30 setembro 2015

COINCIDÊNCIAS ESPECTACULARMENTE CIENTÍFICAS

Eu gostaria de ser ainda suficientemente ingénuo para equacionar a hipótese de que a proximidade do anúncio da existência de água líquida em Marte pela NASA e o lançamento à escala mundial da superprodução The Martian não passasse de uma coincidência. Caí que nem um patinho. O anúncio foi feito anteontem, o filme, cujo enredo decorre evidentemente em Marte, estreia hoje em cinco países, amanhã em mais vinte e cinco (incluindo Portugal) e na Sexta-Feira em outros dezanove . Só para os chatear e não lhes fazer publicidade grátis, a imagem acima é uma frame de um outro filme que se também decorre em Marte, o já clássico Total Recall (1990).

...TUDO

Não sei se o cartaz acima é genuíno. Sei que quem o redigiu esteve particularmente inspirado, apesar do analfabetismo, real ou fingido. Aquele retoque final de apelar subtilmente para a nossa imaginação no último aviso entre parêntesis cá de baixo é simplesmente genial. Ninguém gosta de deixar seja o que for a boiar e o apelo tem a delicadeza de não precisar do que se trata. Além disso, naquela frase Depois Fica Tudo a Boiar, a palavra Tudo adquire uma etimologia precisa, que me lembra a função dessa mesma palavra na seguinte frase: Está Tudo muito indeciso com o resultado das eleições do próximo Domingo.

O AMIGO CARO

Ontem calhou a vez de receber em casa o Infomail do PS. Ao contrário do do PàF, este é muito centralizado na pessoa do secretário-geral e com um toque intimista despropositado. Eu não sou caro amigo do António Costa, ele também não é meu caro amigo, e suspeito que também não o queira ser para além da utilidade de me fazer votar no PS no próximo Domingo. Além disso, não gosto, nunca gostei, que malbaratem a palavra em circunstâncias em que ela não é apropriada e desagrada-me ver um candidato a primeiro-ministro a usá-la a destempo, decalcando a atitude que eu reconheceria típica de um vendedor de automóveis usados. Estamos entendidos quanto às duas grandes opções de que dispomos...

29 setembro 2015

LIS(T)ETE & CASSILDA

Uma das provas da intemporalidade do Colégio Militar é, como um comentário casual de um veterano nos pode transportar, cúmplices, a um passado que não vivemos mas que compreendemos perfeitamente. Pelos vistos, em meados da década de 1960, estas duas saudosas senhoras, as roupeiras da 4ª companhia e aqui representando toda a corporação de quem nos tratava da roupa, foram as estrelas de uma letra adaptada de um sucesso musical do momento intitulado Winchester Cathedral (abaixo). Trocando o refrão original pelo nome de ambas é como uma daquelas evocações que dispensam claustros, formaturas e cornetins, mas que são tanto, senão mesmo mais, sentidas que as evocações formais.

OS ADIVINHOS

É com imenso cepticismo que tenho seguido a adopção destes tracking polls que, de tantos e tão contraditórios, apenas têm contribuído para que exista um ruído noticioso, que pouco tem sido esclarecedor. Decidi reservar a minha atenção para a noite das eleições e para aquilo que Maria de Lurdes Rodrigues certo dia designou no parlamento por a contagem dos votozinhos. Gostei e guardei a expressão, tanto mais que ela provocou na altura um exuberante e muito criticado amuo de Ana Drago.

28 setembro 2015

HÁ ÁGUA LÍQUIDA EM MARTE MAS NÃO É A VER TELEVISÃO QUE SE PERCEBE QUE HÁ INTELIGÊNCIA NO PLANETA TERRA


A notícia mais importante do dia foi, indiscutivelmente, o anúncio feito pela NASA da existência de provas que sazonalmente água no estado líquido, uma água salgada, flui no planeta Marte. Mas, com as fugas de informação, este anúncio não colheu propriamente a comunidade de surpresa. Desde esta manhã que se anunciava qual seria a parte mais importante da comunicação que a NASA marcara para as 16H30 de Lisboa. E é aí que se constataria a vantagem de temos em Portugal três canais exclusivamente noticiosos: considerada a hora informativamente mortiça a que a NASA transmitiria a sua conferência de imprensa (meio da tarde), arriscar-nos-íamos a uma concorrência feroz entre SIC Notícias, RTP Informação e TVI 24 disputando os melhores cientistas, astrónomos, exobiólogos portugueses para acompanharem e enriquecerem a apresentação feita pelos seus colegas norte-americanos. Mas não. Não houve cobertura. Não houve concorrência. Essa fica reservada para as motos, uma de cada estação, que acompanham os autocarros que transportam as equipas para o estádio da Luz em dia de derby. Isso é que é o mistério que intriga a Humanidade: o percurso que será feito pelos jogadores desde a academia de Alcochete...

FICÇÃO CREDÍVEL - OS CÃES DA GUERRA

Frederick Forsyth escreveu este romance acima em 1974. À hora da despedida de Portugal de África havia quem se dispusesse a mostrar literariamente as fragilidades das novas nações independentes do continente e escrevesse histórias de uma ficção credível a respeito do que nelas poderia vir a acontecer. A acção de Cães da Guerra decorre principalmente num hipotético país africano chamado Zangaro, que só se torna difícil de identificar por combinar características identificativas de mais do que uma das então novas nações africanas. Um país com reservas minerais riquíssimas que os próprios naturais desconheciam. Governado por um ditador tresloucado. E a história centrava-se num comandante e num comando de meia dúzia de mercenários de origem europeia encarregados de realizar um golpe de estado em Zangaro. Conseguem-no. E o final de Cães da Guerra tem uma conotação moral, um escrever direito por linhas tortas, apesar de todo o reaccionarismo realista que o domina.
Houve quem tivesse passado os vinte anos que se seguiram a tentar concretizar na prática o que constava do script de Cães da Guerra (há um filme de 1980 que teve pouco sucesso), em busca de um romantismo de uma liberdade de acção dos mercenários (e também dos interesses privados...) em relação aos intervenientes institucionais - as potências - que nunca pôde existir de facto. O mais famoso desses líricos terá sido um francês chamado Robert, dito Bob, Denard (1929-2007) que, com o tempo, se veio a especializar em golpes de estado nas Comoros (mapa acima). Há vinte anos precisamente – o aniversário da data é o pretexto para esta evocação e para este poste – lá reaparecia Bob Denard, acompanhado de 33 mercenários desembarcando de uns botes de borracha zodiac com motor fora de bordo como descrevera Forsyth, para realizar mais um – o quarto! – golpe de estado naquele país insular de 800 000 habitantes, golpe que ele desta vez baptizara de Operação Kaskari.
Mas os tempos haviam mudado muito desde o princípio daquela década, a URSS desaparecera e Denard parecia ter envelhecido (66 anos, o que já é muito para um condottiere) sem se dar conta disso, tornando-se num franco-atirador que causava embaraços em vez de ser uma ajuda para as soluções. Cerca de 600 soldados franceses puseram fim à aventura. Nem um tiro foi disparado. Denard foi apanhado à mão e, sobretudo, exibido para que a comunicação social o fotografasse e filmasse (acima). Foi depois transportado para França para ser julgado. Sem emenda, cinco anos depois, o velhote estava outra vez metido em sarilhos em Itália por ter andado a tentar recrutar entre os meios da extrema-direita italiana. Mas, se de há vinte anos para cá continua a haver golpes de estado em África, passou a dar mau aspecto subcontratar a sua feitura, privilegia-se o artesanato local.

MALDIVAS

Como as Maldivas são um arquipélago, é muito provável que o seu presidente se desloque de barco muito mais vezes do que o faz um seu homólogo de um país continental. E como a política das Maldivas tem um historial e uma dinâmica muito própria (um ex-presidente foi condenado recentemente a 13 anos de prisão por terrorismo como eu expliquei aqui num poste há uns meses), é muito natural que os acidentes no mar tendam a ser considerados pouco acidentais. Há lutas entre clãs mafiosos que se desenrolam com mais elegância do que a que está a ser travada naquele pequeno e remoto país de 340 000 habitantes. A vantagem para compreender o que se passará é que às mafias ninguém as designa por organizações de benemerência e destes pequenos países ignorados, há na informação quem, por ignorância, os qualifique de jovens democracias... A cena de BD é de O Regresso do Fantasma de Bernard Prince (Hermann & Greg ); ali, o presidente atirou-se à água para dar umas braçadas e também escapou ao atentado.

27 setembro 2015

O «LOOK-ALIKE»

Terça-Feira passada (dia 22) o PS cometeu aquilo que eu penso ter sido um erro crasso: deixou Mário Centeno ir ao programa de Ricardo Araújo Pereira para demonstrar em prime-time o quanto, em caso de vitória socialista, nos arriscamos vir a contar com um look-alike de Vítor Gaspar a sobraçar a pasta das finanças. Uma presença que, mais do que mortiça, por si só, arrasou com o slogan do pensar como a direita pensa, que os faria (aos socialistas) acabar a governar como a direita governou. Só ficou por adivinhar como será a mudança de linguajar que justificará os futuros erros de previsão económica, em substituição dos famosos desvios em linha de Passos Coelho e Gaspar...

PUBLICIDADE RASCA


Dobrar anúncios televisivos sempre foi prática corrente porque baixa custos de produção. Mas uma coisa é promover um detergente para a loiça, em que a atenção do espectador é atraída para o brilho reluzente após lavagem, e outra será promover um dentífrico onde é a natureza do próprio produto a obrigar a que olhemos para o brilho dos dentes e assim para a boca dos protagonistas, só para vermos os seus lábios a moverem-se – porque se poupou o dinheiro para o trabalho de montagem – totalmente descoordenados com aquilo que se está a ouvir na banda sonora. Embora não no sentido em que a expressão costuma ser empregue, para quem seja exigente isto também é publicidade rasca.

26 setembro 2015

O «BÓNUS» GERMÂNICO

Nova Jersey, 6 de Maio de 1937. Poucos serão os que nunca viram um dos instantâneos do horrível incêndio do Hindenburg, incluindo mesmo o impressionante filme que regista o momento da chegada da aeronave. Mas também poucos serão os que, por detrás dessas imagens impressionantes, sabem que o acidente provocou a morte a apenas 36 pessoas das 97 que seguiam a bordo e que afinal a maioria, 23 dos 36 passageiros e 39 dos 61 membros da tripulação, escaparam dali com vida. E, claro, todos sabem qual era a nacionalidade do zeppelin...

O que quase ninguém ouviu falar foi do desastre do Akron, um dirigível de nacionalidade norte-americana que em 4 de Abril de 1933 – quatro anos antes – caíra no mar durante uma tempestade, provocando a morte a 73 dos 76 tripulantes e passageiros que seguiam a bordo¹. Reconheça-se que há sempre o impacto mediático inerente ao material disponível da cobertura das tragédias, mas, para os americanos, parece haver uma bonificação – lembrei-me disto a propósito do recente escândalo da Volkswagen – quando a coisa envolve alemães.
¹ Perpetuando a distorção, na Wikipedia, o desastre do Akron reduz-se ainda hoje a um mero capítulo da página que é dedicada ao dirigível, enquanto o desastre do Hindenburg, onde se registaram metade das vítimas do anterior, merece toda uma página exclusiva.

VIVA A ARTE E A PROPAGANDA! ABAIXO A VERDADE!

No sítio onde colhi a fotografia acima ela é dada por verídica, mas tenho fundamentadas suspeitas que o não é: há uma falta de tensão nos fotografados (os que se preparam para matar, o que se prepara para morrer e os que vão ser testemunhas da execução) que retira verosimilhança à cena. Mas o que a assassina (à cena e à foto) é a coincidência dos dois guardas-civis espanhóis dispararem à esquerda e ser também o braço esquerdo aquele que o executado alça à beira da morte. São canhotos a mais para uma mesma cena, tornando-se óbvio que alguém a trabalhou, virando-a como num espelho (abaixo a mesma foto na perspectiva que tinha originalmente), para que a atenção de quem a vê, seguindo o sentido tradicional da leitura (da esquerda para a direita) se choque com o sentido dos disparos e nos faça prestar toda a atenção inicial a quem está encostado ao paredão, aquele que se pretende que seja o herói mártir da fotografia. Um paredão, por sinal, virgem de marcas de balas de execuções anteriores... A falta de qualidade de obras como esta não são só determinadas pela falta de jeito de quem as faz mas sobretudo pela falta de exigência de quem as aprecia.

25 setembro 2015

«GOURMANDISE» CONSERVEIRA

Eu bem sei que este seria um poste mais apropriado noutro blogue, mas a oferta das sardinhas de conserva que foi protagonizada esta semana por Assunção Cristas, enquanto convidada no programa de Ricardo Araújo Pereira, levou-me a uma visita à dispensa e à constatação quanto pode existir uma gourmandise conserveira (abaixo) tão mais elaborada que as prosaicas sardinhas em óleo vegetal da Ramirez ofertadas pela ministra.

O CENTENÁRIO DA SEGUNDA BATALHA DE CHAMPANHE

Há precisamente cem anos e depois de um bombardeamento prévio que durara 3 dias, feito por 2.500 peças de artilharia, desencadeava-se o ataque francês às posições entrincheiradas alemãs na Champanhe. O assalto começou às 9H15, numa frente de 25 quilómetros, mobilizando vinte divisões pertencentes a dois exércitos. O espírito era elevado: estreavam-se então em combate os novos capacetes M15 Adrian, que viriam a tornar-se depois uma das imagens de marca do exército francês. Eram raros, estavam guardados para os atacantes, as tropas encarregues de conduzir os prisioneiros para a retaguarda ainda não tinham direito a usá-los. Diante dos assaltantes estavam apenas seis divisões alemãs, numa desproporção de efectivos e poder de fogo que explicará os ganhos franceses realizados neste primeiro dia: no centro da ofensiva, o avanço francês chegou quase aos 3 quilómetros de profundidade; fizeram-se 14.000 prisioneiros.
 Mas não conseguiram ultrapassar as linhas de trincheira de reserva, cavadas deliberadamente nas encostas viradas a norte para ficarem escondidas da observação directa da artilharia francesa. Dois a três dias depois, com a chegada dos reforços alemães e a transferência dos franceses para posições que já não estavam preparadas, o avanço perdera o momento e a situação voltara ao mesmo impasse táctico. Os franceses haviam sofrido 144.000 baixas pela reconquista de cerca de 45 Km² do seu país; os alemães 81.000 para o defenderem. A acção recebeu o nome de Segunda Batalha da Champanhe. Com estas contingências tácticas a localização das batalhas da Primeira Guerra Mundial não mudava substancialmente e recorria-se aos ordinais para as distinguir. Conhecidas por Batalhas da Champanhe baptizaram-se quatro, a última também conhecida por segunda Batalha do Marne. Travavam-se batalhas mas elas deixavam de ser decisivas.

24 setembro 2015

CADÊ OS DOZE VIRGULA DOIS?

Cá recebi na caixa do correio o Infomail da campanha do PàF. Nunca tinha reparado nela, mas gostei da assinatura estilizada de Paulo Portas. Suspeito que aquilo será legível por quem saiba ler a escrita cuneiforme; quiçá o nome de Portas assinado pelo próprio se lesse Guião da Reforma do Estado... Sumério naquele alfabeto. Mas o Infomail tem coisas mais importantes do que gerar oportunidades para fazer graçolas com as assinaturas de vice-primeiros-ministros. Veja-se a lista com as fotos, os nomes e as profissões dos candidatos da coligação à Assembleia da República pelo distrito de Lisboa, onde resido.
Contém 52 nomes. Há ali 8 advogados, 6 gestores, 6 juristas, 4 professores, 3 técnicos superiores, 3 consultores, 2 funcionários públicos, 2 médicos, 2 economistas, 2 bancários, 2 deputados(! – não sabia que o cargo já se profissionalizou...) e 1 de cada uma das seguintes profissões: professor universitário, assistente notarial, comissário de bordo, aposentado, promotor de turismo, investigador, engenheiro mecânico, arquitecto, assistente técnico, estudante, gestor comercial e, atenção, 1 mas só 1 empresário, um paradoxo para quem tanto proclamou as virtudes do empreendedorismo. 
Mas o que verdadeiramente me intrigou não foram as presenças: foram as ausências desta amostra popular. É que até mesmo o Observador reconhece, ainda que o faça a custo, que as estatísticas dão 12,2% da população activa como desempregada. É quase 1 em cada 8 portugueses em idade activa. Entre os 52 candidatos da coligação não há ninguém que esteja desempregado? Onde pararão eles então, que a lista de candidatos do Portugal à Frente não conseguiu encontrar nem um para fazer parte das suas listas?...

GRANDE DEBATE


Nesta época de Grandes Debates, em que a comunicação social se mostra insaciável com os que há, pedindo sempre mais, propicia-se esta recordação de um Grande Debate pelos Monty Python. O tempo (o sketch data de 1969) e as circunstâncias fizeram com que o tema perdesse a premência. Mas valha a verdade que, depois destes anos todos e quanto ao formato que pretende parodiar, muitos dos debates não são substantivamente mais interessantes nem mais úteis que este. O que se perpetua é o tabu do jornalista: porque é que ele não vota?

É PRECISO QUE TUDO MUDE...

Ao princípio conhecemo-lo formulado pelo italiano Lampedusa mas é entre os alemães que eu o vejo recorrentemente a ser praticado em caso de bronca das grossas – a ponto de, quando leio a notícia de que o chairman da Volkswagen se demitiu, me ficar a suspeita que o terá feito para cortar cerce as acusações e especulações que se seguem quanto à reputação do grupo e não por qualquer questão de princípio. Recordo. Em Novembro de 2000 foi registado o primeiro caso de BSE nos Açores. O que era inaudito! Pela sua posição geográfica, o arquipélago estava naturalmente isolado da contaminação. Esta tivera que ter tido lugar na origem – e a vaca era alemã. Começou-se a puxar a meada da história de uma vaca infectada com BSE num país onde a doença nunca se registara e descobre-se que afinal houvera um esforço deliberado das autoridades alemãs para omitir os seus casos de BSE, cujo reconhecimento teria levado Bruxelas a colocar as suas manadas em quarentena, bloqueando o comércio externo, como acontecera com outros países da UE (Reino Unido, Espanha e também Portugal - só no continente). Escândalo! Pouco mais de um mês depois, em princípios de Janeiro de 2001, houve que fazer saltar dois ministros federais, o da agricultura e a da saúde, para que Giuseppe de Lampedusa tivesse mais uma vez razão. Porque nada mais aconteceu. É assim que os problemas se resolvem na Alemanha, quiçá consequência dos traumas dos Julgamentos de Nuremberga. Responsabilidades: todas e assumidas o mais cedo possível. Sancionamentos: o mínimo ou nenhum; sabem que, dos cerca de 6.500 guardas das SS de Auschwitz que sobreviveram à Guerra, só 790 (12%) foram presentes a tribunal? E que desses, 750 (95%) saíram condenados? Os alemães mantêm uma relação com a culpa muito bizarra... A fotografia é de Andreas Heumann, tirada no Norte da Alemanha. Estranhas paragens aquelas em que até as aves marinhas parecem dispor de um instinto natural para a ordem unida, alinhando-se pela direita...

Adenda: Este texto continha originalmente dois erros, e dos grosseiros, sobre a citação e a pessoa de Lampedusa, que agora rectifiquei. O que torna a escrita nestes suportes diferente daquilo que se fazia no passado é que, em querendo-o e estimulando-o, a qualidade do que aparece publicado pode resultar não apenas da inspiração e do trabalho de quem escreve mas também do grau de exigência e de intervenção de quem lê.

23 setembro 2015

O PODER INTIMIDATÓRIO DO ORIENTE

Muito por culpa do sucesso deste livro de Alain Peyrefitte, publicado em 1973 mas popularizado entre nós já depois do 25 de Abril, sempre associei a posição das elites francesas a um certo temor reverencial e também fascinado pela China e pelo Extremo Oriente em geral - talvez consequências de Dien Bien Phu? Mas foram precisos 40 anos para eu encontrar a fotografia que sintetiza essa impressão. O seu autor é Marc Riboud e nela Jacques Chirac contempla com um ar indiscutivelmente apreensivo uma estátua que apenas vemos de costas, mas cujo estilo budista e origem asiática é facilmente identificável.

OS QUE ESTAVAM NA «FESTA» DA INAUGURAÇÃO E QUE NÃO APARECEM PARA A DE ENCERRAMENTO

Em fim de ciclo vale a pena recordar aquilo que foi dito no seu princípio e quem o disse. Entre estes, houve quem entretanto tivesse falecido (Silva Lopes), quem tivesse mudado de opinião (Ferreira Leite e Bagão Félix) e quem fosse o mesmo desalinhado inconsequente de sempre (Medina Carreira), mas o que impressiona em todos os outros (alguns que não aparecem nomeados abaixo) é como eles permanecem discretos, não se atrevendo a publicitar qual a sua avaliação destes últimos quatro anos. Descontado Catroga, que não conta, comprado pelas sinecuras da EDP, e Borges, infelizmente falecido, não apareceu até agora um senador da área das finanças (Cadilhe, Beleza, até mesmo, em desespero, Braga de Macedo...) que pareça disposto a dar a sua bênção indulgente ao caminho percorrido pelo governo de Passos Coelho nos últimos quatro anos. Ele há silêncios que valem por milhares de palavras...
Vítor Bento, José da Silva Lopes, Faria de Oliveira e Guilherme de Oliveira Martins
Vítor Bento (outra vez...), Medina Carreira, Bagão Félix e Manuela Ferreira Leite.

22 setembro 2015

DOIS BANAIS TRABALHOS DE MERDA

Nas páginas das superficialidades do jornalismo on-line parece estar instalada a cultura de que os factos são apenas impertinências que podem estragar o verdadeiro impacto de um artigo. E o melhor é até deixar que isso se note, preservando os artigos como estão, com as asneiras na sua pureza original. Aceita-se que naquelas páginas os erros nunca são importantes porque os assuntos também o não são, mas é sempre incómodo para quem os lê, talvez porque tenha um qualquer interesse no assunto abordado, descobrir que quem o escreveu negligentemente demonstra não ter interesse algum pelo que fez. Pior que isso: deixa o comentário com a rectificação esquecido na caixa dos comentários sem lhe pegar. Nos dois exemplos anexos, quem escreveu a notícia da TSF, não percebe patavina de ténis e quem escreveu a do Jornal de Notícias não viu um episódio que fosse da série televisiva Modern Family. Além disso, ambos se estão cagando para o que fizeram. E quem lê as notícias apercebe-se disso. Se é para dar essa imagem de vós, TSF e Jornal de Notícias, suponho que é preferível não se dedicarem a este ramo do jornalismo.

OS VELHOS E OS NOVOS PRETORIANOS

Reencenando uma tradição milenar, que já se praticava na Roma Antiga, a guarda presidencial do Burkina Faso depôs o presidente que era suposto guardar para colocar no lugar um dos seus. E, prosseguindo o que também costuma acontecer tradicionalmente nesses casos, o resto do exército reagiu, concentrando-se sobre a capital do país e centro do poder, para que os seus oficiais exerçam aí os seus direitos. Já era assim em 68 d.C., aquando do assassinato do imperador Nero, que foi substituído sucessivamente por Galba, Otão, Vitélio e Vespasiano em cerca de um ano e pouco, e voltou a acontecer agora em 2015 d.C., com a vantagem da motorização das tropas ter reduzido a dias aquilo que outrora levava meses a decidir-se. Fora da Europa e do Mundo civilizado, os pretorianos, os militares que rodeiam aqueles que detêm o poder, ainda usam estes velhos truques para se promoverem e condicionarem quem o detém.

Na Europa, contudo, as coisas sofisticaram-se. Os militares já não têm qualquer interferência nos jogos de poder. O poder político, para citar aquela imorredoura expressão de Mao Zedong, já não nasce dos canos da espingarda, agora ele apresenta-se dependente da concordância dos mercados. E por isso os novos pretorianos, os que rodeiam o poder, são já de outro estilo, já não se apresentam como militares intrépidos (como por cá fizeram durante o PREC), tornaram-se antes economistas de alegado gabarito. Onde antes se contavam espingardas e a fidelidade dos quartéis, hoje divulgam-se as opiniões das agências de notação financeira. Não imaginamos esses novos pretorianos a conspirar para derrubar ostensivamente quem ocupa o poder, mas o seu papel principal não é esse, é sustentar o regime que está, defendendo-o à outrance, bem para lá do razoável. Carlos Moedas e Bruno Maçães (abaixo) são exemplares deste novo género de pretoriano...
Agora, pondo a questão na sua verdadeira perspectiva quanto ao que é realmente o Poder, além dos nomes de Hitler, Goering, Himmler, Goebbels, Ribbentrop, que nos ocorrem naturalmente, como é que se chamava mesmo o ministro das Finanças do III Reich?...

21 setembro 2015

O BLOCO DE ESQUERDA É UM PARTIDO «FOFINHO»

O Bloco de Esquerda está a ser dirigido por uma comissão permanente composta por seis membros onde estão representadas todas as quatro(!) moções que se apresentaram à última convenção daquela formação política, que teve lugar há apenas dez meses. Nessa comissão permanente Catarina Martins só se distingue por ser a sua porta-voz. Nada mais há que a distinga dos seus cinco camaradas. Sem qualquer corrente maioritária em qualquer dos três órgãos de direcção¹ e sem nenhum dirigente formalmente empossado para a dirigir, o Bloco de Esquerda é, entre as formações políticas com representação parlamentar e de longe, a que apresenta a estrutura mais frágil. O que lhe poderá acontecer no dia das eleições no caso de um mau resultado eleitoral é perfeitamente imprevisível. O mesmo se dirá em relação às opções e atitudes do partido perante o quadro político que se formar. E, no entanto, estando a campanha eleitoral a decorrer já há meses, não me lembro de ter visto esse tópico sequer aflorado. Catarina Martins está a ser subentendida como dirigindo-o quando ela apenas está mandatada para falar em nome do Bloco. E suspeito que nas duas semanas que restam até às eleições esse assunto e a visada também não virão a ser escrutinados pelos jornalistas. Ele há partidos que nasceram abençoados por quem noticia e, apesar de alguma nova concorrência do Livre, para a classe dos jornalistas o Bloco de Esquerda continua a ser aquele partido fofinho onde os seus membros até parecem uns peluches.

¹ Comissão permanente (6), comissão política (18) e mesa nacional (79).

ANOITECER NA EUROPA

Gosto muito desta fotografia porque ela acentua-nos o quanto é a própria natureza a mostrar quotidianamente o quanto há que respeitar as especificidades da geografia da Europa: eles em Bruxelas e em Berlim já estão de luzes acesas e nós por cá ainda temos Sol por mais um bocadinho...

AS TABULETAS DAS ENCRUZILHADAS DA EUROPA

Se tenho uma só certeza a respeito das consequências da vitória de ontem do Syriza na Grécia, é que ela nos vai poupar por cá a muitas páginas e páginas de reflexões de conteúdo moral que o desfecho oposto iria produzir, como se essa hipotética derrota do Syriza fosse o corolário natural de uma bela história de conteúdo pedagógico: quem se quer opor à realidade dos mercados, lixa-se. Com a vitória de Tsipras perdeu-se uma excelente fábula. Claro que há aquelas excepções mais irredutíveis, redigidas em termos tais que me fazem lembrar aquele comentário de um oficial alemão que, apreciando as parisienses e os seus vistosos chapéus da saison printemps/1941, comentou: nem imagino como seriam os chapéus da moda se tivessem sido vocês a ganhar a guerra!

20 setembro 2015

IAN DURY


Why don't you get back into bed?
Why don't you get back into bed?
Why don't you get back into bed?
Why don't you get back into bed?
 
Reasons to be cheerful, part 3
1, 2, 3
 
Summer, Buddy Holly, the working folly
Good golly, Miss Molly and boats

 
Hammersmith Palais, the Bolshoi Ballet
Jump back in the alley and nanny goats

 
18 wheeler Scammels, dominica camels
All other mammals plus equal votes

 
Seeing Piccadilly, Fanny sniffin' Willie
Being rather silly and porridge oats

 
A bit of grin and bear it, a bit of come and share it
Your welcome we can spare it, yellow socks

 
Too short to be haughty, too nutty to be naughty
Going on forty no electric shocks

 
The juice of a carrot, the smile of a parrot
A little drop of claret, anything that rocks

 
Elvis and Scotty, the days when I ain't spotty
Sitting on a potty, curing smallpox

 
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, 1, 2, 3

 
Reasons to be cheerful, part 3
 
Health service glasses, gigolos and brasses
Round or skinny bottoms

 
Take your mum to Paris, lighting up a chalice
Wee Willie Harris

 
Bantu Steven Biko, listening to Reko
Harpo Groucho Chico

 
Cheddar cheese and pickle, a Vincent motorcycle
Slap and tickle

 
Woody Allan, Dali, Domitrie and Pascale
Balla, balla, balla and Volare

 
Something nice to study, phoning up a buddy
Being in my nuddy

 
Saying okey-dokey, sing-a-long a Smokie
Coming out a chokie

 
John Coltrane's soprano, Adie Celentano
Beuno Colino

 
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, 1, 2, 3

 
Yes, yes, dear, dear
Perhaps next year


Or maybe even now
In which case

 
Woody Allan, Dali, Domitrie and Pascale
Balla, balla, balla and Volare

 
Something nice to study, phoning up a buddy
Being in my nuddy

 
Saying okey-dokey, sing-a-long a Smokie
Coming out a chokie

 
John Coltrane's soprano, Adie Celentano
Beuno Colino

 
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, part 3
Reasons to be cheerful, 1, 2, 3


Sex and drugs and rock and roll
Is all my brain and body need
Sex and drugs and rock and roll
Are very good indeed
 
Keep your silly ways or throw them out the window
The wisdom of your ways, I've been there and I know
Lots of other ways, what a jolly bad show
If all you ever do is business you don't like
 
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Is very good indeed
 
Every bit of clothing ought to make you pretty
You can cut the clothing, gray is such a pity
I should wear the clothing of Mr. Walter Mitty
See my tailor, he's called Simon, I know it's going to fit
 
Here's a little piece of advice
You're quite welcome it is free
Don't do nothing that is cut price
You know what that'll make you be
 
They will try their tricky device
Trap you with the ordinary
Get your teeth into a small slice
The cake of liberty
 
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and rol
 
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex, drugs, rock, roll, sex, drugs, rock, roll

DO AG!R PARA O PѠSAR

Estamos rodeados de anúncios públicos de socialites grávidas e de fotos clandestinas de actrizes nuas. Parece ser importante mas confesso não saber – nem querer saber – quem são a maioria de umas e outras. Mas tenho que abrir uma excepção para Joana Amaral Dias, que conseguiu combinar aqueles dois atributos (a gravidez e a nudez) para projectar a sua imagem para as próximas eleições legislativas, num arrojo de fazer lembrar uma Cicciolina decorosa do século XXI. Recorde-se que a porno-star húngara, que também já fundou dois partidos e militou em muitos mais, alcançou quando da sua eleição em 1987, cerca de 20.000 votos, o que é sensivelmente o mesmo que será necessário para que Joana Amaral Dias seja eleita. Sê-lo-á?

19 setembro 2015

SÓ PARA ENTENDIDOS...

Só os entendidos em BD saberão que as personagens destes dois álbuns de Lucky Luke, mesmo se idênticas, não são as mesmas. Os irmãos (Bob, Bill, Grat e Emmett) Dalton de Fora da Lei (1954) não são os primos (Joe, William, Jack e Averell) Dalton de Os Primos Dalton (1958). Se a primeira aventura se pretende uma paródia séria, a segunda é uma paródia da paródia anterior, perdendo toda a seriedade: por alguma razão Lucky Luke é o alvo em cima, e os (primos) Dalton os alvos em baixo.

AS CORES DO SIMBOLISMO

Não é a primeira vez que aqui me refiro aos quadros (em estilo de fotografia) de Norman Rockwell nem, sobretudo, é a primeira vez que aqui insiro o quadro acima, intitulado O Problema com que todos convivemos. O que Rockwell pintou foi um episódio real, o primeiro dia de escola de uma criança de Nova Orleães de 6 anos chamada Ruby Bridges, a primeira criança negra a frequentar uma escola que fora até aí segregada. A fotografia abaixo dessa mesma ocasião é originalmente a preto e branco e reaparece agora colorida artificialmente, mas o padrão das cores escolhidas por quem a coloriu (Dana Keller) faz-nos perceber as intenções de Norman Rockell - que só pintou o seu quadro três anos depois dos acontecimentos terem tido lugar - quando deu outras cores ao vestuário dos intervenientes, não apenas o clarear dos fatos dos guarda-costas da criança, numa sugestão de fatos leves, de clima tropical e consequentemente do sul dos Estados Unidos, como sobretudo a opção pelo branco inocente do vestido da pequena Ruby. O totó na cabeça, também branco, está colocado noutro sítio porque o penteado, esse é subtilmente menos afro que o original.

18 setembro 2015

A ESTUCAGEM DA NOTÍCIA ESCRITA

A notícia começou originária da Lusa e logo com um erro grosseiro propagado por todos os órgãos de informação (respeitáveis ou não) que a copiaram sem revisão: a tradução da expressão francesa original grande armée fora feita às três pancadas e o que era o grande exército tornara-se numa grande armada, tanto mais ridícula quando o episódio narrado se passa numa cidade bem no interior da Alemanha. Mas o ridículo não acaba aí. Quando as caixas de comentários de alguns dos órgãos de informação respeitáveis se começaram a encher de observações ao erro, houve quem não ligasse, e houve quem o fizesse, mas com tanta falta de zelo que nem se preocuparam uma e outra vez com a concordância da frase - o exército continua tão feminino como o era a armada...
Este é o género de negligência que antigamente estávamos habituados a encontrar naquelas profissões de colarinho azul, o estucador madraço da construção civil a que se mandava encher o buraco na parede e que o fazia mal e porcamente deixando lá uma depressão perceptível a metros de distância. Como agora só existem trabalhos de colarinho branco, vemos reaparecer a mesma cultura mas instalada na nobre profissão de jornalista. Ou então, já não tão nobre...

REVIVER FESTIVAIS COM A OBRIGATÓRIA CRÓNICA DO DIA SEGUINTE (1968 e 1969)

Para os nostálgicos como eu, os festivais RTP de outrora estão hoje perfeitamente acessíveis assim como a recordação daqueles momentos. O que eu ainda não vi feito (e por isso aqui o faço) é a combinação entre esses festivais e as crónicas formadoras de opinião que eram publicadas nos jornais do dia seguinte – neste caso as de Mário Castrim no Diário de Lisboa para os festivais de 1968 e 1969. Quem as escreveu, quando as escreveu, nem imaginaria que, no futuro, os seus comentários (normalmente negativos no caso de Castrim) pudessem ser intervalados com o objecto das suas críticas para que o leitor avaliasse da sua pertinência e razoabilidade. Mas, melhor que as críticas tantas vezes corrosivas que faziam o estilo de marca de Mário Castrim, o que faz valer a pena ler ainda hoje estas crónicas tão cínicas e, ao mesmo tempo, tão ingénuas, parecem-me ser os seus entusiamos elogiosos como aqueles que acompanharam a crónica da vitória de Desfolhada no festival de 1969, um poema viril (de Ary dos Santos) para uma canção eslava, carácter acentuado pelo penteado de Simone, semelhante (...) aos gorros moscovitas (!).

1968

Felizmente o desfile principiou (...), Mirene Cardinalli, o gesto miúdo, a voz a morrer-lhe na garganta, a perder o pé da orquestra, não se percebe uma palavra do que diz, e ainda por cima o som começa a pregar-lhe a partida, som sentimental com tremidos na garganta, o vento poder-se ir embora porque Mirene não vai com ele.
Mendes diz-nos que «á primeira se segue naturalmente a segunda...» e a Tonicha ali está como representação viva do axioma.

Tonicha bem disposta. Os olhos ratinhos a dominar a situação. Um sorriso a escapar-se para os cantos da boca. Marialva ou Emma Peel? A câmara não tem rebuço em nos apresentar uma cançonetista em rodagem para o êxito. Tonicha está confiante. Consultou a pitonisa e esta garantiu-lhe o passaporte para Londres. Tonicha não tem a menor dúvida. Ele sabe, há meses, que aquilo havia de acontecer: Londres era o seu destino. Tonicha, com a segunda canção, apresenta-se já como grande triunfadora.

Nicolau Breyner é menos ambicioso. Não sabe bem o que quer, quer apenas um pouco mais, Nicolau Breyner transformado em Nicolau Sanremo, entretido em tomar aquilo muito a sério, chega a ser comovedor tanto dramatismo, e para quê, meus senhores!, não sei porquê mas pareceu-me que o tom sério de Nicolau tinha muito de gozo, de piada, de fábula...

João Maria Tudela, não. Sério, mas sério mesmo. Ali nunca se brinca. Muito menos com andorinhas e com vento. É pecado. Olhos em alvo, enquanto furiosamente os violinos fazem cócegas. Uma canção em perfeita linha tudélica, um Tudela demasiado andoríneo, longe e aéreo como uma visão. Com a grande vantagem, sobre todos os concorrentes, de uma dicção que é o seu melhor trunfo.

José Cid cantou a “Balada pra D. Inês”, o único instante em que o crítico foi obrigado a um momento de reflexão. Aí aconteceu alguma coisa. A letra, é verdade, tem um traçado medíocre. Banalíssima, não há nela um verso a arder. A melodia segue a esteira que “El-rei D. Sebastião” veio desbravar. No entanto, quer pelo tema, quer pela tentativa de procurar um caminho de construção melódica que pode ser frutuoso, esta “balada” foi a pequena árvore desta planície campeã da banalidade.

Em relação a Calvário e a Simone de Oliveira verifica-se um fenómeno semelhante: o público está saturado deles e eles estão saturados de si próprios. Calvário é correcto a cantar, mas nada mais do que isso. Calvário distancia-se dia a dia dos gostos do público. Quando canta, Calvário dá tudo, como bom profissional que é. Dá tudo a quem não merece nada: a canção não vale aflitivamente o menor esforço. Calvário tem a pouca sorte de certos médicos a quem só vão parar casos fatais.

Simone de Oliveira cantou duas obras-primas da mediocridade. Cantou-as sem a mínima convicção desgarrada, nitidamente perdida na primeira interpretação. Coube-lhe ainda o segundo lugar no mau gosto da noite na parte declamada da última canção, em que esteve perfeitamente dentro da maneira e do espírito revisteiro do Parque Mayer. O género não lhe quadra. Fado Falado houve um – e esgotou a matéria.

Propositadamente guardei para o fim a canção escolhida para representar a Televisão portuguesa em Londres. Chegando aqui, não vale nenhuma atitude de indignação ou de impaciência. Apenas o silêncio se justificava se, muitas vezes, o silêncio não servisse de capa à cumplicidade...

É preciso que se diga que na canção deste ano tudo se conjuga para fazer dela a pior não apenas de todas as canções vencedoras, mas a pior de todas as canções do festival e do espectáculo de ontem. A letra? Escandalosamente, gritantemente coisa-nenhuma, vácuo perfeito. A melodia? Qualquer coisa que ninguém entoará nunca, morta antes de nascer.Carlos Mendes foi o espectáculo da noite no que se refere ao mau gosto das atitudes, ao amadorismo da interpretação. Em qualquer desses planos o intérprete somou um negativismo como até hoje não acontecera em nenhum festival de Televisão. Claro que até Abril será mentalizado e ensaiado. Mas para Londres, espere-se o pior. (Não, enganou-se Mário Castrim. Em Londres a canção ficou classificada num medíocre 11º lugar entre 17 concorrentes mas, mesmo assim, foi a melhor classificação de uma canção portuguesa até aquela data).

1969
Directo. Com uma breve paragem para meter anúncios. Palavras, poucas. Havia que resolver o problema das canções, resolver a questão de um festival, dessa ponte por debaixo do qual tanta água passou. Água nem sempre muito clara – nem muito tranquila...
O problema não tardaria a ficar resolvido. Como em certos combates de boxe, terminou ao primeiro «round». Quando Simone de Oliveira acabou a sua explosão, nenhuma dúvida restava. Tudo o mais que viesse faria apenas figura de «damas de honor». O «swing» simoniano acertara em cheio: o adversário estava no tapete adormecido pesadamente. Nem sequer era preciso contar até 10...
...Mas as 10 canções tinham de vir. Pode falar-se de «suspense»? Pois fale-se. Talvez uma inquietação, o pressentimento de uma surpresa maior. Talvez – quem sabe? – pudesse vir uma canção ainda melhor para tornar este festival ainda mais memorável. Havia nove cartas na mesa. E há artistas que conseguem tirar da manga as surpresas mais surpreendentes. Falava-se muito, por exemplo, em Daniel...

Infelizmente, Daniel não pôde dar a medida exacta do seu temperamento de cançonetista. A voz foi, desde o início, abafada pela orquestra, perigo que eu temia. Eu e os técnicos encarregados do negócio. Perigo que, pelos vistos, não foi possível evitar.
Por outro lado, a toada que era a sua, acabou por ficar quase irreconhecível no ribombar complicado da orquestra. A límpida voz de Daniel casa-se mal com as estridências inconsequentes e dominadoras de tamanho conjunto.
No entanto, o jovem cançonetista apresentou-se com uma sobriedade exemplar. Simultaneamente alheado e lúcido. Sem a viola onde costuma guardar as mãos, preferiu não fazer uso delas. Não as queimar. A presença de um rosto jovem onde se espelhavam, em exageros, as inflexões da canção, foi das notas mais simpáticas do festival.
A canção, dadas embora as limitações apontadas, merecia melhor sorte, o poema de Fernando Vieira e a melodia enraizada em tradição portuguesa eram dois motivos poderosos para garantir melhor posição a «Fios de Esperança».

Teresa Paula Brito não conseguiu dominar o seu nervosismo. A voz saia-lhe abafada da garganta. Os gestos incontrolados ou mecânicos. Muitos versos lhe ficaram perdidos na memória. Jovem, fica-lhe muito tempo para recuperar. E talvez não seja uma cançonetista de festivais, quem sabe. Talvez venhamos a ter melhores notícias dela quando cantar sem competir. Ignorará ainda Teresa que numa sociedade de base mercantil se vive sempre em competição?

Lilly Tchiumba foi a intérprete de «Flor Bailarina». Cantou uma canção que não era para ela e da maneira que não era a sua. E vestida de modo que a não favorecia. Ai que saudades eu tenho da Lilly nada de cerimónias, que saudades tenho da Lilly de tanga e descalça a cantar e bailar á maneira da sua gente! Que saudades eu tenho de uma Lilly-espectáculo, muito longe desta Lilly parada, sem nervo! Que saudades de uma Lilly não parecida com ninguém, a milhas desta que se parece com todas! A ela, que tão bem sabe mover os pés, mandaram-lhe que desse ás mãos para cima e para baixo, pesadamente como se avalisasse a sua própria derrota...
Lilly Tchiumba, que por alguma razão escolheu este nome artístico, vai duramente aprendendo que o abandono da autenticidade se paga caro...

Valério Silva não tinha muito a defender. Cabia-lhe defender bem, contudo, o que fora confiado á sua guarda. E nem isso fez. Vestiu com exagero de babeiro; cantou com exagero de expressões. Fez largo consumo de braços e olhos. De punho cerrado apertado ao coração, até aos 10 dedos esbanjados, atirados á cara do infinito, de tudo houve em Valério. Tudo é, muitas vezes, igual a nada.

Madalena Iglésias tinha esperança na sua canção. Esperanças fundadas. Poema de não envergonhar ninguém, se descontarmos uns quantos (muitos...) por cento de literatice, um fundo musical a recordar Gershwin e (o que era muito importante) o que pode considerar-se a melhor orquestração do torneio. Acrescente-se que Madalena defendeu com a maior seriedade a sua canção – embora a perturbação fosse visível. Naquela hora, Madalena sentia o chão fugir-lhe debaixo dos pés. A sobriedade de ontem nada tinha de comum com a euforia ridícula de «Ele e Ela». Ontem, terá sentido que não agarrava o público. O seu gesto final foi a assinatura do tratado em que se considerava vencida.

Também Artur Garcia preferiu o caminho da simplicidade. Foi muito diferente do Artur Garcia exuberante de outros tempos. Infelizmente para si, a canção, quer musical, quer poeticamente, não lhe dava a menor «chance». Perdeu-se a canção? Perdeu-se o que estava perdido. Mas salvou-se o cançonetista do naufrágio. Valha-nos isso.

O «Duo Ouro Negro» não fez mais do que uma imitação de si próprio. A pior interpretação da noite. O balancear mecânico, papagueado, dá-que-dá, sem um mínimo de imaginação, faz-que-anda mas-não-anda e aquele final, aquele final de aflição, esquecidos de meter uma segunda com o automóvel já a meio da subida...
«Ouro»? Talvez. Mas de pechisbeque.

O público bateu palmas. Gostou de Fernando Tordo. Teve alguma razão para isso. Tordo não esteve mal nem se mostrou nada impressionado. A sua canção, ridiculamente arcaica, fazia lembrar, no que respeita á poesia, aqueles móveis do século XVII fabricados agora em Guimarães. O publico foi – e com razão – mais sensível á melodia que procurava uma raiz nacional. Raiz velha, sangue novo. Sangue novo não havia na «Cantiga». Tenho no entanto a impressão que o nosso cançonetismo ganhou, a partir de agora, mais um intérprete.

O festival encerrou com o fôlego, o ímpeto, o a-todo-o-gás, de Maria da Fé. Não sei se a canção se aproveitava do «folclore» ou do «folclorucho». A sombra de Amália (e de certas cançonetices de Amália...) nunca deixou de estar presente na interpretação de Maria da Fé. Hum... Quer-me parecer que a Beira Baixa enxertada em Alfama não dá frutos saborosos.
Do que se disse no princípio desta crónica se pode já concluir que «Desfolhada» venceu com inteiro merecimento. A qualidade do poema teve a justa correspondência na interpretação de Simone de Oliveira, que chamou a si, de um só golpe, a intuição e a experiência. Nada na sua interpretação foi deixado ao acaso. Foi violenta, ou impetuosa, ou dolente – quando devia ser. Deu a cada frase, a cada palavra, a cor que lhe convinha. A força com que arrancou, descolou todos os competidores desde a partida. Cheguei a temer o seu aspecto demasiado «Fedra». A breve trecho, até isso esqueceu. Simone foi ontem a locomotiva pesada da canção ligeira. As suas unhas estavam cravadas na «Desfolhada». O mais forte ditava a sua lei.

Claro que não há apenas Simone. Ali, Simone é mais uma peça na engrenagem. O poema de José Carlos Ary dos Santos é trabalho de poeta e não de fanqueiro, como habitualmente acontecia. Ary dos Santos, que já merecia ser lido, merece agora ser cantado. O seu poema está longe das muitas lamechices que infestavam os nossos ouvidos. É um poema viril. Um poema adulto a pedir de hoje em diante, para ser cantado, não uma voz – mas multidão de vozes. Este grão de milho dará uma grande seara. Com o poema de Ary dos Santos, demonstrou-se a viabilidade de uma canção ligeira mais digna, no nosso País.
A melodia de Nuno Nazaré Fernandes aproveita com muita inteligência a lição aprendida de Mary Hopkin. É uma canção eslava. O penteado de Simone fazia ainda mais carregar o semblante eslavo da canção, semelhante como era, aos gorros moscovitas.
Não nos iludamos, porém, com estas aparências. Há muito de tradição portuguesa na «Desfolhada». Nela se descobrem ainda ecos, toadas de canções infantis da nossa terra. As palmas, essas, fazem parte do folclore universal.
Canção que será assobiada e cantada. Canção que iremos bailar. Canção com a qual poderemos dar as mãos e fazer roda, segue, canção, o teu destino de canção ligeira até que, depois de queimada no frenesim do quotidiano, te desfaças em fumo, desapareças, e já talvez de ti ninguém se lembre!

A Apresentadora
Está muito longe de se considerar de bom nível a actuação da apresentadora, Lurdes Norberto. Com isto não quero referir-me apenas aos vários enganos de que foi vítima, a acusar um nervosismo de que a julgávamos imunizada pela prática do palco em obras, essas sim, de responsabilidade.
A verdade é que Lurdes Norberto nunca esteve natural, nunca se alheou de si própria. Parecia uma principiante a ler a sebenta. E eram, aquelas primeiras palavras, tão fáceis de saber de cor...
Presença ninguém lha negará. Mas isso não é o bastante. A um apresentador exige-se o desembaraço, o espírito, o poder de encaixe, o sentido de reportagem que faltaram por completo a Lurdes Norberto. Por outro lado, o cabelo louro e o vestido branco confundiam-se com os tons brancos ou claros dominantes no cenário. Não vai já sendo tempo de se pensar a sério nestes “pequenos” pormenores?
Organização
Casimiro, o cenógrafo deste festival, preveniu-nos logo na reportagem do «Horizonte» que não iriamos ter um festival de cenários, pois o festival era de canções. Com isto queria significar que de maneira nenhuma procuraria desviar a atenção dos telespectadores numa concorrência desleal.
Disse e cumpriu. Imperou a simplicidade de processos e com isso só lucrou o festival da canção.
Notória foi igualmente a deficiência na captação de som. Alertado estava todo o mundo sobre as menos boas condições acústicas do local. Pergunto se tudo se terá feito para vencer as dificuldades. Se, nesse esforço, colaboraram técnicos, músicos, orquestradores. Se não haveria ali orquestra a mais...
A realização, de Oliveira Costa, distribuiu o mal pelas aldeias. Ela pecou pelos defeitos que envolvem estas realizações feitas em salas que não apresentam as condições mínimas para o efeito. As quatros câmaras fixas provocaram as mutações bruscas responsáveis de tanta quebra de ritmo. Preocupado com o aspecto funcional do seu trabalho, o realizador descurou outra faceta importante: a da reportagem, a relação de ambiente, a relação entre a realidade a viver e a realidade a dar, a ver. As câmaras não foram o ponto de encontro entre dois mundos. Não sorriram uma única vez. Que diabo, não estávamos positivamente no Cabo Canaveral em lançamento lunar de grande gala...
Apesar destes encómios e recomendações de Mário Castrim, em Madrid, onde se disputou o Festival da Eurovisão desse ano, a canção ficou classificada em penúltimo lugar entre 16 concorrentes.