Houve um episódio que foi recentemente contado pelo jornal suíço francófono Le Matin, que se refere ao desagrado que a Chanceler Ângela Merkel manifestou quanto ao comportamento abusado, demasiado latino do Presidente francês Nicolas Sarkozy por ocasião dos seus encontros. Foi um episódio que levantou alguma celeuma, mas que foi prontamente desmentido, mas que, na minha opinião, tanto pode ser verdadeiro quanto falso. O episódio só parece importante porque as relações franco-alemãs, apesar de oscilarem entre a aproximação e a rejeição com a regularidade de um ponteiro de metrónomo, têm vindo, progressivamente, a rodear-se de uma coreografia de telenovela, personalizada nos responsáveis políticos de cada época (abaixo), num esforço mediático de escamotear a rivalidade duradoura entre os dois países. Uma rivalidade que desde 1945 se exprime, felizmente, de uma forma pacífica. Porque, recordemos aqui, numa sondagem realizada naquele ano em França, 76% dos franceses queriam que a Alemanha fosse dividida; 59% que uma parte da sua população fosse deportada; 80% apoiava a proposta do General Leclerc de fuzilar 5 alemães por cada ataque às tropas francesas; 67% eram a favor de anexar o Estado alemão do Saar e 87% confiava que os soviéticos soubessem punir devidamente os alemães (apenas 9% confiavam nos norte-americanos).
Não sei como anda a vossa memória quanto às personagens dos desenhos animados da Merrie Melodies, mas considerando que as relações franco-alemãs partiram de um ponto tão baixo desde 1945, manda a postura de estadista de Ângela Merkel (a ser verdade o que o Le Matin escreveu) que ela se sacrifique um pouco às investidas à Pepé Le Pew (ver acima) do seu colega Nicolas, nem que seja em prol da unidade europeia e da paz entre os povos…
Não sei quantos dos que me lerão, saberão e ainda se lembrarão de um programa de rádio que dava pelo nome de Quando o Telefone Toca… Tratava-se de um programa popular que recorria a duas peças de tecnologia que a partir do final da década de 60 (prolongando-se pelos anos 70 e 80), tinham chegado ao alcance das classes populares: um telefone (acima) e um transístor (abaixo) para ouvir rádio. E o formato do programa estava concebido para permitir que o ouvinte se ouvisse a si próprio como participante do programa!
De forma antecipada, porque o programa não era transmitido em directo, havia que ligar para um número de telefone, onde, antes de tudo, havia que dizer a frase, que não passava de um qualquer disparate promocional ao produto que patrocinava o programa (normalmente destinado aquele segmento), condição indispensável para que se pudesse pedir a canção e o intérprete e, numa maioria do casos, considerado o momento alto da participação, o pedinte pudesse dizer o seu nome para depois ser reconhecido pelos amigos e vizinhança! Explicado o contexto, é fácil de perceber que, descontando os discos (muito ao gosto popular), o programa era até bastante monótono, com repetições sucessivas de diálogos muito semelhantes ao que aqui vou imaginar: – Boa Noite! Posso dizer a frase? – Pode. – Cosméticos Girl, beleza máxima, custo mínimo*. Posso pedir o disco? – Pode. – Era a Natércia Barreto e os Óculos de Sol. Posso dizer o nome? – Pode. – Ercília Gomes. Talvez para evitar maior monotonia, era regra do programa não deixar que repetissem as canções nem os intérpretes.
Pensava eu que este programa era o paradigma da espontaneidade popular, até que um alegado episódio, ocorrido nos princípios da década de 80, entre um famoso jogador atacante do Benfica da altura chamado Reinaldo (abaixo), e uma famosa cantora loura (que afinal parece que nem cantava…) de uma banda Feminina conhecida por Doce (mais abaixo), chamada Laura Diogo, veio desfazer-me aquela ilusão. Quanto ao alegado episódio, lamento não poder explicá-lo em mais detalhe, mas tenho a certeza que quem sabe o que era o Quando o Telefone Toca… o conhece. Pois algum engraçadinho, bem ao gosto popular para a piada brejeira, lembrou-se de ligar para o Quando o Telefone Toca…, disse a frase, quando chegou à música, pediu uma das Doce que tinha o infeliz título de Dói-Dói, e o clímax chegou quando pediu para dizer o nome: Reinaldo!... A piada espalhou-se e, como era coisa fácil de copiar, aumentou (também com a minha contribuição…) o auditório do programa, à espera de ouvir a repetição da graçola. Querem acreditar que não houve mais nenhuma oportunidade de a repetir?
Logo ao princípio do programa, no primeiro ou segundo pedido, aparecia alguém a pedir que se passasse as Doce cantando uma outra canção qualquer... e assim mais ninguém podia pedir outra vez as Doce naquele programa. Foi assim que me apercebi quão fácil era manipular o tal gosto popular que, naquele caso, genuinamente se pelava era pela parte brejeira daquela história. Pois bem, esta história já vai longa, mas era indispensável para vos explicar como esta sensação de controlo mascarado de uma falsa espontaneidade popular me faz lembrar a caixa de comentários do blogue de Pedro Santana Lopes. Creio que a quase totalidade dos blogues dos políticos que dão na televisão não têm caixas de comentários activas. No fundo, creio que até se percebe porquê. No caso do blogue de Pedro Santana Lopes trata-se de uma excepção mas apenas no sentido de que a caixa de comentários existe. Mas não do resto, porque, das vezes que visitei o blogue, fiquei sempre com a sensação que a caixa de comentários não servia para interpelar o autor. Nunca dei conta que ele a utilizasse para lá escrever, muito menos para responder ao que os outros comentadores lá escrevessem…
Tomemos o exemplo de um interessante poste sobre um dos filmes do momento, Mamma Mia que tem uma banda sonora com a música dos ABBA (nem de propósito, uma banda que era uma presença assídua no Quando o Telefone Toca…), interessante sobretudo pelo conteúdo genuíno (mas não propriamente profundo…) da crítica (relembremos que não estamos a ler uma apreciação de um qualquer, mas sim de um ex-Secretário de Estado da Cultura) e atentemos nos comentários que a crítica cinematográfica de Pedro Santana Lopes suscitou. Quase todos os comentários se podem classificar num de dois grupos: a) os íntimos, que costumam tratar o autor por Pedro e que acabam com beijinhos ou outras manifestações de ternura; b) os reverenciais, que tratam o autor por Dr. Pedro Santana Lopes (ou variantes) e que o encorajam a prosseguir inquebrantável o seu percurso e a sua postura política. Antes do Dói-Dói das Doce, eu até acreditaria que poderia ser essa tal postura a responsável por que ali não se leiam as ferocidades que certamente constariam das virtuais caixas de comentários do Abrupto ou do Causa Nossa…
Depois disso, não...
* Trata-se de uma frase genuína, de 1972 ou 1973. Na época, o Metropolitano de Lisboa estava coberto de cartazes promocionais a esta linha económica de cosméticos.
Mais do que sobre a Crise propriamente dita, e sobre as ameaças surdas que incidem sobre várias instituições bancárias que continuamos a ignorar quais são, a cobertura noticiosa actual, mesmo a especializada em economia, tem-se dispersado e entretido com o comportamento de comboio de Montanha Russa que as cotações das acções nas Bolsas Mundiais têm assumido, que é sintetizado para conveniência interpretativa nos famosos índices: o Dow-Jones, o FTSE (tratado carinhosamente por footsie), o DAX, o CAC-40, o Nikkei ou o nosso PSI-20*.
Emblemático da descrição que dei, às 00H05 de hoje o Diário Económiconoticiava que a Volkswagen se tornara na empresa mais valiosa do mundo (referia-se ao valor de capitalização bolsista) depois da Porsche ter anunciado a intenção de adquirir nela uma posição maioritária, e das suas acções se terem valorizado 93% em dois dias. No mesmo dia, às 09H10, o mesmo jornal vem noticiar que afinal a Porsche não quer comprar, mas sim vender acções da Volkswagen e que a cotação das acções perdera subitamente 46% do seu valor de abertura… O acontecimento tem todo o aspecto de uma daquelas operações de bolsa de uma transparência mais do que duvidosa, que se sabe que se fazem, mas que as autoridades nunca conseguem provar que se fizeram… É que é sempre impossível encontrar quem foram as fontes do boato que, neste caso, anunciaram que as intenções da Porsche eram diametralmente opostas às verdadeiras. Entretanto, a Porsche deve ter feito um excelente negócio se vendeu as suas acções da Volkswagen ao mesmo tempo que a sua cotação subia...
Como se constata por esta provável manobra, estas artimanhas espertas (e velhas como o mundo…) do capitalismo duro continuam por aí e, se for para o julgar através destes exemplos, até parece que ele está de boa saúde e se recomenda… O que convém que os jornais especializados façam é que sejam pedagógicos no que noticiam, distinguindo estas golpadas de Bolsa da verdadeira Crise financeira: o episódio das acções da Volkswagen foi, provavelmente, mais uma manobra sórdida da autoria de gente de aspecto respeitável…
* Respeitantes, respectivamente, às Bolsas de Nova Iorque, Londres, Franqueforte, Paris, Tóquio e Lisboa.
...quando temos que eleger aquele que consideramos o Vídeo Clip mais foleiro e mais piroso de sempre, e esquecemos os variadíssimos exemplares do nosso nacional cançonetismo, para escolher um exemplar finlandês de 1978: I wanna love you tender cantado por Armi & Danny. E quando, para além disso, em inúmerasrécitase paródiasde jovensdos liceuspor esse mundo fora o escolhem para um dos seus actos...
Entretidos com as subidas e descidas bruscas das Bolsas, sintomas da crise mundial, as páginas internacionais da comunicação social têm deixado escapar algumas notícias interessantes acerca dos previsíveis realinhamentos que essa mesma crise pode estar a causar. Uma dessas notícias foi a visita que o Primeiro-Ministro indiano Manmohan Singh efectuou recentemente ao Japão, onde se encontrou com o seu (novato nestas andanças) homólogo nipónico, Taro Aso (na fotografia acima).
E, embora a grande maioria das notícias mais recentes privilegiem habitualmente o aspecto económico e financeiro das relações internacionais, o facto mais relevante daquele encontro nada teve a ver com isso (aliás, as negociações para o estabelecimento de um acordo de comércio bilateral fracassaram…), mas antes com a assinatura de um Pacto de Segurança respeitante, entre outros aspectos, à cooperação militar e naval para a segurança da navegação no Oceano Índico.
Entre os analistas indianos realça-se o facto dos cautelosos japoneses apenas terem firmado pactos comparáveis com os Estados Unidos e a Austrália, as potências que têm sido responsáveis pela segurança, respectivamente, do Pacífico Norte e do Pacífico Sul. Esta assinatura é interpretada por eles como o reconhecimento implícito por parte do Japão do papel predominante que a Índia virá a assumir no Índico, zona crucial por onde transitam a maioria dos recursos energéticos para a sua economia (abaixo).
Claro que estes entendimentos (Índia–Japão–Estados Unidos–Austrália*) fazem lembrar as alianças europeias de há um século atrás, como foi o caso da Triple Entente, onde o papel da Alemanha de então é agora desempenhado pela China. E é evidente que o Primeiro-Ministro Manmohan Singh foi de uma correcção diplomática exemplar para, logo depois de sair de Tóquio, ter passado por Pequim para se encontrar com o Presidente Hu Jintao, a quem terá prestado todas as explicações pertinentes…
Mas depois de ter servido uma em Pequim, chegado a Nova Deli, coube a vez a Manmohan Singh de engolir a sua pílula, ao ver-se forçado a prestar declarações públicas de apoio aos esforços do Paquistão para que ele receba um auxílio financeiro de emergência do FMI. A situação financeira do Paquistão já se mostrava complicada antes do desencadear da crise (o que justifica, à posteriori, o desapego ao poder do General Pervez Musharraf), mas agora parece tornar-se cada vez mais desesperada.
Mas as condições impostas pelo FMI para os quase 3 mil milhões de euros que o Paquistão vai precisar nos próximos 30 dias implicam reformas profundas num país que de há muito se sentiu desobrigado de as fazer, jogando com os interesses norte-americanos e com a sua posição estratégica. O FMI impõe-lhes, entre outras medidas, uma redução em 30% do Orçamento de defesa até 2013, a criação de uma verdadeira máquina fiscal que recolha impostos e o direito de fiscalizar localmente essas medidas… As Forças Amadas paquistanesas já disseram que não e o problema arrisca-se a desabar em cima da primeira administração civil paquistanesa em muitos anos, a de Asif Ali Zardari (acima). As hipóteses que lhe restam, dadas as condições do FMI e que os Estados Unidos estão, aparentemente, sem dinheiro para mandar cantar um cego, são as de recorrer a um empréstimo dos seus amigos sauditas ou chineses, um par de alternativas que, evidentemente, não são nada do agrado de Manmohan Singh…
Vale a pena esmiuçar as circunstâncias em que Alan Greenspan, o antigo presidente da Reserva Federal norte-americana, pronunciou a sua contrição que foi rapidamente transposta para cabeçalhos de jornais por esse mundo fora. Foi perante um Comité da Câmara de Representantes dos Estados Unidos que decorreu o seguinte diálogo entre Greenspan (usando notas previamente redigidas) e o Presidente da Comissão (o congressista Henry Waxman), tal qual foi relatado pela imprensa:
AG – A crise acabou por se tornar muito mais vasta do que eu poderia imaginar. Aqueles de nós que apontámos para o interesse das empresas emprestadoras em proteger a solvabilidade dos detentores das acções (a começar por mim) estão num estado de choque e de incredibilidade. HW – O que eu quero saber é se estava errado… AG – Eu cometi o erro de presumir que a preservação dos interesses das organizações, especificamente bancos e outras, se organizavam de uma tal maneira que eram as formas mais capazes de proteger os seus accionistas e a solvabilidade das próprias empresas. Encontrei uma falha. Não sei quão significativa será ou se ela será permanente. Mas fiquei muito preocupado por causa disso. HW – Noutras palavras, descobriu que a sua visão do mundo, a sua ideologia, não estava correcta, não funcionava? AG – Absolutamente, precisamente.
Como se percebe, durante todos os anos que esteve no activo, Greenspan foi pago para ter sempre imenso cuidado com aquilo que dizia e ainda não perdeu o jeito. Só que, por outro lado, Henry Waxman não é propriamente um parlamentar noviço: é ele que arranca de Greenspan a síntese que depois encheu os cabeçalhos de todo o mundo. De qualquer forma, por detrás dos cabeçalhos, há que saudar a atitude de Greenspan ao dar a mão à palmatória perante a nova realidade da crise financeira.
A atitude de Alan Greenspan é tanto mais de saudar quanto contrasta com a de antigos responsáveis da Administração Bush – um caso gritante é o de Donald Rumsfeld – que se recusam a aceitar tanto a realidade como a sua contribuição para que ela seja como é - má. A um nível de notoriedade menor e de responsabilidade nula, muitos defensores das soluções económicas liberais, entretanto distraídos, também poderiam tomar este gesto como um exemplo que reconhecer um erro não é o fim do mundo...
Mas, confesso que o que gostei mais, demonstração plena do ditado popular ninguém vê o argueiro no seu olho nem que ele seja como uma tranca, foi a celebração irónica com que a confissão de Greenspan parece ter sido acolhida entre os comunistas. Afinal, como um comunista veterano, Greenspan bem podia ter usado a argumentação que foi usada por eles em 1989: aceitar a falência (óbvia) do sistema, mas depois transferir as culpas desse fracasso para razões acessórias que não os erros da própria doutrina.
Este reconhecimento de Alan Greenspan, apesar de muito criticado, parece-me assim sóbrio e essencialmente honesto. É por isso que se me torna difícil assistir sem reagir, a gags como o de Vítor Dias, onde graceja com Alan Greenspan (entre outros) num poste onde ao cabeçalho de jornal Errei ao confiar no mercado livre!, responde ele em títuloObrigadinho, chegaste mesmo a tempo! Pois quanto ao reconhecimento dos fracassos da sua ideologia, apetece-me acrescentar: …E há mesmo quem nunca lá chegue!
We shall fight on the beaches, We shall fight on the landing grounds, We shall fight in the fields and in the streets, We shall fight in the hills; We shall never surrender.
Este é um trecho de um discurso de Winston Churchill que, de tão famoso, quase dispensa tradução*. Foi pronunciado a 4 de Junho de 1940, na Câmara dos Comuns e, ao contrário do que se costuma pensar, nessa altura, para a opinião pública britânica (e também para a francesa), ainda parecia estar tudo por decidir quanto às operações em curso e as palavras de Churchill não tinham o cunho de determinação desesperada que depois vieram a adquirir. Ainda nessa mesma madrugada de 4 de Junho, a armada heterogénea de navios havia evacuado os últimos soldados de Dunquerque atravessando a Mancha (proeza que a propaganda aliada transformara num sucesso) e os exércitos franco-britânicos estavam a preparar-se para a segunda fase da Batalha de França…
Mas entre os dirigentes dos dois países já se sabia a verdade: a maior parte do material (artilharia, blindados, etc.) que torna os exércitos poderosos ficara para trás, na Bélgica e nas praias de Dunquerque e a fase da luta que se seguia tornar-se-ia rapidamente demasiado desigual. O discurso de Churchill não tardaria a corresponder à realidade. Sabe-se o resto da História e como as circunstâncias tornaram aquele seu discurso simbólico. Só que, passados todos estes anos, sempre se pode colocar a pergunta impertinente: - Será que em caso de invasão alemã os britânicos teriam lutado com todas as suas forças, como se proclama naquele discurso? Provavelmente não e, como veremos mais adiante, o próprio Winston Churchill sabê-lo-ia muito bem.
Claro que os acontecimentos nunca conduziram a que se chegasse a colocar a questão de saber quem, de entre as elites britânicas, se poderia predispor a colaborar com os alemães em caso de ocupação, tal qual aconteceu do outro lado da Mancha com Philippe Pétain e o Regime de Vichy. Mas, é evidente que os haveria (acima, o ex-rei Eduardo VIII com Hitler). Nas suas instruções para o seu embaixador em Washington, Churchill escrevia: Nunca deixe de acentuar no espírito do Presidente (Roosevelt) que, se este país fosse invadido e ocupado, constituir-se-ia um governo Quisling**para fazer a paz… E era acautelando esse cenário que o conhecido discurso continuava mais adiante: …então o nosso Império ultramarino, protegido a armado pela Frota britânica, continuaria a luta***…
Um episódio pouco conhecido é que houve territórios britânicos que estiveram sob ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial: as Ilhas do Canal (veja-se a localização abaixo), com 194 km² e, à época, com cerca de 100.000 habitantes, estiveram ocupadas de 1940 a 1945. Ali, não chegou a haver combates nas praias nem nos locais de desembarque, nem sequer nos campos, ruas ou montes. Nem sequer houve episódios maiores de resistência durante a ocupação. Para os britânicos, as ilhas não tinham grande importância estratégica, embora pudessem ter importância para a parte contrária em termos de propaganda. A solução usada por Londres foi abafar o episódio; ainda por cima quando uma das ilhas (Guernsey) foi conquistada por um piloto alemão que ali aterrou em dificuldades… Tudo ponderado, uma das razões principais para que o discurso de Churchill se tenha tornado assim tão famoso (porque nunca foi posto à prova...) é atribuível a… Adolf Hitler. Mais do que os planos de Estado-Maior, foi ele que, mesmo depois da invasão da Noruega, nunca considerou importante que se investisse na criação de uma força anfíbia que pudesse ter uma mínima capacidade de sucesso a atravessar o Canal da Mancha e invadir o Reino Unido. Sem esse desafio, a anáfora de Churchill acabou por ganhar uma ressonância épica excessiva que não deve ter correspondido ao verdadeiro espírito da época. É que, por falar em excessos e na eminência da invasão alemã, também naquela mesma altura, se criou uma cantilena satírica que também quase dispensará tradução****:
I was playing golf the day That the Germans landed; All our men had run away, All our ships were stranded; And the thought of England’s shame Very nearly spoiled my game
* Nós lutaremos nas praias, Nós lutaremos nos locais de desembarque, Nós lutaremos nos campos e nas ruas, Nós lutaremos nos montes; Nós nunca nos renderemos. ** Vidkun Quisling (1887-1945), Ministro Presidente do regime pró-alemão em vigor na Noruega entre 1942 e 1945. Em consequência dessa colaboração, em vários idiomas europeus a palavra Quisling acabou por se tornar sinónimo de colaboracionista e traidor aos interesses nacionais. *** ...then our Empire beyond the seas, armed and guarded by the British Fleet, would carry on the struggle...
**** Eu estava a jogar golfe no dia Em que os alemães desembarcaram Todas as nossas tropas fugiram Todos os nossos navios continuaram ancorados E o sentimento da vergonha inglesa Esteve quase a estragar-me o jogo.
Seria engraçado começar por contar aqui a história do Padre Miguel, que era o meu Professor de Canto Coral no Colégio Militar, e infeliz herdeiro de uma alcunha que não era sua (Carioca), mas do seu antecessor, que, talvez pelo seu carisma, transformara aquele epíteto em sinónimo de professor de tais artes musicais. Mas o que é para aqui preciso não é a narrativa dessa história mais vasta, mas apenas a do processo que nos seleccionava para o Orfeão do Colégio Militar.
Se bem me lembro, foi logo no primeiro ano e na primeira aula que o Padre Miguel nos pôs a trautear individualmente o Hino da Eurovisão. No final de um processo muito descontraído, houve uns que foram classificados para cantar na 1ª voz, outros na 2ª voz e outros ainda em voz nenhuma. O que é importante para a continuação desta história é que foi assim que descobri que, para além de ter algum ouvido musical e cantar afinado, também era necessário que se tivesse alguma potência na voz.
E é no quadro dessas pequenas curiosidades sobre música que fui aprendendo ao longo da vida, que gostava de relembrar a misteriosa (e miraculosa) carreira de cantor de Tó Zé Brito que conseguiu atravessar toda a década de 1970 apresentando-se em vários Festivais RTP da Canção, de que dou aqui um exemplo precoce como o de 1972 (acima, com a canção Se Quiseres Ouvir Cantar) e também um exemplo maduro como o de 1979 (abaixo, com a canção Novo Canto Português).
Não sei se estarei à altura de me poder substituir ao Padre Miguel, mas fico com a convicção de que Tó Zé Brito, submetido à mesma audição por que nós passámos, dificilmente conseguiria fazer parte do Orfeão Colegial… É que, se com o que ouvimos do seu desempenho na edição do Festival de 1972 se torna audível que Tó Zé Brito ainda não sabe cantar, na sua participação do Festival de 1979 torna-se patente que ele continua sem aprender… E no entanto, mesmo com a voz esmorecida…
…Tó Zé Brito conseguiu vencer um dos Festivais RTP da Canção (em 1978) integrado no conjunto Gemini, cantando uma canção intitulada Dai-li-Dou (acima), possivelmente a canção mais pateta a ganhar o certame. Os Gemini, eram um conjunto engraçado, onde a juntar à voz de Tó Zé Brito (que não se ouvia), a outra voz masculina era a de Mike Sergeant que não convinha que se ouvisse, por causa do seu sotaque escocês... Lá atrás, no coro, para se ouvir em vez deles e insuspeita de falta de potência na voz, nota-se a presença de Lena d´Água…
Entre o ambiente caótico que se vivia na Alemanha na Primavera de 1945, contava-se a questão do destino dos milhões de prisioneiros de guerra que, libertos pelo avanço dos exércitos invasores, mostravam o maior interesse a partir daí em se juntarem o mais cedo possível às suas famílias nos seus países de origem. Havia-os de quase todas as nacionalidades que a Europa contêm e ainda norte-americanos, canadianos, australianos, neozelandeses, sul-africanos, indianos, etc. Mas mesmo nesses momentos, nas fotografias para a ocasião, já aparecia sugerido o embrião daquilo que viria a ser a Guerra-Fria.
Acima podemos ver uma fotografia de prisioneiros franceses de um campo designado por Stalag XIIB, localizado em Frankenthal, na Alemanha Ocidental (no Estado actual da Renânia-Palatinado), que haviam sido libertados por unidades do VII Exército norte-americano, do General Patch. Abaixo podemos ver outra fotografia de outros prisioneiros franceses, esses libertados do Stalag IID, localizado em Stargard na Pomerânia (que hoje se chama Szczeciński e fica na Polónia). De punho cerrado, ali os libertadores haviam sido unidades soviéticas pertencentes à 2ª Frente da Bielorrússia do Marechal Rokossovsky…
O Fugitivo na sua versão cinematográfica (1993) distingue-se do original para televisão (1963-67), entre vários outros aspectos, por atribuir uma presença muito mais forte ao Tenente Gerard, aquele que era o eterno e implacável perseguidor do fugitivo Dr. David Kimball. Numa das principais cenas do filme, Kimball (protagonizado por Harrison Ford), que se encontra numa situação de vantagem momentânea (veja-se abaixo), proclama a sua inocência, apenas para ouvir estupefacto a resposta de Gerard (Tommy Lee Jones): - I don´t care*!
Este Gerard é um polícia obcecado por ser bem sucedido no seu trabalho, uma personagem concebida para gerar na audiência uma onda de simpatia, o que foi conseguido, já que a personagem foi depois recuperada para um outro sucesso de bilheteira: US Marshals de 1998. Mau grado a sua popularidade, esta personagem, pela sua falta de preocupações morais quanto àquilo que faz é uma verdadeira aberração. Alguém se lembrou que um guarda das SS de Auschwitz podia ter-se defendido, dizendo precisamente a mesma coisa?... * Não estou interessado.
Poucos se apercebem quanto aquelas colunas dedicadas aos colunáveis, pessoas que são importantes apenas porque sim, precisam das cumplicidades recíprocas de outros órgãos de comunicação para as manter importantes. Acontece com a bola, em que os programas dos comentadores (acima) da rádio e da televisão no dia seguinte ou no outro se alimentam do que vem escrito nos jornais para elaborarem os seus comentários enquanto as declarações então proferidas servem depois de material para alimentar os espaços dos jornais nos dias em que não se joga, não se jogou, nem se vai jogar. Acontece o mesmo com o jornalismo cor-de-rosa, em que se torna indispensável que haja um reconhecimento prévio dos e das figurantes (acima), adquirido nos tempos de espera dos cabeleireiros através das revistas da especialidade, para depois compreender o quem é quem das peças dos programas homólogos que passam na televisão. A propósito disso, lembro-me duma tentativa gorada dum programa do género, lá pelos idos de 1993 ou 94, quando a SIC era jovem e imatura, ao entregar a apresentação do mesmo a Helena Sacadura Cabral (abaixo) e a Mário de Araújo (vulgo Nicha) Cabral. É que os dois apresentadores propuseram-se falar das pessoas (que eles consideravam) realmente importantes. Valha a verdade que não elaboraram muito sobre os critérios que confeririam essa importância… De qualquer forma, ingenuidade de principiantes, para um dos segmentos, ninguém os mandatara como árbitros para definirem quem seria ou não importante – ainda faltava aparecer a Paula Bobone... Para o outro segmento, faltava ao programa aquelas caras que se reconheciam porque apareciam nas fotografias das revistas da especialidade – a Nova Gente, a Caras… O programa revelou-se um tremendo fiasco. Com a blogosfera, coisa nova, vivem-se agora as mesmas hesitações. Mais importante do que saber quem são os colunáveis, importa saber quem escolhe os colunáveis e quem, por sua vez, os mandata para fazer essa escolha. Mas antes disso, como nos congressos dos partidos há os colunáveis por inerência (acima), sem se explicar o que os torna inerentes. Depois há os que são convidados para a rádio, sem muita controvérsia. Depois há os que são promovidos em jornal, com muito mais controvérsia. Finalmente, há uma nova fornada que se materializa na televisão (abaixo), vindo de algures, recorrendo à mesma tecnologia do capitão Kirk do Star Trek.
Além do impacto do seu conteúdo, parece que o livro O CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES E A MUDANÇA NA ORDEM MUNDIAL de Samuel P. Huntington (1996), parece ter estabelecido um certo padrão de livro, que depois vários autores tentaram copiar. É que o livro de Huntington, para além da teoria nela contida, que fora formulada pelo autor previamente num artigo que publicara em 1993 na revista Foreign Affairs, complementa-a, para os menos dados a abstracções, com uma volta ao mundo, explicando a partir de situações concretas o que entendia por aquele conceito de choque de civilizações. Só que o tempo daqueles grandes eruditos, de uma erudição multidisciplinar (se alguma vez existiu...) é que parece ser uma coisa do passado e é assim que, à vista desarmada, me parece ter sido provável, quer pelas variações de abordagem, quer pelas de estilo, que Samuel Huntington tenha contado com a colaboração de um ou mais adjuntos para as fastidiosíssimas investigações e também talvez para algumas passagens escritas sobre todos aqueles aspectos mais pormenorizados referentes a cada uma das civilizações e a cada um dos países que foram objecto de descrições mais detalhadas para sustentarem a sua teoria. O livro THE SECOND WORLD, aparecido este ano, da autoria de Parag Khanna, e do qual não conheço até agora tradução para português europeu, é um livro que segue um percurso semelhante ao anterior, tendo sido extremamente publicitado (foi considerado pelo New York Times como a ideia do ano…) mas que acaba, na essência e na opinião do autor, por tentar levar um pouco mais além, a configuração da ordem mundial futura, embora ainda enquadrada pelas regras anteriormente definidas por Huntington. Segundo Khanna, os três Impérios (a expressão é dele) que virão a ser os dirigentes do Mundo multipolar do futuro serão a China, os Estados Unidos e a Europa. Não está a afirmar nada de particularmente novo em relação a muitas análises que se lêem por aí, a não ser por causa da ausência da Índia do elenco acima. Costuma-se dar relevo na resposta que se dá à pergunta óbvia (porque não a Índia?) ao facto de Parag Khanna ser de origem indiana, onde nasceu há 31 anos. Quanto ao primeiro aspecto, confesso não ver a relação e quanto ao da idade, apenas me dá a certeza que ele ainda não teve tempo para adquirir aquele tipo de sabedoria multidisciplinar que se adicionou ao livro, copiando o formato que fora usado para o CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES de Huntington. Neste último caso ficara a suspeita, no THE SECOND WORLD fica-me a certeza que os desenvolvimentos do livro, resultam de um trabalho de assemblagem de diversos colaboradores. E alguns desses colaboradores revelam-se não ser de grande categoria… O encarregado da História da Turquia, por exemplo, conseguiu associar a Batalha de Manzikert (1071) com Tamerlão (1336-1405), o da História dos Balcãs fez da antiga Jugoslávia membro do extinto Pacto de Varsóvia, além de nos querer fazer acreditar que, na década de 1980, mesmo nas suas repúblicas mais pobres (como a da Bósnia e a da Macedónia) se gozava de um padrão de vida superior ao espanhol… Há erros factuais como estes e há sobretudo erros de percepção, em que se nota que falta ao redactor o lastro que lhe permita integrar os conhecimentos sobre o tema sobre o qual escreve...
A promoção, tanto da obra como do autor, é excelente (comprei o livro, não foi?) e o livro está muito bem apresentado. Eu acredito em jovens de elevado potencial, preciso é de os encontrar, não basta que o New York Times me diga que o são...
Este poste destina-se a assinalar uma daquelas coincidências de geografia humana que nos fazem pensar. Já aqui havia anteriormente incluído num poste intitulado As Terras de Leste perdidas pela Alemanha, um mapa mostrando o traçado das fronteiras orientais da Alemanha durante a época imperial (período que terminou em 1918). Nesse mapa (abaixo), talvez mais interessante do que as fronteiras politicas de há 90 anos, estão assinalados num tom progressivamente mais escuro os distritos onde maior era a proporção de súbditos polacos do Kaiser, de acordo com os resultados do Censo realizado em 1910.
A maioria desses distritos que estavam ali assinalados a escuro passaram depois a fazer parte da nova Polónia, quando o país se reconstituiu em 1919 e o resto dessa história já foi contada no poste a que fiz referência. O que vale a pena agora é comparar o mapa acima com o de baixo, que representa os resultados eleitorais das eleições legislativas polacas realizadas em Setembro do ano passado. A cor alaranjada estão assinalados os distritos ganhos pela Plataforma Cívica (PO - Platforma Obywatelska) e a cor azul os que foram ganhos pelo bloco Lei e Justiça (PiS - Prawo i Sprawiedliwość – o dos gémeos Kaczyński). Nessas eleições de 2007, a Plataforma Cívica, dirigida pelo actual Primeiro-Ministro polaco, Donald Tusk, derrotou o bloco Lei e Justiça, dirigido pelos gémeos (Jarosław e Lech*) Kaczyński. E, como se pode ver, fê-lo ganhando em praticamente todos os distritos que fizeram parte da Alemanha… Pode tratar-se de uma coincidência, pode ser que as antigas fronteiras políticas correspondessem a distinções sociológicas profundas**, ou pode ser que o processo de formação cívica nos estados modernos tenha diferido substancialmente entre o modelo alemão e o russo, a ponto de existirem diferentes formas de pensar, dum e doutro lado da fronteira.
* Lech (o Presidente) distingue-se do irmão por ter um pequeno sinal no lado esquerdo da cara. ** Improvável, dada o processo aleatório como as fronteiras entre prussianos, russos e austríacos foram traçadas no Congresso de Viena de 1815.
Uma boa notícia de jornal que envolva Portugal, quando em comparação com os outros países (nomeadamente europeus), tem que ter um conteúdo deprimente e colocar o nosso país nos últimos lugares das classificações. Uma que é hoje publicada no Diário de Notícias, assinada por Pérez Metelo, é típica:
Independentemente da pertinência da notícia (que a tem), vale a pena atentar na forma como a notícia está redigida: A desigualdade continua a aumentar em Portugal, afirma a OCDE, que atribuiu a 28.ª posição (em 30) a Portugal. Pelo contrário, México, Grécia e Reino Unido diminuíram o fosso.
Não se trata apenas do facto de vir-se a descobrir mais adiante que, lendo o documento citado, se chega à conclusão que afinal a desigualdade aumentou em 23 dos 30 países estudados. O exagero também tem a ver com os países que são utilizados para referência com Portugal. Tomemos o exemplo da Grécia, elogiada no relatório da OCDE.
Entre os mais animados grevistas contaram-se os cerca de 8.000 trabalhadores da companhia pública de aviação, a Olympic, que, com um passivo acumulado de dois mil milhões de euros*, é um colosso deficitário que há muito aguarda uma reestruturação que a viabilize sem a dependência dos subsídios do Estado. A Grécia parece estar neste momento inoportuno a atravessar uma crise social por causa da resolução de problemas que em Portugal consideramos já ter ultrapassado, como o da reforma do sistema de pensões ou o do saneamento económico da transportadora aérea nacional. Mas esses são factos que parecem não interessar para notícia…
É verdade que as dificuldades por que a Grécia atravessa não melhoram a situação portuguesa. No entanto, também é verdade que conhecê-las nos ajuda a colocar os problemas que atravessamos numa perspectiva mais correcta. Evita que acreditemos piamente nesses bons cabeçalhos de imprensa só com notícias que colocam Portugal na cauda da Europa…
* Trata-se de um valor que, só por si, é equivalente a 10% do montante da linha de garantias para empréstimos interbancários recentemente assumido pelo Estado português. Uma reflexão para os partidos da esquerda que se assustaram com o montante do valor envolvido, ao mesmo tempo que desataram a gabar as virtudes das empresas nacionalizadas.
Se é verdade que o desempenho dos Ministros das Finanças não devem ser avaliados exclusivamente pela capacidade adivinhadora da evolução das variáveis (crescimento económico, taxas de inflação e de desemprego) macroeconómicas em que assentam os Orçamentos por que são responsáveis, também é verdade que grandes desvios entre as previsões do Orçamento e o que a realidade vem depois a revelar, ou entre as previsões contidas no Orçamento e as previsões homólogas de outros organismos autónomos, são fenómenos que não costumam abonar nada em favor do titular da pasta das Finanças.
Recorde-se que foi assim que a credibilidade de Bagão Félix, o Ministro das Finanças do Governo de Santana Lopes, se evaporou, ao elaborar um Orçamento para 2005 em que se previa que haveria um crescimento económico de 2,4%... Foi uma gozação pegada, era um daqueles valores que só mesmo uma pessoa dedicada como Luís Delgado é que conseguia dizer que acreditava que fosse possível… e o resultado real do crescimento da economia portuguesa nesse ano acabou por ser de 0,7%. Vale a pena ter esse episódio presente… … para o comparar com o crescimento económico previsto para a economia portuguesa em 2008, tal qual constava do Orçamento apresentado há um ano pelo actual Ministro das Finanças, Teixeira dos Santos: 2,2%! Também na altura da apresentação apareceram os Luíses Delgadosa defenderem a plausibilidade de uma estimativa em que ninguém seriamente acreditava – mas que, dessa vez, ninguém ria… Hoje, ainda não sabemos como o ano vai acabar, mas, de revisão em baixa em revisão em baixa, as últimas estimativas já pairam pelos 0,8%... Se agora ninguém ri, será porque todos já conhecem a piada?… Ela arrisca repetir-se para o próximo ano, quando o Governo, no seu Orçamento resolveu fazer outra vez pontaria para o ar, ao prever um crescimento de 0,6% para a economia portuguesa. Neste caso específico, num assunto que ela domina, a crítica de Manuela Ferreira Leite quanto ao optimismo excessivo dessa previsão no Orçamento tem mais do que razão de ser. Ora foi com aquele enorme fiasco de previsão que o Governo teve a lata de a tentar rebater, quanto a esse aspecto? Tenham vergonha...
A campanha eleitoral para a presidência dos Estados Unidos de 1964 constituiu uma das campanhas mais sórdidas que se disputaram desde o início da História dos Estados Unidos. Outras campanhas houve, igualmente sujas mas muito mais publicitadas e conhecidas, nomeadamente a que decorreu em 1972, mais os golpes baixos sobre a concorrência (com o arrombamento da sede de campanha dos democratas no edifício Watergate), cujo conhecimento público acabou por levar à resignação posterior do Presidente Richard Nixon. Mesmo sem arrombamentos, a de 1964, como campanha, não foi muito mais limpa.
Os dois candidatos que se apresentavam eram o Presidente Lyndon Johnson (acima) pelos Democratas, que fora o Vice-Presidente de John Kennedy, e que depois do assassinato deste em Novembro de 1963, viera a assumir a presidência, e o Senador Barry Goldwater pelos Republicanos, um membro eleito pelo Estado do Arizona, da ala mais ultra-conservadora do Partido que alcançara a nomeação na Convenção depois de uma renhida disputa com candidatos da ala mais moderada. Mal se sabia então como as ideias e atitudes de Goldwater iam prosperar e encontrar continuadores em Ronald Reagan, George W. Bush e…. Sarah Palin.
Só que, paradoxalmente, Barry Goldwater (abaixo) é que acabou por se tornar a maior vítima de toda esta história. Em vez da expectável propaganda favorável a Johnson, a campanha dos democratas especializou-se em desacreditar um Goldwater que, pelo seu posicionamento ideológico, não era mais um daqueles políticos convencionais da época. As suas declarações incluíam frases como: Todos os Homens são criados iguais no instante do nascimento… mas a partir daí é o fim da igualdade ou então (referindo-se a ogivas atómicas) Vamos lá a atirar uma para o Kremlin e, já agora, fazer pontaria para a casa de banho dos homens… Há que reconhecer que a tarefa dos criativos contratados pela campanha de Johnson estava muito facilitada... Assim, ao slogan oficial de campanha de Goldwater, Intimamente, você sabe que ele tem razão (In your heart you know he´s right), os democratas responderam com uma paródia impiedosa, Instintivamente, você sabe que ele é louco (In your gut you know he´s nuts). Mas as últimas palavras guardaram-nas para as dar a Lyndon Johnson: Não se pode deixar que Goldwater e a China comunista consigam a Bomba Atómica* ao mesmo tempo. Aí é que a merda bate mesmo nas pás da ventoinha**.
Se as últimas palavras foram para Lyndon Johnson, o que perdura foram as imagens da campanha negativa então montada, associando Goldwater (cujo pai até era judeu…) ao Ku Klux Klan, entre muitas outras maldadespioneiras da publicidadepolíticanegativa em televisão. O mais simbólico – e há quem considere o mais eficaz de sempre – de todos esses anúncios (abaixo) intitula-se A Margarida (Daisy). Podia descrevê-lo, mas acho preferível que quem esteja a ler este poste o veja… Nas eleições, Lyndon Johnson veio a esmagar Barry Goldwater ganhando-lhe com 61% dos votos populares e obtendo a vitória em 44 dos 50 estados.
* A República Popular da China realizou o seu primeiro teste nuclear a 16 de Outubro de 1964, durante a fase mais quente da campanha eleitoral. ** We can’t let Goldwater and the Red China both get the bomb at the same time. Then the shit will really hit the fan.
Já aqui escrevi e repito hoje mais uma vez que é uma pena que não se dê aos textos que Jorge Almeida Fernandes escreve ao fim-de-semana no Público a atenção que eles merecem. Mesmo que seja, como acontece com o de hoje, para deles discordar. Intitulado Garzón e os historiadores em cólera aborda, como do título se deduz, a questão duplamente desenterrada da pesquisa para encontrar as valas comuns onde ficaram sepultados muitos daqueles que foram executados durante o período da Guerra Civil espanhola (1936-39) e do apport publicitário conferido pelo juiz Baltasar Gárzon a esse processo de investigação.
Como de costume, Jorge Almeida Fernandes investiga previamente sobre os assuntos sobre que escreve – o que faz um enorme contraste com as trivialidades do Editorial de ontem sobre o mesmo tema, escrito pelo Director do seu jornal, José Manuel Fernandes – e começa por se referir a um manifesto recentemente assinado por centenas de historiadores europeus contra a ingerência do poder político no domínio da investigação histórica. Sobre esse tema, começando pela decisão francesa de 1990 de sancionar judicialmente quem manifestasse opinião contrária è existência do Genocídio, vai toda a minha concordância. Já neste blogueapareceu quem pusesse em causa a existência do Holocausto. Mau grado o que eu penso sobre quem assim pensa, não me passa pela cabeça defender a existência de sanções legais para quem acredite em tais disparates. Mas, na minha opinião, a questão de Espanha não tem nada a ver com a interferência política no sancionamento legal dessas crendices, questão a que Jorge Almeida Fernandes acaba afinal por dedicar metade do seu texto. Como o próprio escreve ao introduzir a segunda parte: O caso Gárzon não tem a ver com História, tem a ver com Memória. Só que não me parece que haja nenhum caso Gárzon…
Como jornalista, é natural que Jorge Almeida Fernandes seja vítima de uma armadilha do próprio jornalismo: a de interiorizar que os assuntos só passam a existir depois dos órgãos de informação lhes passarem a dar atenção. E há quem se especialize nisso, em fazer com que eles dêem atenção, que abocanhem um determinado assunto que lhes interesse. Ainda ontem, num poste, mencionei três políticos portugueses que considero especializados nessa técnica: Pedro Santana Lopes, Francisco Louçã e Paulo Portas. E nesse mesmo poste escrevi como considero Baltasar Gárzon muito mais habilidoso do que qualquer um daqueles três… De facto, em Espanha, há quase 70 anos que terminou a Guerra Civil, há mais de 30 que se processou uma Transição pacífica para a Democracia e, contudo, continua-se à espera que os traumas da Guerra Civil passem por si, pela simples passagem do tempo, quando elas parecem teimar em não passar. Não fosse assim e eu quase garantiria que o faro justiceiro e publicitário infalível de Baltasar Gárzon não teria pegado nesta causa… É sempre difícil comparar sequelas de Guerras Civis distintas, mas considero que vale sempre a pena tentar fazê-lo nem que seja para colocar o caso espanhol em perspectiva com o que aconteceu em outras épocas noutros países.
Por exemplo, como já aqui escrevi num poste anterior, não consigo encontrar outro exemplo noutro país de um Monumento Nacional dedicado ao resultado de uma Guerra Civil, em que tanto se tenha investido (foram quase 20 anos de construção!), e que seja ao mesmo tempo tão enaltecedor dos vencedores e tão sobranceiro para com os vencidos como é o caso do Vale dos Caídos. Os actuais governos espanhóis bem podem decretar que o Monumento passou a ser dedicado a todos os que tombaram durante a Guerra mas a configuração do mesmo, encimado pela Cruz (abaixo), não se adequará muito à adição de lápides dedicadas aos antigos combatentes das Brigadas Internacionais…
Aliás, até teria imensa curiosidade em ver qual seria a reacção da esmagadora maioria dos simpatizantes do Partido Popular a esse hipotético gesto… Em suma, não é de hoje que em Espanha se nota a falta daquela tranquilidade sobre um conflito passado que faz com que nos Estados Unidos, por exemplo, ainda hoje haja quem hasteie e use como elemento de identificação dos Estados do Sul as antigas bandeiras dos confederados (os vencidos da Guerra Civil de 1861-65) sem que ninguém se pareça incomodar com isso. Não sei se poderemos dizer o mesmo em Espanha das bandeiras das duas verdadeiras autonomias espanholas – a da Catalunha e do País Basco…
Mas importa regressar à expressão de Jorge Almeida Fernandes, que o que está em debate é uma questão que tem a ver com a Memória. É um processo que já começou há mais de uma dúzia de anos (a fotografia que ilustra o artigo do jornal e que abaixo reproduzo data de 2002), desde que apareceram equipas arqueológicas por vários locais de Espanha que se mostraram interessadas em ouvir os relatos dos antigos sobre o período da Guerra Civil, nomeadamente a localização onde se haviam realizado os fuzilamentos e onde os fuzilados haviam sido enterrados. Depois seguiram-se as escavações, as identificações e a entrega dos restos mortais às famílias, o que ainda continua. Não é sinal de nenhuma superioridade de conduta do lado republicano durante a Guerra que a maioria dos despojos que agora têm vindo a ser desenterrados sejam de pessoas fuziladas pelos nacionalistas. O que acontece é que a esmagadora maioria dos que então foram fuzilados pelos republicanos também da mesma forma prepotente e clandestina foram logo no fim da Guerra, reenterrados com a devida consideração, em cerimónias acompanhadas das devidas acusações quanto à barbárie perpetrada pelos republicanos. Como é simbólico através da edificação do Vale dos Caídos, durante o franquismo o respeito pelos mortos ficou guardado para os da facção vencedora…
Claro que não se pode ser ingénuo a ponto de não nos apercebermos do argumento político que estas exumações fornecem à Esquerda espanhola, e o desconforto que elas provocam à Direita. Mas a disputa sobre as Memórias da Guerra Civil espanhola não tem inocentes e às vezes os aliados vêm dos lados mais imprevistos. Depois de já terem esgotado há muito os casos de fuzilados às mãos dos republicanos para rebater esta nova ofensiva republicana, os descendentes dos nacionalistas recorreram à nova estratégia da beatificação das vítimas. Até ao pontificado de Bento XVI, nunca se havia beatificado muita gente daquele período – mas o ano passadoforam 498 beatos logo de uma vez… Em função do que aqui escrevi, olhando para além dos malabarismos do juiz Gárzon onde a imprensa tanto se concentra, creio que se percebe porque na minha opinião o verdadeiro resultado singelo de todas estas escavações, mesmo com o folclore associado ao caso Garcia Lorca, apenas se trata de um mero, ainda que justo, exercício de equilíbrio no respeito pelos mortos das duas facções da Guerra Civil. E ao contrário das atenções de Jorge Almeida Fernandes, em todo este processo suponho que nem se deva conseguir levar Baltasar Gárzon a sério – por algum motivo eu o havia comparado (embora em bom) a Santana Lopes, Louçã e Portas…
Pedro Santana Lopes deve pensar lá para ele como ele é tão bom quanto Baltasar Gárzon. Só que não é; os pretextos que Gárzon arranja para aparecer nos média são muito mais plausíveis que as sestas e os episódios avulsos do Menino Guerreiro. Mais do que isso, esses pretextos são mais fracturantes do que as causas de Francisco Louçã, e Gárzon tanto é aclamado à esquerda por tentar extraditar Pinochet, como é aclamado à direita por tornar a vida pública impossível à ETA, como é vaiado por essa mesma direita por querer desenterrar fuzilados do franquismo. Finalmente, Garzón veste muito melhor e costuma andar mais à moda do que Paulo Portas. Será que o CEJ nunca terá produzido algum Gárzon cá para Portugal?