizar vagões J». Foram viagens muito desconfortáveis. Vagão J é um vagão de mercadorias. A expressão é até título de um romance de 1946 de Virgílio Ferreira.
A RELATIVIDADE DAS CATÁSTROFES
24 de Agosto de 1931. É sabido quanto uma catástrofe só se reveste de toda a sua seriedade a partir do momento em que é noticiada e que depende também da forma como é noticiada. A influenciar este último aspecto, aquilo que de mau acontece aos outros é afectado pela proximidade que têm em relação a quem notícia e a quem lê. Permitam-me recordar um texto meu, comemorativo dos 75 anos de um grave acidente que, a 4 de Maio de 1943, aconteceu ao director do Diário de Lisboa, que superou tudo o que de trágico estava a acontecer nas frentes de combate da Segunda Guerra Mundial. Contudo, se esse episódio era ridículo, este que aqui pretendo evocar é igualmente ridículo, mas de um sinal infelizmente contrário. As três notícias que acima vemos, publicadas em páginas interiores, como se de um pormenor se tratasse, são tudo o que o mesmo Diário de Lisboa informou os seus leitores ao longo do mês de Agosto de 1931, enquanto decorriam aquelas que terão sido, provavelmente, as inundações mais mortíferas na China - estima-se hoje que essas inundações terão provocado 500 mil a 4 milhões de mortos. É pouco dizer que foi pouco...
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23 agosto 2021
ANGOLA: JÁ DÁ PARA PERCEBER O QUE SÃO OS QUE SE SUCEDERAM À CLIQUE DE JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS
Fique ainda o desejo que os actuais poderes angolanos não roubem tanto nem tão à descarada como os que o antecederam, mas este gesto de trocar um presidente do Tribunal Constitucional que se demitiu em protesto e ruptura, por quem não parece ser mais do que uma mera funcionária de partido (e em política, mesmo nos trópicos e com toda a condescendência tropical, aquilo que parece, é), assemelha-se muito àquele gesto dos que fazem batota com as cartas até quando jogam paciências, sozinhos. É o despotismo dito esclarecido, a que há quem teça umas loas desculpabilizantes por o classificar como esclarecido. Mas o esclarecimento aqui é outro...
O CONCURSO PARA LOCUTORES DA RTP
23 de Agosto de 1971. Quiçá por se estar em pleno período de férias, as atenções da página central do Diário de Lisboa concentravam-se no concurso para locutores que a RTP abrira e cujas provas estavam a decorrer ao longo do mês. Haviam sido apurados 503 candidatos e o artigo não era explícito quanto ao número de vagas a preencher (16). «A remuneração base será de 4 200$, acrescida de um subsídio para vestuário, no valor de 1 000$, o que, para um trabalho em regime de colaboração, nos termos em que aquele se vai processar, não nos aprece ser pouco.» Convém esclarecer, como o fazia a notícia, que os seleccionados «entrarão para os quadros da RTP, não com o estatuto de "funcionários", mas com o de "colaboradores", o que lhes dará uma relativa disponibilidade, uma vez que os serviços para os quais vão ser solicitados não exigem regularidade exagerada.» (Vale a pena enfatizar como daqui se percebe que há cinquenta anos "funcionário" e "colaborador" eram conceitos diferentes, e o segundo não era um eufemismo do primeiro, como hoje acontece...) Entre os 16 locutores que virão a ser apurados neste concurso contar-se-ão Ana Zanatti, Eládio Clímaco, Fernando Balsinha, Maria Elisa Domingues ou Raul Durão.
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SÓ NAQUELE PAÍS...
As cenas ridículas dos outros países não fazem desaparecer as que ocorrem por cá. Mas dá-las a conhecer obriga os nossos indignados mais exuberantes a moderarem-se. Aquilo que para eles só acontece neste país!! - acontece em igual, senão pior nos outros. Por sinal, a cena que irei contar nem tem equivalente entre nós, mas o «Chief of the Defence Staff» (o equivalente britânico ao nosso Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas) decidiu publicar um artigo de opinião no referencial The Sunday Times, contrariando os comentários que então davam por eminente o colapso do regime em Cabul: «It is too soon, however, to write off the country. There are increasing signs that the population is rallying in defiance». (É ainda todavia muito cedo para desistir do país. Há sinais crescentes que a população se está a reagrupar em desafio.) Não foi bem assim, de facto correu até muito mal. O artigo apareceu publicado a 7 de Agosto, uma escassa semana antes da queda de Cabul. E o que vimos foi uma parte da população a reagrupar-se, mas para fugir. Se o episódio tivesse acontecido em Portugal tinha sido uma barracada, a reputação do general sairia chamuscadíssima, com anedotas e editoriais a pedir a sua demissão do cargo. Em contraste, em Inglaterra estas coisas nunca acontecem porque se dá uma espécie de amnésia colectiva: o artigo do Sunday Times nem parece ter existido, ninguém terá sido apanhado desprevenido com o colapso súbito do governo afegão e aí temos abaixo o general a dar uma nova entrevista a uma rádio pugnando agora por uma acomodação com os talibans. Fleumaticamente, reconheça-se que o essencial da mensagem se mantém: é muito cedo para se desistir do país - esqueçamo-nos é que as circunstâncias se alteraram substancialmente... Espantosamente, e apesar de ser do exército e de estar a tratar de assuntos verdadeiramente de guerra, este general inglês nem precisa de aparecer fardado de camuflado como o nosso almirante das vacinas. Outras terras, outros costumes...
22 agosto 2021
O «CAPITÃO ROBY» APANHA SETE ANOS E MEIO...
22 de Agosto de 1981. Num mês de Agosto em que encontramos um tribunal onde até se conclui um julgamento(!), o «capitão Roby» (que nunca fora capitão, nem sequer se chamava Roby...) é condenado a sete anos e meio de prisão. Jorge Monteiro (de seu verdadeiro nome) adquirira uma certa notoriedade social como vigarista que se especializara em golpadas do coração, um pinga amor burlão, deixando um rasto de mulheres apaixonadas... e com as contas bancárias a descoberto. E, de todas elas, ainda um cortejo de iludidas, que acreditavam que fora algum engano. O juiz, ao ler a sentença, frisava que as regras do cúmulo jurídico funcionavam em benefício do réu: não fora elas e a multiplicação de crimes fá-lo-ia passar 65 anos atrás das grades... E repare-se como estes vigaristas sabem recorrer, apenas por instinto, aos mesmos expedientes para se tentarem safar: no caso, Roby resolveu embrulhar as suas actividades com conspirações políticas clandestinas da extrema direita, invocando nomes (Sanches Osório e Alpoim Calvão) e mesmo às portas da condenação proclamar-se vítima de uma enorme cabala.. E repare-se como o Diário de Lisboa de 1981 era demasiado faccioso para não se dispor a cair naquilo que se apresentava como um óbvio expediente de vigarista. O «capitão Roby» é hoje, apesar disso, um menino, quando comparado com os escroques do século XXI: Vale e Azevedo, João Rendeiro, Ricardo Salgado, Joe Berardo ou Luís Filipe Vieira.
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21 agosto 2021
20 agosto 2021
OS FANTASMAS DE TIMOR
20 de Agosto de 1946. Ao contrário de Portugal e do resto do Império, Timor tinha tido uma história de envolvimento directo na Segunda Guerra Mundial, o que se tornava uma excrescência incómoda na narrativa oficial da sagacidade da conduta do presidente do Conselho, António Salazar, que preservara a neutralidade do país ao longo do conflito. As notícias provindas de Timor ou a ele respeitantes tinham que se adaptar a essas circunstâncias. A preparação das cerimónias do 1º aniversário da libertação de Timor (que seria a 29 de Setembro) eram noticiadas com o destaque festivo que a imagem acima documenta. E outro problema incómodo era a apreciação da conduta dos funcionários do aparelho administrativo durante os quase quatro anos que haviam durado as ocupações (aliada e japonesa), que é abordado pela notícia da sanção atribuída a um desses funcionários que fugira para a Austrália. O assunto revestia-se de uma enorme delicadeza porque, na prática, os visados haviam ficado isolados da metrópole, impossibilitados até de comunicar com ela, não se fale sequer dos meios que pediam e que Portugal nunca esteve em condições de enviar. Por isso, as sanções disciplinares que se propuseram depois do fim da guerra costumavam ser benignas - a proposta, no caso deste réu cujo nome nunca é sequer mencionado ao longo da notícia, era de «10 dias de suspensão de exercício e vencimentos». O que torna o caso notícia é que o ministro das Colónias Marcelo Caetano quis fazer da sanção ao abandono do território por parte daquele funcionário um exemplo e agravou a pena de 10 dias para 18 meses. No despacho, Marcelo é enfático na crítica que o funcionário, ao abandonar as populações que estavam à sua responsabilidade, «não procedeu como um chefe». É nestas ocasiões em que se evoca o que se pede de responsabilização e exemplo às chefias, que nos lembramos dos episódios recentes dos motoristas dos ministros Cabrita e Matos Fernandes.
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19 agosto 2021
«O MAIOR EMBARAÇO» DA HISTÓRIA DOS ESTADOS UNIDOS
É preciso dar tempo ao tempo - ou seja, adquirir distanciamento histórico - para se poderem produzir afirmações substanciadas sobre aquilo que poderá ou não constituir «"o maior embaraço" (d)a história dos Estados Unidos». Há um ditado popular que se aplica perfeitamente à afirmação acima: o que Trump diz não se escreve (e não se devia escrever, mesmo!). O distanciamento histórico tem a virtude de fazer esquecer estes disparates que se publicam. Se a analogia da queda de Cabul em 2021 com a de Saigão em 1975, que está a ser tão citada, servir de referência para mais qualquer coisa, constate-se que as avaliações que se fazem ao fim de todos estes anos a respeito da conduta do presidente Gerald Ford não o criticam particularmente pela queda do Vietname do Sul. No calor da refrega política, sim, vejam-se os sublinhados da notícia da época abaixo, mas depois disso não. Afinal, Gerald Ford ocupava o cargo há apenas oito meses e meio quando Saigão caiu, e o problema vietnamita começara muito antes. Quando ele chegou à Casa Branca já não havia nada a fazer. Outro facto é que Joe Biden é presidente há sete meses. E quando ele lá chegou também já não haveria grande coisa a fazer a respeito do Afeganistão. O que havia a fazer fora feito sob a égide do antecessor que, por sinal, se chamou... Donald Trump. A política americana da actualidade mudou muito desde 1975, a opinião publicada e pública e, consequentemente, os seus representantes, já não se parecem chocar tanto por terem um «escroque» na Casa Branca. Esta última constatação é que é capaz, concedendo-lhe o devido distanciamento histórico, de se vir a tornar «o maior embaraço da história dos Estados Unidos»: como é que o sistema político americano conseguiu levar a sufrágio uma mediocridade como Donald Trump?! E como é que os americanos o elegeram?! E como é que os seus representantes não o sancionaram?!
QUANDO COLOCAR TANQUES NAS RUAS SE PÔDE TORNAR NUMA PROVA... DE FRAQUEZA
19 de Agosto de 1991. As imagens dos tanques nas ruas de Moscovo que as televisões transmitiam eram a expressão de uma coreografia já conhecida. Quase precisamente 23 anos antes, dia por dia, uma cena semelhante tivera lugar em Praga, capital da então Checoslováquia. Ficara compreendido que, quando o esclerosado poder soviético perdia os argumentos, recorria à força. E a força das imagens dos tanques circulando pelas ruas de Moscovo, complementada por uma sóbria conferência de imprensa anunciando ao que vinham, parecia transmitir as intenções de quem se apossara do topo da cadeia de comando, e arrumar o assunto.
Contudo, as mesmas reportagens que os mostravam nas ruas, guarnecendo os seus carros de combate, mostravam também o quanto os protagonistas no terreno não pareciam empolgados em impor a solução política de que estavam a ser o instrumento. Não seriam eles que iriam a extremos de violência para o fazer. O resto, a reacção ao golpe, faz parte da História, mas não deixou de haver um último retoque de ironia poética no facto da Queda do Comunismo ter sido causada pelo trabalho político realizado junto dos seus próprios soldados (i.e., a subversão da cadeia de comando...), aquilo que fora uma das armas revolucionárias dos comunistas mais temidas durante décadas.
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18 agosto 2021
UMA COMPILAÇÃO DO QUE AQUI FUI DEIXANDO ESCRITO A RESPEITO DA HISTÓRIA RECENTE DO AFEGANISTÃO
Os acontecimentos recentes do Afeganistão, com as imagens que os acompanharam (e acompanham), parecem ter basculado as opiniões das redes sociais. E não apenas as dos famosos. Tanto assim, que uma das minhas consultas curiosas ao tráfego de visitas a este blogue veio a revelar um incremento substancial de consultas aos postes que vim publicando ao longo dos anos a respeito do Afeganistão. As pessoas (pelo menos algumas pessoas) parecem interessadas em documentar-se sobre vários aspectos da história mais recente do Afeganistão, a começar pela revolução de Saur (1978) que levou os comunistas ao poder e o golpe de estado de Setembro de 1979 que precipitou a intervenção soviética no país. Como estes últimos travaram a sua guerra contra-subversiva (1) (2) (3). Ou então aprender um narrativa de um episódio glorioso para as armas soviéticas que, mesmo, assim e apesar das encenações, não esconderam a derrota final. E há o que veio depois. Relembrar que os talibãs já haviam entrado em Cabul. Lembrar que a sociedade que construíram (e aquilo que destruíram...) não lhes confere direito a benefício da dúvida. Mas o que mais parece estar a interessar as pessoas será tudo aquilo que se passou de há vinte anos para cá, depois da invasão americana. Sobre isso, creio que o mais importante será esclarecer que os diagnósticos já estavam feitos há mais de dez anos (Janeiro de 2010). Há agora uma tendência para esquecer que a eles se seguiram «paródias de cerimónias de retirada» (2014) que depois havia que reverter porque o dispositivo militar formado localmente era uma piada de incompetência (não escrevi especificamente sobre o exército afegão, mas escrevi sobre o exército iraquiano, do mesmo género e igualmente merdoso, que demorou nove meses a libertar a cidade de Mossul! - o dobro do tempo que durou toda a batalha de Estalinegrado...). Enfim, a situação político militar era conhecida, e depois de tentadas várias soluções e de muito dinheiro gasto na sua implementação, os resultados permaneceram insatisfatórios. O problema que se pôs às sucessivas administrações norte-americanas passou a ser político: reconhecer a sua impotência. E os Estados Unidos detestam reconhecer a sua impotência... Portanto, quando há quase ano e meio (Março de 2020) eu aqui anunciei a próxima derrota dos Estados Unidos no Afeganistão (abaixo), eu não estava a ser visionário, aquela era mesmo uma opinião muito compartilhada por quem conhecia a situação. Por fim, já em princípios de Julho deste ano, aquilo que se ia tornando notícia no curso da transição de responsabilidades do exército norte-americano para o local, mostrava que havia demasiadas coisas a correr mal e que parecia haver um derradeiro esforço de uma facção para condicionar a opinião pública americana quanto ao desfecho. Para mim, o que se percebe ter havido foi um défice de atenção da opinião publicada, espero que as pessoas interessadas que vêm consultar aquilo que aqui fui deixando publicado percebam isso.
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O DUQUE DE WESTMINSTER E A »SATISFAÇÃO DA JUSTIFICADA CURIOSIDADE» DOS LEITORES DO DIÁRIO DE LISBOA DE HÁ 90 ANOS
18 de Agosto de 1931. Num episódio que podemos classificar de precursor da imprensa «cor de rosa» (só que ainda a preto e branco...), o Diário de Lisboa dá notícia da visita a Portugal do duque de Westminster, pessoa discreta (naturalmente...), cuja presença os jornalistas publicitavam apenas para «satisfazer a justificada curiosidade dos (...) leitores» (também naturalmente...). Na verdade, mais do que provavelmente, os leitores não fariam a mínima ideia de quem se tratava. O titular era riquíssimo, mas o título era, para os padrões aristocráticos, bastante recente, fora criado apenas em 1874, durante o reinado da rainha Vitória. A grandeza do título (duque - foi o último título de duque a ser criado sem ser atribuído a um familiar próximo do monarca) dever-se-á à dimensão da fortuna do nobilitado, uma fortuna que se fizera com origem no imobiliário, por causa do crescimento da cidade de Londres ao longo do século XIX. Essa era a origem do título e do dinheiro, uma das maiores fortunas da época em 1931. Quanto ao titular a que se referia a notícia, Hugh Grosvenor, tinha então 52 anos, e esta passagem pelo nosso país inseria-se na «lua de mel» do seu terceiro casamento. A noiva, Loelia Linsay, tinha 29 anos, menos 23 do que o noivo. Aliás, o noivo tinha uma filha dessa mesma idade. Mas a atribulada vida amorosa do duque, que incluía uma muito publicitada relação com a costureira francesa Coco Chanel durante os anos 20, era apenas o aspecto mais superficial da sua pessoa. O outro eram as suas inclinações políticas de extrema direita e o seu anti-semitismo, que neste princípio de década de 1930 ainda não se tinham evidenciado em todo o seu esplendor. No entanto, por esta época, já dera um ar da sua graça, expondo publicamente a homossexualidade de um seu cunhado e rival político, com quem ele antipatizava particularmente. O duque era uma personagem fascinante, como (não) se pode perceber pela notícia de há 90 anos...
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A JOELHADA NA VIRILHA DO DIRECTOR DO PÚBLICO
O jornal Público mantém, desde há muitos anos a saudável prática de possuir um provedor do leitor. O actual é José Manuel Barata Feyo. É a ele que os leitores se dirigem quando pretendem questionar um qualquer aspecto da conduta do jornal. O tema deste fim de semana era a permanência de Rui Tavares como colunista regular do jornal, apesar da sua condição de candidato às próximas eleições autárquicas em Lisboa. A resposta de Manuel Carvalho, o director do Público, escuda-se naquilo que a lei define: a suspensão da colaboração de Rui Tavares só se torna imperativa durante o período de vigência da campanha eleitoral. Querendo mostrar-se mais "exigente", no Público antecipa-se esse prazo legal de 15 dias. O provedor aceitou placidamente esta resposta à situação concreta. Só que o problema para ele se põe de forma mais vasta e, nesse contexto, o «dos políticos no activo que também são colunistas regulares do Público» esse tópico não é novo nas páginas do jornal. Já fora abordado há sete meses e, na altura, o director do jornal comprometera-se «a analisar esta questão» - a das «colunas regulares de políticos no activo», descrita pelo próprio director nessa altura como «uma originalidade portuguesa» - a analisar a questão, prometia Manuel Carvalho, «com a profundidade e a sensibilidade que ela merece». A joelhada na virilha do director do Público é pregada num parágrafo curto: Barata Feyo continua a aguardar. A análise e as respectivas decisões. No entretanto, hoje, como todas as Terças-Feiras, um dos opinadores de serviço era Paulo Rangel, eurodeputado do PSD. Uma «originalidade portuguesa».
17 agosto 2021
O NOVO LP DE JOSÉ MÁRIO BRANCO
17 de Agosto de 1971. Na página de entretenimentos do Diário de Lisboa anuncia-se a edição de um próximo disco de José Mário Branco, disco esse que virá a ter o título (saber-se-á depois) de «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades». Quem escreveu a notícia não foi tímido nos elogios... nem nos insultos («...no quase total marasmo da nossa música»).
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16 agosto 2021
A CARA DE «CALA-TE LÁ!» DE JAKE TAPPER DA CNN
Ao contrário do que é uma apreciação muito difundida nas redes sociais, eu não costumo ficar assim tão impressionado com as prestações do pessoal televisivo à frente das câmaras nos canais internacionais, quando em comparação com os nossos. Há questões culturais, como a questão de deixar o convidado falar sem o interromper (e que produz uma grande diferença na civilidade das entrevistas), mas o vedetismo e as indiossincrasias, os preconceitos e/ou alguma dose de assertividade, ou ainda uma normalidade perfeitamente normal, há-as em todas as televisões. Mas considero haver um punhado de excepções, algumas das quais tenho pena que não exista um equivalente numa das televisões portuguesas. É o caso acima de Jake Tapper da CNN. Jake tem uma capacidade única de afixar uma expressão característica de enfado quando estão a dizer merda como evasão à resposta ao que perguntara. Quando isso acontece, a cabeça inclina-se-lhe ligeiramente para um dos lados, olhos e sobrancelhas descaem dos lados, formando um amplo ângulo obtuso a culminar no centro da testa, onde se formam umas rugas que parecem exprimir uma certa pena mas também preocupação pela cena penosa a que o interlocutor está a fazer todos os outros passar. Ontem, foi o dia disso acontecer ao secretário de Estado norte-americano Antony Blinken. As perguntas eram, naturalmente, sobre o que correra mal no Afeganistão para que a administração tivesse sido surpreendida com o colapso do regime e a conquista de Cabul pelos talibãs. A técnica adoptada pelo secretário de Estado foi a da resposta entorpecente e interminável: quando se cala já não há ninguém a prestar atenção mas também ninguém se lembra de qual foi a pergunta. A vantagem de Jake Tapper é que ele lembra-se e os espectadores regulares da CNN já aprenderam a conhecer-lhe a expressão. Neste caso, em que Antony Blinken dava explicações inverosímeis e divagava depois, Tapper continuou a confinar a conversa aos acontecimentos de Cabul, até a um sibilino «Continua a mudar de assunto!» (You keep changing the subject!). Confesso que gostava de ver um truta da desconversação como Augusto Santos Silva a tentar fazer farinha com este...
O ENSAIO DO FAMOSO «STRIPPER», PROMETIDO - E NUNCA CUMPRIDO - NO CASO DE NÃO SE ENCONTRAR ARMAS DE DESTRUIÇÃO MACIÇA NO IRAQUE
Comecei por vê-lo elogiado numa das redes sociais («artigo relevante», «não lerei outro de igual qualidade»). Depois, como estamos em Agosto e está tudo de férias, e o «Ensaio» acima de Vasco Rato saiu com a grande oportunidade da véspera da inesperada queda de Cabul, hoje já o temos, ao «Ensaio», consagrado nos canais da informação formal. O jornalista de serviço ao Expresso, por exemplo, no seu exercício ingrato de «encher pneus», classifica-o de «ensaio instrutivo de Vasco Rato» com o respectivo link. Vamos lá então prestar atenção à «instrução» «relevante» dada por Vasco Rato, de que não se publicará outra de «igual qualidade».
Algo que já se sabia antes do ensaio, era que a permanência dos Estados Unidos no Afeganistão estava em via de completar os 20 anos (2001-2021), batendo os recordes de missões semelhantes em que os Estados Unidos se haviam visto envolvidos. Outro facto relevante e que gera até um exercício interessante para descascar a instrutividade do ensaio de Vasco Rato, é o desdobramento desses 20 anos por administrações: simplificadamente teremos 7 anos de administração W Bush (republicana 2001-2009); seguiram-se 8 anos de administração Obama (democrática 2009-2017); depois 4 anos de administração Trump (republicana, 2017-2021) e finalmente 1 ano (incompleto) de administração Biden (democrática 2021-2021). Eu tenho que dizer que uma das primeiras impressões que retirei da leitura do texto foi o seu desequilíbrio. Todo o período original da invasão e ocupação do Afeganistão (e que corresponde ao período W. Bush de 7 anos - ou seja ⅓ do total) é tratada minimamente, o que não faz qualquer sentido porque foi sob essa administração que se decidiu não só proceder à invasão do Afeganistão (invocando a retaliação contra os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001) como foi então que se «trouxe a NATO atrás» de si para auxiliar os norte-americanos nessa missão, naquele que era então um entendimento muito elástico das funções para as quais a organização fora inicialmente concebida (contra a ameaça soviética). É aliás por causa dessa elasticidade NATO que Portugal se vê envolvido directamente na questão afegã. Mas, sobre tudo isso, o desenvolvimento do ensaio é parco (no mínimo), apesar de eu considerar Vasco Rato um entendido sobre a actuação e o legado da actuação internacional da administração W. Bush (disponibilizo aqui um texto seu de Setembro de 2008 a respeito da herança deixada por aquela administração). Onde Vasco Rato se aplica, desenvolto, é sobre a conduta e as opções estratégicas assumidas pela administração Obama, assumida depois de 7 anos de ocupação. Ora 7 anos é um intervalo de tempo significativo, superior, por exemplo, ao tempo total de ocupação que os Estados Unidos despenderam tanto na Alemanha, quanto no Japão, imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial. É uma estrutura argumentativa baseada no «esqueçam lá o como isto tudo começou...» Outra construção gramatical interessante de Vasco Rato foi a que assinalei acima, sublinhando-a: «As administrações Bush e Obama enfrentaram um colossal dilema» Uma redacção mais rigorosa teria sido: a administração Bush criou um colossal dilema, a administração Obama confrontou-se com ele.
Um exercício engraçado a que me dediquei para melhor transmitir a ideia da parcialidade que acabei de descrever acima foi sublinhar a cores diferentes o nome de cada presidente. O resultado é que, ao longo de um ensaio que é essencialmente o balanço de um fracasso: «...a retirada do Afeganistão encerra um ciclo de política externa marcado pela convicção de que os Estados Unidos poderiam construir um mundo melhor e mais pacífico. Este projecto imperial ruiu porque, em larga medida, a democracia americana não suporta os sacrifícios inerentes às ocupações militares prolongadas, como sucedeu no Japão e na Alemanha depois de 1945.», W. Bush é mencionado 4 vezes, Obama 9 vezes, Trump 1 vez e Biden 2 vezes. Neste aspecto da contagem, concordo com o jornalista do Expresso: é instrutivo, mas para perceber quem Vasco Rato responsabiliza pelo desfecho. Não que eu discorde substancialmente da maioria das opiniões expressas, quero ser é mais abrangente na distribuição das responsabilidades, recolocando muitas da que ele transferiu para Obama para os criadores do pecado original, os da administração Bush. Por fim, não considero muito original a conclusão acima de Vasco Rato, que é afinal uma reciclagem daquilo que li pela primeira vez concluído por Niall Ferguson em Colossus no longínquo ano de 2004. Ano em que ainda estava muito presente uma promessa insensata que Vasco Rato fizera publicamente por ocasião da eclosão da guerra do Iraque... (veja-se mais abaixo). Vasco Rato é muito mais do que um stripper, mas o episódio que lhe está associado define-lhe um ancoramento político do qual não se pode dissociar. Que pode ir de aceitar previa e positivamente a derrota de Trump em 2016, até colocar-se ao seu lado na contestação aos resultados eleitorais em 2020. Como acontecia com o outro Vasco (Pulido Valente), o problema deste Vasco não é só do Vasco, nem sobretudo do Vasco: é de todo um resto que o rodeia.
A QUESTÃO DOS ESTREITOS
16 de Agosto de 1946. A questão dos Estreitos (como a denomina o Diário de Lisboa) começara dias antes, a 7 de Agosto, quando a União Soviética enviara uma exigência à Turquia para que esta permitisse a "defesa conjunta" do estreito de Dardanelos em condições especiais, algo que implicaria que as tropas soviéticas pudessem entrar em território turco. Era uma revisão completa da Convenção de Montreux, que conferia (confere) à Turquia o controle completo dos estreitos do Bósforo e dos Dardanelos. Acompanhando a solicitação e numa manobra intimidadora, aparecera um editorial na imprensa soviética dos dias seguintes, apoiando a devolução da província de Kars, que havia sido cedida pela Rússia à Turquia após a Primeira Guerra Mundial. O preâmbulo da notícia caracterizava a questão como «um problema explosivo», mais um no quadro do esfriamento das relações entre os antigos aliados da Segunda Guerra Mundial. Precisamente no dia anterior (dia 15) e ainda desconhecido do jornal, numa nota diplomática enviada pelo presidente norte-americano Harry S. Truman ao seu homólogo turco İsmet İnönü, os Estados Unidos haviam fornecido um respaldo político à intenção turca de rejeitar as pressões soviéticas. O primeiro gesto desse apoio seria o envio para águas territoriais turcas da 12ª esquadra norte-americana, encabeçada pelo moderníssimo porta-aviões USS Franklin D. Roosevelt, esquadra essa que naquele mesmo dia, e por coincidência, acabara de fundear no Tejo, conforme se pode ler na notícia adjacente da primeira página.
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15 agosto 2021
NIXON ANÚNCIA MEDIDAS PARA PROTEGER O DÓLAR
15 de Agosto de 1971. Outro Domingo. Aproveitando o facto de se estar num fim de semana e no meio das tradicionais férias de Agosto, o presidente Richard Nixon anuncia pela televisão um conjunto de medidas de cariz económico, mas sobretudo financeiro, visando o reequilíbrio das contas externas dos Estados Unidos e a dinamização da sua economia: um congelamento de preços e salários por um período de três meses, a adopção de uma sobretaxa de 10% sobre as importações e, sobretudo, o abandono da indexação do dólar ao ouro, que fora um dos esteios das regras de comércio internacional entre as economias capitalistas desde os acordos de Bretton Woods de Julho de 1944. Na verdade, 27 anos passados, o sistema concebido em Bretton Woods já estaria a caducar: em Maio daquele ano, a Alemanha Federal abandonara-o, e em princípio de Agosto acontecera o mesmo com a Suíça. Só que a saída dos Estados Unidos - anunciada por Nixon naquele serão de Domingo como uma suspensão - tinha como consequência desfazer o sistema. A acrescer às repercussões financeiras (já que os Estados Unidos queriam forçar as economias dependentes a desvalorizarem também as suas moedas) havia as repercussões políticas, já que a decisão de Nixon fora tomada em segredo, sem qualquer consulta aos seus aliados. Por uma vez, lembro-me de quanto aquela tradicional placidez noticiosa do mês de Agosto foi profundamente perturbada pelas consequências de uma decisão por uma vez verdadeiramente importante (e, ao mesmo tempo, complicada de explicar à opinião pública interessada). As manchetes das edições da semana que se seguirá àquele anúncio vão ser grandes e, para não se pensar agora que tudo foi sempre um mar de rosas nas relações transatlânticas durante esses anos, relembre-se por alguns dos cabeçalhos abaixo a reacção negativa dos europeus à iniciativa norte-americana. A diferença para a actualidade era que Richard Nixon, mesmo que não merecesse (e isso então ainda não se sabia...), era respeitado.
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14 agosto 2021
CAMARADAS, EM VEZ DE CUBA, VISITEM TUVA, UMA DAS PÁTRIAS MAIS ANTIGAS DO SOCIALISMO CIENTÍFICO!
Se (quase) todos ouviram falar da revolução russa e da criação do primeiro estado marxista-leninista do mundo, suspeito que nem na Soeiro Pereira Gomes conseguem indicar, como eu aqui o vou fazer, qual foi o segundo mais antigo estado marxista-leninista do mundo, já que do terceiro (a Mongólia), já aqui falei previamente. Trata-se da República Popular de Tuva, fundada a 14 de Agosto de 1921, que foi também conhecida pela designação de Tanu-Tuva, e que hoje completaria o seu centenário.
Situada em plena Sibéria, nas regiões fronteiriças com a Mongólia, Tuva perdeu entretanto a independência (1944) e é hoje uma República constituinte da Federação Russa. Trata-se de um território relativamente extenso (170.500 Km², o que representa o aproximadamente o dobro de Portugal) mas escassamente povoada (300.000 habitantes, cerca de metade da população da cidade de Lisboa).
Como destino, Tuva e a sua capital Quizil (que significa vermelho, no idioma local), têm tanto de remoto (ficam a mais de 5.000 Km de Moscovo), como de exótico, para aqueles que são os verdadeiros saudosos do marxismo-leninismo. Para além de várias referências históricas à proclamação de há 100 anos, existe em Quizil um monumento assinalando o centro geográfico da Ásia.
Como alerta ao turista mais desprevenido, refira-se que existe na população local uma alta taxa de infecção por sífilis. A causa para tal é atribuível a uma elevada promiscuidade sexual, decorrente da tradição cultural e religiosa dos tuvanos que estabelece que a mulher é tanto mais fértil quanto maior for o número de parceiros sexuais que ela tiver tido antes do casamento… Assunto menos picante, mas não menos interessante, são as canções folclóricas locais, que são interpretadas num estilo completamente distinto e muito próprio, designado por canto gutural e cuja explicação em que consistirá feita por escrito dificilmente será satisfatória - embora possa ser ouvido aqui. A solução que melhor concebo para dar uma ideia do que se trata, é o que poderia ser o estilo de João Malheiro se ele tivesse enveredado por uma carreira no music-hall...
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13 agosto 2021
É HOJE! É HOJE! FIQUEM ATENTOS, PORQUE DONALD TRUMP TORNA-SE PRESIDENTE DE NOVO!
Vale a pena recordar que é hoje que está previsto que Donald Trump reocupe a presidência... Assim como vale a pena também recordar todos aqueles «trumpers» que tanto pulularam pelas nossas próprias redes sociais durante quatro anos descobrindo-lhe virtudes e que "desapareceram" completamente do panorama opinativo, assim ao jeito das "presenças" naquela "grandiosa" manifestação de apoio a Luís Filipe Vieira do mês passado, a que acabou tendo 10 pessoas...
É que ele há números que costumam ser invocados nestas ocasiões sem ter em conta a volubilidade das multidões. Se reconheço existir um fundo de verdade em que há que ter em conta os 74 milhões de eleitores que em Novembro do ano passado votaram em Donald Trump, por outro lado eu gostaria de descobrir o paradeiro recente dos outros 28.777 sócios do Benfica (28.787 - 10) que haviam votado em Luís Filipe Vieira apenas uma semana antes disso. A perfídia destas situações é que a informação, em vez de colocar o problema da debandada dos apoiantes no seu devido contexto, prefere ir sacar o que ainda resta de notícia da situação, no caso escutar os imbecis mais irredutíveis, sejam eles Mike Lindell no caso de Trump, ou Pedro Guerra no caso de Vieira.
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O INÍCIO DA CONSTRUÇÃO DO MURO DE BERLIM
13 de Agosto de 1961, um Domingo. Desde a meia-noite que equipas de construção oriundas da Alemanha Oriental (a DDR) se afadigam a edificar uma construção contígua que separe a área constituída por Berlim Ocidental dos seus territórios. Para o eventualmente proteger de interferências, foi mobilizado um aparatoso dispositivo composto por polícia e militares leste alemães. Por detrás do dispositivo, sente-se a presença do exército soviético. Estava explicada a presença em Berlim-Leste do marechal Koniev... O Muro de Berlim tornou-se depois um símbolo, mas, mais uma vez e quando se consultam as notícias do próprio dia (abaixo), percebe-se que a informação era muito nublada, não havia referências precisas sobre quais as intenções das autoridades leste-alemãs, muito menos à edificação do Muro. Já então, a informação em cima do acontecimento não era muito esclarecedora.
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12 agosto 2021
UM POVO TRAÍDO
Com este, é o quarto livro de Paul Preston que leio. Três biografias (Franco, Santiago Carrillo e João Carlos) e agora este que é uma espécie de tratado sociológico sobre a incompetência (e muitos outros defeitos...) de todas as elites dirigentes de Espanha (a política, mas também a económica, a militar, a religiosa, a administrativa, etc.). Há que reconhecer que as pesquisas deste autor são sempre sólidas. A comprová-lo, neste livro, publicado originalmente em Março de 2020 e na sua versão portuguesa em Novembro do mesmo ano, existem 144 páginas de notas e referências. Mostra um excelente conhecimento da História recente de Espanha mas também me parece perceber um esforço(?) seu para se distanciar dos espanhóis, para os observar à distância, sem demonstrações de empatia. E esse distanciamento tanto pode ser um ponto forte (no caso da biografia de Franco), como também se pode revelar um ponto fraco (na de Santiago Carrillo). Aqui, acaba por se virar contra o autor como veremos no fim. É um livro cuja leitura deprime: tomemos, para exemplo, os títulos dos seus últimos seis capítulos (de um total de dezoito):
13 O regime de Franco: corrupção e terror (1945-1953)
14 O regime de Franco: corrupção e condescendência (1953-1969)
15 Os últimos anos de um regime corrupto (1969-1982 sic)
16 A difícil formação de uma democracia (1975-1982)
17 A grandeza e miséria de uma nova democracia (1982-2004)
18 O triunfo da corrupção e da incompetência (2004-2018)
Felizmente que as minhas fontes de informação são muitas mais do que estas que constam dos livros de Paul Preston, senão ficaria com uma impressão deprimente (e limitada) da evolução da Espanha depois de 1945. Para todos os efeitos, e apesar da corrupção, a Espanha é hoje a 14ª economia mundial e a 4ª da zona Euro. Para lá dos números, vê-se nos expositores dos supermercados, no sectores de frutas e legumes, que a Espanha tem uma agricultura pujante. E nada disso aparece expresso no livro. Talvez devesse e talvez não fosse despropositado que Paul Preston fosse dando conta da evolução da economia espanhola aos seus leitores ao longo do período em causa (como aparece no gráfico acima), um crescimento que aconteceu mau grado toda a corrupção de que o livro vai dando conta... Por fim, e voltando aos capítulos, sente-se a falta de um 19º capítulo, uma apreciação sobre o futuro de Espanha a partir de 2018. Não teria sido interessante Paul Preston adicionar algumas sugestões para combater a corrupção que parece endémica – tanto em ditadura como em democracia - das elites espanholas?... Pelos vistos, não, as preocupações com o «povo traído» do título ficam precisamente assinaladas pela ausência de empatia com o espanhol comum que assinalei mais acima.
Mas a grande pergunta que me ficou, foi a de saber como é que no Reino Unido se reagiria se um hipotético «Paul Preston» espanhol escrevesse um livro simétrico sobre o comportamento (e a venalidade) das elites britânicas nos últimos 150 anos? Ao contrário da Espanha, a economia do Reino Unido tem perdido importância à escala mundial. Será que por lá as elites são menos corruptas? Ou será que é apenas uma questão de habilidade e hipocrisia em encobri-lo?
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