Caríssimo, discorda que seja "repreensivo" sobre os negócios com a Alemanha nazi (sobretudo volfrâmio e conservas para os militares alemães) que eram pagos à ditadura portuguesa, em grande parte, com o ouro roubado aos judeus do Holocausto?
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhwiFDWw_ADhU-3AetxQppQvvltAVQK1k6orloBkbCk_1EZsWP2wBdLFVhrXat38YiDd9YOh35typqdy1hKq0aMCuhRLXaNdihHY6AuCIZUIDs1lqQ9CmklDGkCIQZUIjT88d9x_Q/s400/Ant%C3%B3nioLou%C3%A7%C3%A32.JPG)
Esta foi uma pergunta que me foi colocada pelo João Tunes
na caixa de comentários de um poste do seu
blogue. É uma pergunta a que não me quero furtar a responder, mas necessito, antes de tudo, de lhe retirar
a carga que contém antes de lhe responder, porque se trata de um caso extremamente engraçado, mesmo pedagógico, daquela falácia lógica que se costuma designar por
questão carregada. Diz-se que
uma questão está carregada quando inclui um ou vários pressupostos que quem pergunta quer induzir naquele a quem a pergunta é dirigida. O exemplo da Antiguidade Clássica deste tipo de questões é a pergunta:
- Então, já deixaste de bater na tua mãe? Qualquer resposta linear que se adopte comprometerá sempre quem responde, porque ou se está a reconhecer que
ainda se bate na própria mãe, ou então que
já se bateu nela…
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhhn8ek9B1qZusmL0ItgWjvOqj3cSZfELUolv5I-Ubt4W3ksbRd3X3VWapcjfhyphenhyphenyKFU8sjs8ATD3yS44M78iNMyFhxLUxFxdR0T3CxKwAsTrjzGQyERsNkZa6Uv7l9zzR3KGd937g/s400/JorgeCoelho.jpg)
Perguntas com as características que descrevi abundam no discurso político. Quando, por uns meses, fiz parte de um painel fixo a quem um instituto de sondagem colocava questões sobre actualidade política, num trabalho que a referida empresa fazia para o então ministro Jorge Coelho (acima), as perguntas que me colocavam eram todas daquele género
carregado, condicionando a resposta
(*). Em termos científicos e históricos convém ter mais cuidado. A redacção dada pelo João Tunes naquela pergunta faz com que se assuma que as transacções comerciais se fizessem com
a ditadura portuguesa – ora o Banco de Portugal não pertence a um regime; e que se subentenda que o ouro usado pelos alemães para pagamento dessas transacções tivesse sido
roubado aos judeus do Holocausto fosse coisa já do conhecimento geral, o que não é verdade.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjtjFxf3pE3l52LGN1dCq6G4cKmOArOBwtimVWexpQqD95mZbvqqtfTkAc8HhFhViaSto_YHuU3jjBa3_ho1skoM5EKZqjyZ7nHxOAO-3rJPIutbT0TQPtlwPQkB16pT5S4Cpz-JQ/s400/OuroNazi.jpg)
Ora convém esclarecer que, com a Alemanha nazi, negociaram todos os países europeus que conseguiram permanecer neutrais durante a Segunda Guerra Mundial, desde Portugal e da
ditadura portuguesa até à Suécia e à
social-democracia sueca. E todos eles, ditaduras e democracias, receberam, entre outras formas de pagamento, ouro alemão, que os tempos eram incertos, e eram poucos os países que se dispunham a vender fiado
(**). Foram transacções legítimas, feitas de boa fé – pelo menos da parte dos neutrais – e limitavam-se a seguir uma tendência da História da Europa que faz com que os países que permanecem neutrais são aqueles que mais beneficiam comercialmente durante os Grandes Conflitos. Veja-se o mapa abaixo
(***) com o que os países neutrais da Primeira Guerra Mundial enriqueceram (em padrão-ouro)…
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiuybUZ3PvfFkxFfpqkGWifIMtvrxjNDjIu04U9Rx4mDRN9DC200g4aQEe0rxiKcdtmBBdl6GuXrk3ODU6W11oV2Ew2aVjaWdTgRAXRB6k3wNP3QecyDyeNoSYsPmdQUyLkhYIe0Q/s400/OuroGanho19141918.JPG)
Caríssimo João Tunes, mais do que provavelmente discordará da condução da política externa que Salazar escolheu para o país durante a Segunda Guerra Mundial. Achará talvez – e é uma posição argumentável – que Portugal devia ter assumido na época uma posição claramente pró-Aliada. Seguindo por essa via, percebe-se naturalmente por que será crítico quanto aos
negócios com a Alemanha nazi. Mas isso não será bem História, é outra coisa. Porque nas circunstâncias do que de facto aconteceu, e o que aconteceu foi a neutralidade portuguesa, dificilmente poderei condenar as transacções comerciais que tiveram lugar com a Alemanha, apenas porque ela foi a parte
condenável do conflito. Ou, já agora, questionar a propriedade do ouro que foi recebido como resultado de uma transacção legítima e que foi feita de boa fé pela parte portuguesa.
(*) Eram-no de uma forma tão evidente que me cheguei a perguntar se o objectivo daquele estudo para Jorge Coelho seria mesmo para auscultar a opinião da opinião pública (como me tinham dito) ou seria antes testar a eficácia da argumentação usada pelo governo e pelo PS para os assuntos mais mediáticos da governação.
(**) Por acaso, uma excepção era… Portugal, que fiava… mas aos britânicos.
(***) Reprodução parcial de The Routledge Atlas of the First World War, p. 143.