Todos estamos habituados a identificar, entre a enorme iconografia associada à conquista do Oeste americano, os episódios épicos da expansão do caminho-de-ferro, envolvendo a construção do mesmo, as lutas contra os índios, os operários chineses que o construíram, o extermínio dos bisontes, etc. Serão muito menos os que conhecem o outro lado da história, aquele mais sórdido que nunca passou a filme nem foi escolhido para tema de inesquecíveis pranchas de BD (abaixo)…
É que por detrás da exploração do negócio de transporte escondia-se, normalmente, um descomunal negócio imobiliário. Por exemplo, as duas companhias a quem havia sido atribuída a construção da linha que ligaria o centro dos Estados Unidos ao Oceano Pacífico* tiveram direito à posse das áreas imediatamente adjacentes à da ferrovia construída numa proporção próxima dos 16 km² de território por cada quilómetro de via que a companhia viesse a construir. Como a extensão do Transcontinental ronda os 2.850 km, é... fazer as contas, como diria Guterres.
Estas condições leoninas eram obtidas à custa de uma cuidadosa política de gestão. A construtora a quem fora atribuída a concessão normalmente possuía uma subsidiária a quem subcontratava algumas empreitadas a preços convenientes, além de lhe entregar a valorização imobiliária das regiões adjacentes à via. A Union Pacific Railroad podia (e aconteceu) passar por dificuldades económicas, mas a sua subsidiária, a Crédit Mobilier, chegou a pagar dividendos de 248% aos seus accionistas…
Claro que, quando o escândalo da Crédit Mobilier se veio a descobrir – exposto, como é sempre costume, por um comparsa traído, e não por uma daquelas almas honradas e honestas… – verificou-se uma daquelas terríveis coincidências, dado que entre os accionistas de referência da Crédit Mobilier se contavam uma trintena de senadores e representantes norte-americanos, alguns membros da própria administração norte-americana (US Grant era o presidente) e mesmo o próprio vice-presidente Schuyler Colfax.
Recupero este episódio velho de 135 anos para lembrar como os episódios de corrupção podem acontecer em todos os países, muito embora os causados pelo enriquecimento resultante da especulação imobiliária costumem ter um pico histórico que parece estar sempre associado aos grandes empreendimentos internos**. Depois da Expo 98 e de se encher o país com auto-estradas, parece que as grandes construtoras nacionais voltaram à carga, agora com um novo aeroporto, com linhas de TGV e uma nova travessia do Tejo.
Ora, ao contrário do mítico cavalo de ferro, que, para além de reduzir substancialmente a duração das viagens entre as costas atlântica e pacífica dos Estados Unidos, também serviu para escoar a produção agro-pecuária do Oeste para as regiões consumidoras dos estados costeiros, no caso das auto-estradas portuguesas, para além da diminuição da duração das viagens, estas parecem não ter tido grande impacto económico na distribuição das produções originárias das regiões que servem…
Nitidamente, embora se suspeite cada vez mais que os programas de obras públicas acabem por vir a beneficiar as tesourarias dos partidos, parece ser mais do que tempo de se abandonar o mito de que as grandes empreitadas de obras públicas são um propulsionador do crescimento económico. Na opinião das construtoras, suponho que se poderia continuar a construir até ao infinito; também no Oeste do Século XIX, algumas vezes, companhias rivais chegaram a construir ramais paralelos até o governo se recusar a pagar as obras…
Tudo isso teve um fim e, no interesse do bom senso (coisa que Mário Lino parece não ter) creio que é tempo de também o fazer entre nós.
* Union Pacific Railroad e Central Pacific Railroad.
** É supimpamente ridículo que quem tutelou pastas ministeriais associadas às grandes obras públicas nesses anos dourados, sem que se houvesse destacado particularmente pela sua acção executiva contra a corrupção (é o caso de João Cravinho, recordemos o episódio da Junta Autónoma das Estradas), queira aparecer agora em lugar de destaque pela produção legislativa sobre o mesmo tema. Entenda-se esta distinção: o tema é sério, o protagonista é que nem pode ser levado a sério.