Caríssimo, discorda que seja "repreensivo" sobre os negócios com a Alemanha nazi (sobretudo volfrâmio e conservas para os militares alemães) que eram pagos à ditadura portuguesa, em grande parte, com o ouro roubado aos judeus do Holocausto?
Esta foi uma pergunta que me foi colocada pelo João Tunes
na caixa de comentários de um poste do seu
blogue. É uma pergunta a que não me quero furtar a responder, mas necessito, antes de tudo, de lhe retirar
a carga que contém antes de lhe responder, porque se trata de um caso extremamente engraçado, mesmo pedagógico, daquela falácia lógica que se costuma designar por
questão carregada. Diz-se que
uma questão está carregada quando inclui um ou vários pressupostos que quem pergunta quer induzir naquele a quem a pergunta é dirigida. O exemplo da Antiguidade Clássica deste tipo de questões é a pergunta:
- Então, já deixaste de bater na tua mãe? Qualquer resposta linear que se adopte comprometerá sempre quem responde, porque ou se está a reconhecer que
ainda se bate na própria mãe, ou então que
já se bateu nela…
Perguntas com as características que descrevi abundam no discurso político. Quando, por uns meses, fiz parte de um painel fixo a quem um instituto de sondagem colocava questões sobre actualidade política, num trabalho que a referida empresa fazia para o então ministro Jorge Coelho (acima), as perguntas que me colocavam eram todas daquele género
carregado, condicionando a resposta
(*). Em termos científicos e históricos convém ter mais cuidado. A redacção dada pelo João Tunes naquela pergunta faz com que se assuma que as transacções comerciais se fizessem com
a ditadura portuguesa – ora o Banco de Portugal não pertence a um regime; e que se subentenda que o ouro usado pelos alemães para pagamento dessas transacções tivesse sido
roubado aos judeus do Holocausto fosse coisa já do conhecimento geral, o que não é verdade.
Ora convém esclarecer que, com a Alemanha nazi, negociaram todos os países europeus que conseguiram permanecer neutrais durante a Segunda Guerra Mundial, desde Portugal e da
ditadura portuguesa até à Suécia e à
social-democracia sueca. E todos eles, ditaduras e democracias, receberam, entre outras formas de pagamento, ouro alemão, que os tempos eram incertos, e eram poucos os países que se dispunham a vender fiado
(**). Foram transacções legítimas, feitas de boa fé – pelo menos da parte dos neutrais – e limitavam-se a seguir uma tendência da História da Europa que faz com que os países que permanecem neutrais são aqueles que mais beneficiam comercialmente durante os Grandes Conflitos. Veja-se o mapa abaixo
(***) com o que os países neutrais da Primeira Guerra Mundial enriqueceram (em padrão-ouro)…
Caríssimo João Tunes, mais do que provavelmente discordará da condução da política externa que Salazar escolheu para o país durante a Segunda Guerra Mundial. Achará talvez – e é uma posição argumentável – que Portugal devia ter assumido na época uma posição claramente pró-Aliada. Seguindo por essa via, percebe-se naturalmente por que será crítico quanto aos
negócios com a Alemanha nazi. Mas isso não será bem História, é outra coisa. Porque nas circunstâncias do que de facto aconteceu, e o que aconteceu foi a neutralidade portuguesa, dificilmente poderei condenar as transacções comerciais que tiveram lugar com a Alemanha, apenas porque ela foi a parte
condenável do conflito. Ou, já agora, questionar a propriedade do ouro que foi recebido como resultado de uma transacção legítima e que foi feita de boa fé pela parte portuguesa.
(*) Eram-no de uma forma tão evidente que me cheguei a perguntar se o objectivo daquele estudo para Jorge Coelho seria mesmo para auscultar a opinião da opinião pública (como me tinham dito) ou seria antes testar a eficácia da argumentação usada pelo governo e pelo PS para os assuntos mais mediáticos da governação.
(**) Por acaso, uma excepção era… Portugal, que fiava… mas aos britânicos.
(***) Reprodução parcial de The Routledge Atlas of the First World War, p. 143.