30 novembro 2006

DESTE LADO DOS HIMALAIAS - 1


Depois de termos falado da formação das grandes correntes de pensamento religioso e filosófico na China, vale a pena atravessar os Himalaias e verificar o que se passou na Índia. Entre as religiões da Índia actual, para além daquelas que têm um relevo sociológico evidente na sociedade indiana actual – os Hindus (77,5%), Muçulmanos (16.7%), Cristãos (2,3%) e Sikhs (2,0%) – há duas outras religiões que, ali nascidas, hoje apenas recolhem uma fracção ínfima de seguidores entre a população indiana: são os budistas (0,77%) e os jainistas (0,41%). Mesmo assim e dada a dimensão da Índia, os seus seguidores contam-se por milhões, oito, no primeiro caso e mais de quatro, no segundo.

As duas religiões compartilham as origens, tanto temporal (Século VI a.C.) como geograficamente (o Estado indiano de Bihar, no Norte da índia, com 94.000 Km2 e 83 milhões de habitantes em 2001). Tendo os seus dois fundadores antecedido em cerca de uma centena de anos o desabrochar das Cem Escolas de Pensamento da China, os processos de sedimentação dos ensinamentos dos vários mestres (Buda e Mahavira, Confúcio e Lao-Tse) que se prolongaram por várias centenas de anos para além das suas mortes, acabaram por se virem a sobrepor no tempo, mas de uma forma independente, conforme o lado onde se encontravam em relação à grande barreira divisória dos Himalaias.

JAINISMO

Admite-se que as ideologias embrionárias do jainismo já estivessem em circulação por volta do Século VII a.C., mas atribui-se normalmente a Mahavira (entre 599 – 527 a.C. e 549 – 477 a.C.), portanto no século seguinte, a autoria da estruturação da religião e dos ensinamentos que deram origem à sua rápida expansão e organização. A biografia de Mahavira refere que, com a idade de trinta anos (portanto algures entre 570 e 520 a.C., dada a incerteza de datas nesta época), ele renunciou à família e tornou-se um asceta. Por doze anos vagueou pelas regiões do vale do Ganges em busca da Verdade e da Iluminação.

Os seus ensinamentos, originalmente preservados na forma oral, e assim transmitidos de geração em geração, só foram redigidos e compilados por escrito no Século III a.C., tendo mesmo evoluído depois disso até uma versão final datada sensivelmente já do Século V da nossa era. Uma boa parte do que iremos descrever pode ser percebido como muito semelhante às características que associamos ao hinduísmo. Existem duas causas para essa semelhança aparente. Uma das razões para isso é porque o jainismo emergiu numa sociedade onde o hinduísmo – mais antigo – já existia como religião organizada, e assim influenciou-o assim na fase do seu nascimento. Outra das razões, registada muito mais tarde, foi a reacção do próprio hinduísmo quando se sentiu ameaçado pela expansão do jainismo e incorporou nele muitos dos conceitos da nova religião.

Para o jainismo o Universo funciona de acordo com uma lei eterna em que se submete a um ciclo sempre repetido de vagas cósmicas de avanços e recuos. Nesse Universo, a existência ou não de um Deus é uma questão irrelevante, mas tudo o que nele existe possui uma alma. O objectivo da vida é a purificação da alma porque só a alma pura se liberta para atingir a felicidade suprema. Mas, ao contrário do que ensinavam alguns textos mais antigos do hinduísmo, essa pureza não se pode alcançar apenas com o conhecimento, que é uma qualidade apenas relativa. Conforme a parábola dos cegos que, tocando partes diferentes do elefante, o viam de maneira diferente, também o valor do conhecimento é apenas fragmentário e insuficiente para a salvação da alma. A purificação da alma obriga a uma vida equilibrada, o que, seguindo as instruções de Mahavira, só podia ser atingido vivendo uma vida monacal. O voto de não-violência e a preservação da vida alheia é quase obsessiva e levada a um ponto tão extremo que mesmo a morte involuntária de um pequeno insecto é considerado um pecado…

Estas peculiaridades fizeram do jainismo uma religião de elites (qualquer agricultor se torna um pecador ao matar involuntariamente os insectos do subsolo com o seu arado…), marcada também pelo culto da frugalidade, e confinada sobretudo a actividades que hoje consideraríamos pertencerem ao sector dos serviços como o comércio ou o ensino. Essa característica acabou por transferir a área de influência principal do jainismo das regiões de origem do vale do Ganges onde hoje se situam os modernos estados indianos de Bihar e de Uttar Pradesh, onde predominavam as sociedades agrícolas, para as regiões da Índia onde a actividade económica estava mais desenvolvida e onde esta fosse mais elaborada (houve uma época em que a actividade bancária na Índia se tornou quase um exclusivo dos jainistas). Essas regiões tradicionalmente ficavam na Índia Ocidental - o que actualmente tornou a acontecer.

Mais de 80% dos jainistas indianos concentram-se num núcleo de cinco estados da Índia Ocidental: Maharashtra (onde se localiza a capital económica do país, Bombaim), Rajasthan, Madhya Pradesh, Gujarat e Karnataka. Mas, mais importante do que o seu número de seguidores actual, será a influência que o jainismo terá tido para o pensamento indiano contemporâneo. Muito possivelmente, o estado que terá sido mais influenciado pelo jainismo terá sido o de Gujarat, onde influenciou, visivelmente, a sua cozinha tradicional, vegetariana, e onde se evita o recurso a vegetais de sabores fortes como o alho e a cebola.

Mas, outra forma, muito mais significativa de identificar essa influência, será na pessoa e obra daquele que será, muito provavelmente, o mais famoso gujarati de sempre, Mohandas K. Gandhi, apercebendo-nos – depois desta descrição e apesar dele ser hindu – onde o Mahatma poderá ter ido buscar inspiração para a não-violência e frugalidade de que fez a bandeira da sua forma de estar na vida.

Uma curiosidade final: um dos símbolos mais sagrados do jainismo é a cruz suástica.

O PEIXINHO

Sempre que ouço aquelas análises globais do costume a dizer que nos faz falta, aos portugueses, espírito de iniciativa e tudo mais o resto, eu lembro-me do Peixinho. O Peixinho que recordo era a prova provada que nunca nos faltou um certo tipo de iniciativa. O problema do analista é que espíritos de iniciativa como os do Peixinho nunca aumentaram o PIB de economia nenhuma embora possam contribuir para o seu bem-estar – o do Peixinho, bem entendido.

A imagem de marca que me faz recordar o Peixinho no Colégio Militar era a sua capacidade de precocemente andar sempre desenfiado quando era a altura das formaturas. Só na teoria o Peixinho devia pertencer a um pelotão, que devia visitar de quando em vez, apenas para não perder o jeito de acertar o passo e o resto dos rudimentos da ordem unida. Na esmagadora maioria das vezes, contudo, o Peixinho tinha sempre qualquer coisa urgente a tratar com qualquer pessoa importante à hora da formatura.

Percebo hoje como o Peixinho mostrou ser precoce na compreensão perfeita de algumas fraquezas da natureza humana. A primeira questão resolvida foi a da atitude: o Peixinho desenfiava-se mas não tentava passar desapercebido. Muito pelo contrário, atravessava determinadamente o geral da companhia com uma pasta debaixo do braço e o ar seguro de quem sabia o que tinha para fazer! Ele até usava uma placa identificadora ao peito com número e apelido quando andava de camisa. É que um gajo que se passeia assim tão bem identificado não pode andar desenfiado!...

Em segundo lugar, quando interpelado – porque a repetição consecutiva do mesmo padrão levanta sempre suspeitas – quanto à razão de se andar a passear naquela altura do dia a explicação do Peixinho envolvia normalmente uma patente qualificada (de capitão para cima) com quem ele ia falar, e porque tinha sido chamado. Esta versão podia ser encurtada ou alongada conforme o Peixinho analisasse o perfil do graduado que o estava a chatear. Havia uns graduados que, mesmo mais incrédulos, podiam ainda ser vencidos pela exaustão de uma história comprida.

Finalmente, a perseverança, porque a manobra quotidiana do Peixinho era capaz de lhe dar muito mais trabalho do que a rotina de ir para a formatura com os outros todos. E depois havia os riscos associados à actividade porque, graduado que tivesse embirrado com ele, aí para o terceiro período já lhe conhecia os truques todos. Mas não haja dúvidas que ali estava um empreendedor. Deve ter sido por isso que, no 7º ano, foi graduado com as 3 estrelas das actividades circum-escolares. Merecidas: ninguém representava como ele o conceito da palavra latina circum – com o Peixinho nada era linear…

Toda esta velha história do Peixinho e da usurpação (criação imaginativa) de funções em geral feita por quem tem descaramento bastante para isso, vem a propósito dos inúmeros representantes de organizações que, de um dia para o outro, se vêm aparecer na comunicação social, falando em nome de uma qualquer classe profissional ou de um grupo de interesses qualquer, sem que se perceba muito bem (e normalmente a peça jornalística onde se insere não esclarece isso…) como e quando se constituiu e qual a sua representatividade.

Dando um exemplo, e ele dever-se-á talvez ao facto da GNR ser uma força militarizada, mas não consigo evitar a associação, o de José Manageiro, que é o porta-voz de uma associação de guardas onde só ele fala e mais ninguém se conhece, aos expedientes e iniciativas de outrora do meu amigo Peixinho, só que ele não invocava os interesses da malta para andar desenfiado. E o caso de José Manageiro é apenas um mero exemplo de organizações que suspeito tenham fundamentos similares. No conjunto, a estrutura delas, tanto as organizações sindicais como as patronais, de pirâmide só têm o nome.

O que suspeito, é que a cobertura mediática destes acontecimentos é feita com uma superficialidade tal que permite o protagonismo a indivíduos que, mais dos que as necessidades de representação dos interesses de partes envolvidas em conflitos, adaptam-se mais às necessidades do conteúdo informativo sobre as notícias desses mesmos conflitos. Um exemplo? Há vinte e cinco anos a UGT era uma necessidade imperiosa do PS tentar mostrar que também tinha influência nos sindicatos. Por quem fala João Proença hoje em dia? Querem fazer uma sondagem* sobre a importância das centrais sindicais?

* Uma sondagem exclui, naturalmente, uma eurosondagem de Oliveira e Costa...

Adenda: Nem de propósito, o jornal Público de 30/11 dá conta de uma reunião da organização da Guarda dirigida e protagonizada por José Manageiro. Presentes, segundo o jornalista José Bento Amaro no artigo impresso, uma centena de sócios. Folgo em saber que José Manageiro não está sozinho, embora os efectivos totais da GNR sejam um pouco mais elevados do que aquela centena (+ de 20.000...).

29 novembro 2006

AS RETIRADAS ESTRATÉGICAS

Nos idos anos das décadas de 60 e 70, quando árabes e israelitas andavam à trancada com regularidade no Médio Oriente, havia uma expressão que eu muito ouvia e lia nas rádios, televisão e jornais, quando algum dos lados – normalmente eram os árabes – enfardava demais nos consecutivos enfrentamentos que os opunham e, como consequência, tinha que reorganizar o posicionamento das suas forças no terreno.

A expressão em questão, a que aprendi a me afeiçoar, era retirada estratégica. Havia também uma versão longa, tipo De Luxe: retirada estratégica para posições preparadas de antemão. Antes de aprender o verdadeiro significado da palavra estratégia – coisa que muita gente que a usa hoje em dia ainda não sabe – no meu conceito infantil ela estava associada a uma qualquer forma airosa de fingir que não se apanhou porrada

Mas não é de infância mas de velhice e de outras retiradas que me lembrei de escrever, a propósito do memorando do actual Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), Almirante Mendes Cabeçadas, dirigido ao Ministro da Defesa, Nuno Severiano Teixeira, que, escapando ao carácter discricionário que estes documentos costumam ter, acabou na Lusa e nesta página da TSF.

No memorando torna-se perfeitamente perceptível o teor censório posto na forma como se considera que o poder político tem vindo a abordar o problema da especificidade das funções militares. Embora concebido para ser apreciado em ambiente restrito, a verdade é que o conhecimento do conteúdo do referido memorando é agora compartilhado pelo Ministro com toda a opinião pública que liga a estes assuntos.

Longe vá a ideia de supor que esta fuga para a imprensa tenha sido originada de fontes próximas do CEMGFA, as hipóteses da sua origem dividir-se-ão, pelo menos, equitativamente com as do pessoal do gabinete do Ministro, mas não deixará de haver quem se lembre de associar este acontecimento à circunstância do Almirante Cabeçadas estar a terminar brevemente o seu mandato.

Houve CEMGFAs, como o antecessor do actual, o General Alvarenga Sousa Santos, em que o seu mandato foi eivado de diversos incidentes com o poder político. Outros houve, como aconteceu com o antecessor imediato a esse, General Gabriel Espírito Santo, em que tudo pareceu ter corrido pelo melhor, até ao discurso da sua despedida, em que fez as críticas que devia ter feito enquanto ocupava o cargo...

Ora o Almirante Mendes Cabeçadas tem tido um mandato tranquilo, sob três Ministros da Defesa distintos, tendo sido até reconduzido no cargo. Mas pertencerá também ele aquela classe de oficiais generais como a do seu segundo antecessor: a dos generais que só desencadeiam a ofensiva imediatamente antes de efectuar a retirada estratégica para posições preparadas de antemão?...

E fica uma outra questão, muito mais ampla do que a pessoa do Almirante Cabeçadas e dos seus antecessores. Se o topo da hierarquia militar é um dos lugares do Estado que é ocupado por titulares que resultam de um dos mais vastos e apurados processos de selecção de quadros superiores em Portugal, que problemas nos critérios usados poderá haver para que se levantem as questões que aqui levantei?

COMO QUEIRA…

Em Maigret se fâche, de Georges Simenon, existe uma cena inicial que considero de antologia e em que, ao contrário do título*, Maigret dá provas de uma paciência incomensurável. Tudo começa com o Comissário na sua casa de campo, para onde se retirara depois de se aposentar da PJ, numa bela manhã, com Maigret com umas calças de cotim azul e camisa de camponês, calçado com uns tamancos e à volta de umas beringelas que plantara no quintal das traseiras quando depara com uma aparição que, falha de paciência de esperar a reacção ao toque da campainha da entrada, ali desembocara.

Era uma velha, burguesa, vestida de luto com uma elegância de há duas gerações atrás, mas das decididas:
- Olhe lá, jardineiro… Não vale a pena fingir que o seu patrão não está que eu já me informei ali em baixo… Vá dizer-lhe imediatamente que Bernardette Amorelle acaba de percorrer cem quilómetros para lhe falar!E Maigret irónico: - Se quiser dar-se ao incómodo de entrar…
- Aposto que o Comissário está a dormir a sesta. Continua gordo como antes?
- Conhece-o bem?

- Que tem a ver com isso? Vá-lhe dizer que Bernardette Amorelle está aqui para lhe falar e não se preocupe com o resto.E, reflectindo melhor, vai rebuscar à carteira algo que, esticando o braço, faz tenção de entregar ao «jardineiro».
- Tome lá, para si…
- Desculpe não poder aceitar, Madame, mas eu sou o ex-comissário Maigret…E aqui a velhinha mostra estar à altura dos acontecimentos: mirando Maigret dos tamancos ao cabelo por pentear, responde com toda a altivez que a enormidade da bronca da situação exige.
- Como queira.

Muitas vezes me deparei na vida com episódios onde se ensaiaram saídas de situações melindrosas com gestos muito parecidos com este Como queira da velha que, falha de qualquer outro elemento onde se agarrar, apenas lhe resta a dignidade e a altivez de quem tem a última palavra, nem que seja para dizer uma inocuidade. Há este tipo de pessoas, e depois há os outros, a maioria, que ficam com vontade que a terra os engula ali naquele momento…

Mas, apesar das aparências, para qualquer interlocutor daqueles habilidosos que não seja estúpido, será sua a decisão em continuar ou não a gozar o pratinho depois de uma barracada tão espectacular. Afinal, ninguém mandou aquela velha, ou todos os outros que se entalaram em situações semelhantes, porem-se a falar sobre aquilo que não conhecem. Mas, apesar da altivez que, dadas as circunstâncias, nunca consegue lavar o ridículo, convém dizer que lhes fica bem a contrição de reconhecerem a ignorância, como acontece, por exemplo, com o ponto 2 e a adenda final deste poste.

Apesar de tudo, é muito mais honesto que as galgas suscessivas do nosso grande timoneiro.

Nota: Eu suspeito que haverá quem discorde da minha escolha da figura de Maigret, mas alguém conceberá um Jean Gabin de tamancos e calças de cotim a ser confundido por jardineiro por uma velha burguesa?

*Maigret irrita-se ou zanga-se para não utilizar mesmo o plebeísmo que prefiro: Maigret chateia-se.

Adenda de 18 de Dezembro de 2011: O vídeo abaixo mostra a forma como ele foi transposto para filme numa versão televisiva do livro mencionado. A velha burguesa parece ser tão assertiva quanto a do livro, mas parece-me que se perde algo do arcaismo e do ridículo da cena concebida por Georges Simenon, afinal o que a fez merecer este meu destaque.

28 novembro 2006

ESCARANFUNCHAR

Agora que todo o extenso episódio da luta contra o terrorismo que se foi travar para o Iraque parece não ter passado de uma ampla loucura colectiva, de que até os ideólogos, defensores mais extremados da causa, já se dissociam, há quem se divirta a escarafunchar e a continuar a trazer à luz os casos mais emblemáticos dos que referenciámos como grandes defensores de outrora da intervenção norte-americana e que ultimamente se têm aprimorado nas suas análises sobre os acontecimentos permitindo-lhes chegar a conclusões radicalmente diferentes.

Por muito saborosos que sejam os casos – e são-no – e que esse sabor seja ainda mais realçado pela identidade daqueles que têm tentado vir a mudar progressiva e subtilmente de opinião, vale a pena alertar-se para a humildade que se deve ter nestas circunstâncias, porque nunca houve ninguém que tivesse sempre razão em tudo… Sobretudo, incomodam-me muito mais outros momentos de ampla loucura colectiva – como o episódio Santana Lopes – em que na imprensa ainda se parece querer dar a impressão que ainda há ali algo para discutir...

A CARA QUE DEUS NOS DEU

Sei que pareço um ladrão.
Mas há outros que eu conheço
Que, não parecendo o que são,
São aquilo que eu pareço.

António Aleixo

É muito comum ouvir-se, quando se fala a respeito de burlas e de burlões, comentários apreciando como o burlão tinha uma cara de pessoa honesta. É um paradoxo de que normalmente nem nos apercebemos: para se ser burlão a cara de pessoa honesta é uma condição indispensável para o sucesso. Um burlão que tivesse o aspecto de António Aleixo não iria longe na sua carreira…

Mas a melhor descrição dos dilemas de quem nasceu com a cara que não deve, vem no preâmbulo de Lucky Luke contra Joss Jamon, de Morris e Goscinny (pois claro!), onde, na apresentação inicial do gang de Joss Jamon, se pode ler esta pérola sobre um dos membros: Sam, o lavrador, que, por um engano da natureza, foi beneficiado com uma cara de homem honesto*.

Não vou emitir juízos de valor sobre o comportamento da natureza ao pronunciar-me sobre a cara de Gilberto Madaíl. Direi apenas que, numa das mais portuguesinhas das definições, ele parece um gajo porreiro, com toda a falta de conteúdo que esta definição costuma ter. Fiquei impressionado com o sofrimento que mostrava ter quando compareceu no Prós e Contras da RTP há dois meses atrás.

Para quem se tenha esquecido, nesse programa, provocado pela bronca do atraso do início dos campeonatos de futebol, Gilberto Madaíl (ombreando com Valentim Loureiro, esse potentado do futebol português…) multiplicicou-se em juras sobre a saturação que os problemas (e os podres, ia-se percebendo com o decorrer do programa) do futebol lhe causavam. Por ele, amanhã ia-se embora!

Dois meses e meio passados sobre os lamentos públicos, com a mais descomunal cara de pau, aí temos Madaíl a recandidatar-se à presidência da FPF, no meio dos folguedos de hesitação em que ninguém já acredita. Havia um belga que se entretinha atirando tartes de creme à cara de figuras públicas em directo na televisão. Ele bem cá podia vir a Portugal e assestar uma por nós na cara de Gilberto Madaíl.

Era serviço público. Era uma boa utilização para aquela cara…

* Uso a tradução feita quanta a história saiu na Revista Tintin (nº 27, 1º Ano, de 30/11/1968).

27 novembro 2006

OS MILITANTES MELÓMANOS

Dois acontecimentos recentes levaram-me a questionar qual seria a causa para que eu associasse a militância comunista a uma completa falta de ouvido. Eu até conheço e gosto de algumas das bonitas canções de Lopes Graça, o hino da União Soviética (agora da Rússia) é um dos mais bonitos do mundo e não descortinava, assim à primeira vista, as razões para que atribuísse ao comunismo uma banda sonora de tão baixa qualidade.

E depois fez-se luz! Com o centenário do nascimento de António Gedeão, voltou-se a ouvir a Pedra Filosofal cantada por Manuel Freire. Ora a Pedra Filosofal, apesar de se ter inserido no espírito radiofónico progressista do PREC, é uma música anterior a ele (1970), doce e em ritmo de balada, desajustada das cantigas de intervenção que depois ficaram em voga.

Com ela, lembrei-me de um episódio de há 30 anos em que um colega meu, simpatizante comunista, quando me falava das suas canções favoritas, mencionou a Pedra Filosofal, que eu na altura não conhecia pelo título, o que o fez trautear a melodia. Os dois primeiros versos ainda saíram de acordo com as harmonizações originais de Manuel Freire:

Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida

Mas à terceira estrofe (Tão concreta e definida) o cantor, melhor militante que melómano, já a cantava de acordo com o ritmo compassado e grave de uma boa cantiga de intervenção, a que se juntava a veemência de um Força, força, companheiro Vasco, nós seremos a muralha d´aço… ou então Fora com a pança doutoral! Igualdade e justiça social!...

Para que conste, apesar de tudo, percebi de que música se tratava… Mas aí ficou fixada a ideia, o preconceito cá ficou, nunca mais discuti música com comunistas ou se calhar discuti mas música e comunismo são tópicos independentes, até recentemente ter lido algures aqui pela blogosfera que, a respeito da polémica associada à extinção da Festa da Música, também Manuel Carvalho da Silva da CGTP se manifestava contra essa extinção.

Fiquei sobressaltado. Não por Carvalho da Silva estar contra, há 20 anos que, naquele mesmo cargo, ele está sempre contra e a rotina disso já não deve sobressaltar ninguém, mas porque a sua opinião pressupõe a existência de um gosto musical, muito afastada da sua imagem pública do interveniente nas sempre justas lutas dos trabalhadores. Fica desfeito o preconceito e feita a confissão: os comunistas podem ter ouvido musical!

O NOSSO GRANDE TIMONEIRO

É visível como as grandes diferenças culturais podem transformar gestos significativos para uma cultura em caricaturas noutra. Slogans políticos como o movimento das Cem Flores que farão todo o sentido na gramática da disputa política na China serão uma espécie de mariquice incompreensível pelos códigos usados no Ocidente. E distribuir livrinhos para brandir em manifestações colossais também não parece fazer sentido.

Ás vezes, embora o alcance do gesto fosse perfeitamente compreensível, como quando houve o anúncio que Mao tinha nadado não sei quantos quilómetros no rio Yangtzé como prova do seu vigor físico e em antecipação ao golpe que iria desencadear com a Revolução Cultural (1966), a escolha da forma de expressão não deixava, por isso, de ser positivamente bizarra para observadores ocidentais.

Mas isto não devia ser percebido pelos nossos movimentos maoistas da década de 70, nomeadamente entre os dirigentes do famosíssimo MRPP, que importavam os slogans do outro lado do mundo em formato pronto-a-vestir. Como resultado ainda hoje não consigo deixar de sorrir quando vejo Arnaldo Matos e me lembro que ele era tratado como o Grande Educador da Classe Operária

Muito mais discretas quanto à fonte de inspiração foram no entanto as cópias feitas por um outro político de um partido completamente diferente (embora vocacionado para reciclar ex-MRPPs...) que se lançou numa campanha autárquica começando por, imitando Mao, nadar no Tejo e dando como cor dominante à sua campanha o vermelho - que não é a cor identificativa do seu partido – mas que era a cor de referência da Revolução Cultural.

Embora a campanha fosse imaginativa – sobretudo exótica! – é bem possível que estivesse demasiado avançada para o seu tempo – arriscaria dizer que se fosse um movimento cultural teria sido um acontecimento! – e não lhe permitiu vencer as eleições. Mas – qual vocação! - continuamos a vê-lo regularmente todas as semanas feliz e, reutilizando a nomenclatura maoista, considerado como um Grande Timoneiro da opinião pública portuguesa…

ALGUM REVISIONISMO HISTÓRICO

Gostaria de ter guardado, sobretudo pela sua singeleza, uma carta ao director do Público enviada pelo professor Jorge Miranda, contendo alguns comentários a respeito do artigo regular das Quintas-Feiras de José Pacheco Pereira (JPP), publicado a seguir à morte de Sottomayor Cardia, em que a este se refere.

É natural que o autor do artigo se concentre no que conheceu, sobretudo na memória das suas recordações pessoais do defunto. Contudo, não haja dúvidas que houve algo no conteúdo do mesmo – nas menções ou mesmo nas omissões – que motivou Jorge Miranda a escrever a carta que enviou para o jornal.

A verdade é que, à fase da revisão constitucional do final dos anos 80 que JPP descreve, e de onde ele faz de Sottomayor Cardia uma espécie de empecilho fora do tempo, embora faça essa descrição com toda a elegância possível, Jorge Miranda prefere contrapor a fase inicial, a da génese e elaboração da Constituição.

E aí, a pergunta posta por Jorge Miranda na sua carta é mortal: em que lado estava JPP, quando ele e Sottomayor Cardia discutiam a redacção da Constituição em 1975-76? Para quem coloca outros no tempo errado da História, JPP também não pode esquecer as vezes em que ele mesmo esteve do lado errado da História e que não anda pela actividade política apenas em espírito…

É bem verdade que não é o percurso de JPP que estava em causa, mas o artigo invocava inflexões ideológicas e dissidências – algo que o autor conhece na primeira pessoa – e sobretudo socorre-se da sua experiência enquanto actor da cena política para traçar um retrato do visado numa determinada época. Ora, sendo mais novo do que o falecido apenas 8 anos, o autor tambem já cá anda há muito tempo...

Noutros, lapsos deste género seriam menos condenáveis, porque poder-se-iam imputar ao facciosismo natural do político que descreve um encadeamento de acontecimentos com o cuidado de proteger o seu trajecto e a sua pessoa. Mas vêm também da parte de alguém que se orgulha de ser um historiador e que tem obra publicada.

Que começou aliás o seu artigo criticando implacavelmente – e suponho que com alguma razão – muitos dos seus actuais camaradas de partido que de há muito haviam votado Sottomayor Cardia ao esquecimento. Devolvendo o rigor ao autor, diga-se que recordá-lo é positivo, mas fazê-lo usando de um evidente revisionismo histórico, também é passível de critica.

A ÁSIA ENTRE OS DOIS COLOSSOS DO FUTURO – 5

MALÁSIA PENINSULAR, SINGAPURA E INDONÉSIA OCIDENTAL

Há ocasiões onde as divisões da geografia política, não ajudam e até se tornam mesmo um obstáculo à definição de um espaço geográfico preciso. Nas grandes regiões asiáticas onde, no passado, China e Índia alternaram na sua influência cultural – indicativo que poderão ser áreas de disputa futura – conta-se a grande região onde predominam os malaios, que engloba a península da Malásia e a Indonésia Ocidental, com as suas ilhas principais de Java e Sumatra. Estas duas ilhas concentram cerca de 80% da população da Indonésia (222,8 milhões de habitantes em 2005), enquanto na península malaia habitam também cerca de 80% da população do estado malaio (26,8 milhões de habitantes em 2006). No extremo Sul da península, como uma evocação das cidades estado da Grécia clássica e da Itália renascentista, situa-se a cidade estado moderna de Singapura, com 4,3 milhões de habitantes (2005).

Procurando por todo o globo é difícil encontrar uma península que seja mais ínsula (ilha) do que a península malaia. O seu ponto mais estreito, o istmo de Kra, ainda em território tailandês, tem apenas 44 Km. de extensão. Desde há muito que existem ideias para ali abrir um canal de navegação, à semelhança dos que se construíram no Suez ou no Panamá, embora os ganhos em tempo que ali se obteriam sejam visivelmente menores aos verificados nos outros locais mencionados. E se a península malaia é uma quase ilha maciça de 132.000 Km2 (só na parte malaia), Sumatra é uma verdadeira ilha maciça de 473.000 Km2 (5 vezes a extensão de Portugal) e Java, outra grande ilha, com 132.000 Km2. O clima é tropical e equatorial com duas monções por ano, que alimentam uma flora tropical exuberante (70% da península malaia e a grande maioria de Sumatra estão cobertas de uma imponente floresta tropical) e uma agricultura de arroz com altos rendimentos: a densidade populacional na ilha de Java aproxima-se dos 940 habitantes por Km2, a segunda mais elevada de todo o mundo.

Outra das características da geografia física daquela região é a sua enorme instabilidade geológica. Numa lista de vulcões assinalam-se 35 localizados em Sumatra e mais 44 em Java e nos seus arredores. Outra consequência dessa enorme instabilidade geológica são os terramotos e maremotos como o de 26 de Dezembro de 2004 que se estima tenha causado a morte a 230.000 pessoas, 168.000 das quais na Indonésia e destas, a esmagadora maioria na ilha de Sumatra, o local mais próximo do epicentro do fenómeno. Em resultado da acção vulcânica sobre as ilhas, os locais mais elevados também impressionam pela sua altitude: se na Malásia o pico dominante atinge apenas os 2.187 mts. (200 mts. acima da torre da Serra da Estrela), em Java o monte Semeru tem 3.676 mts. e em Sumatra o monte Kerinci 3.805 mts. – são quase duas Serras da Estrela (1.991 mts.) sobrepostas!

Sensivelmente 2/3 da população de Java (rondando os 130 milhões) pertencem à etnia javanesa. Correspondendo a cerca de 45% do total da população indonésia, os javaneses constituem uma espécie de núcleo duro do Estado Indonésio. Outro grande grupo étnico e linguístico de Java são os sundaneses, que se estima serem uns 30 milhões. Outros grupos étnicos e linguísticos mais pequenos são os do madureses (de Madura, uma ilha de 4.000 Km2, adjacente a Java), com 8 a 10 milhões de falantes e os balineses (de Bali, outra ilha de 6.000 Km2, nas mesmas circunstâncias da anterior). Note-se que o idioma oficial da Indonésia (o bahasa indonésia), embora aparentado com qualquer dos idiomas acima citados, é distinto de qualquer um deles, e empregue normalmente como segunda língua de comunicação. Mais de 90% da população de Java é muçulmana, mas existem vestígios espalhados pela ilha de comunidades cristãs (católicas e protestantes), budistas e especialmente hindus, que, no caso das duas últimas, outrora predominaram na ilha. Os hindus, provavelmente a maior das minorias religiosas de Java, concentram-se sobretudo no Leste, junto à ilha de Bali, onde constituem a esmagadora maioria da população da ilha.

Se a descrição étnica, linguística e religiosa de Java já foi extensa, apesar dos esforços para a simplificar, a de Sumatra teria de ser maior… Embora muito menos habitada do que Java (cerca de 47 milhões de habitantes), a sua maior extensão e a cobertura luxuriante tornam a sua população muito mais heterogénea: ao todo existem 52 línguas diferentes, mas todas pertencentes ao grande grupo malaio. Os muçulmanos também são a esmagadora maioria (mais de 90%), com as mesmas minorias (cristãs, budistas e hindus) e com a curiosidade da existência dum grupo do interior (os Batak – que são na realidade uma designação genérica de grupos étnicos distintos) que são predominantemente protestantes.

Em contrapartida, na Malásia, a identificação de grupos étnicos torna-se muito mais fácil: esquecendo as especificidades distintivas entre malaios – que constituem 60% da população – há ainda que contar com os chineses (30%) e com os indianos (8%). A chegada destes dois últimos grupos é, contudo, um fenómeno relativamente recente, do Século XIX, quando o Império Britânico precisou de mão-de-obra para as suas plantações de borracha e a começou a importar das possessões próximas que possuía na Ásia: a Índia e Hong-Kong. É a mesma razão que explica a composição étnica da cidade estado de Singapura: 77% de chineses, 14% de malaios e 8% de indianos. Em termos religiosos, a esmagadora maioria dos malaios, como na Indonésia, são muçulmanos, os chineses repartem-se entre as religiões tradicionais da China (Budismo, Taoismo e Confucionismo) e os indianos, como acontece no subcontinente, são maioritariamente hindus, embora com uma significativa minoria (1/3) muçulmana. De notar como a presença colonial britânica se faz sentir no número de cristãos: são 9% na Malásia e mais de 12% em Singapura.

Esta descrição complexa da actualidade tem todavia uma evolução histórica muito semelhante a que já foi traçada para as outras regiões. Pouco dela se sabe até ao Século VII da nossa era, mas já lá existiam reinos indianizados. Curiosamente, não se sabendo qual foi a religião que iniciou o processo de evangelização, se terá sido o hinduísmo ou o budismo, a verdade é que os divulgadores tanto duma quanto doutra, vindos todos originalmente da mesma região geográfica (Índia), por séculos disputaram os favores das elites locais nos seus esforços de conversão.

Fontes escritas chinesas mencionam no Século VII o porto de Srivijaya (Palembang no Sul de Sumatra), um centro religioso budista e também o centro das conexões de um império comercial, que assegurava as ligações marítimas com a China e a Índia, mas o seu feito mais espectacular foi o de projectar a sua influência até à ilha de Madagáscar! Enquanto a Malásia e Java ocidental dependiam deste império, no centro de Java, muito mais fértil, aparecia um reino budista no Século VIII que se viu suplantado no século seguinte por dinastias hindus oriundas do Leste da ilha. Até aos finais do Século XIII, com oscilações, é esse o mapa político que prevalece, embora o império comercial tenha vindo a enfraquecer progressivamente – chegou a ser atacado a Ocidente pelo potentado indiano tamil (do Sul da Índia) no Século XI – e com a infiltração progressiva do Islão (vindo também da Índia como as outra religiões) a partir do fim do Século XIII.

O Islão está na génese de um novo império comercial, lançado em bases renovadas – uma rede que abrange a China, a Índia, mas também todas as ilhas importantes do arquipélago indonésio, incluindo as Filipinas - e sedeado em Malaca, a partir do Século XV. Considerando todos os seus efeitos, a conquista de Malaca em 1511 por Afonso de Albuquerque é capaz de ter sido a sua proeza mais importante, superando todas as suas outras conquistas. Mais do que a localização estratégica do porto, controlando o Estreito com o seu nome, Albuquerque apropriou-se do local onde se concentravam quase todas as rotas comerciais para Oriente e Ocidente. Circunstancialmente, o Islão tornou-se o catalisador da oposição ao monopólio que os portugueses quiseram impor: a maioria dos estados que se lhes opunham eram ou tornaram-se sultanatos.

A substituição dos portugueses pelos holandeses a partir do Século XVI obedece à lógica das vantagens comparativas que permitiram às potências protestantes do Atlântico substituírem-se com vantagem às duas potências ibéricas católicas: concentração na rentabilidade das actividades económicas, abandono de qualquer veleidade de proselitismo religioso e controle discreto dos detentores do poder formal. Como aconteceu com os britânicos na Índia, apenas por inércia, por volta de 1790 já os holandeses se haviam apoderado de vastas parcelas das ilhas da Indonésia e da península da Malásia. As Guerras Napoleónicas na Europa permitiram aos britânicos atribuírem-se (a Holanda tinha sido ocupada por Napoleão) alguns territórios que consideravam importantes para o seu império mundial.

Foi assim com Ceilão, foi assim com a África do Sul e foi assim com a Malásia onde fundaram em 1815, no extremo Sul da península, uma cidade - Singapura – destinada a substituir Malaca como entreposto central do comércio sino-indiano. Recorde-se que em 1842 os britânicos vieram a adquirir Hong-Kong à China, no seguimento de uma Guerra do Ópio, que os britânicos queriam exportar da Índia para a China, mas que estes, compreensivelmente, não queriam importar. Singapura é uma cidade verdadeiramente moderna porque, ao contrário de Malaca, está rodeada de pântanos o que a impede de dispor dos recursos agrícolas que possam alimentar uma população numerosa: desde o princípio, praticamente tudo o que Singapura consome tem de ser importado.

Já houve oportunidade de descrever como a importação de mão-de-obra deu lugar a uma alteração substancial do panorama étnico na Malásia, com uma importante minoria chinesa (30%) que até é maioritária em Singapura (77%). Na Indonésia, especialmente em Java, também existe uma importante comunidade mercantil urbana chinesa, parte da qual já está enraizada no país desde há séculos mas cuja dimensão é difícil de estimar devido a perseguições políticas no passado recente. Oficialmente, um número que se considera normalmente estar subestimado os chineses étnicos serão um pouco mais de 2 milhões.

A conquista da região pelos japoneses em 1941-42 afundou o prestígio dos europeus e tornou a sua manutenção enquanto potências coloniais praticamente impossível. A Indonésia tornou-se independente da Holanda em 1949 e a Malásia do Reino Unido em 1960, não sem antes a China Popular ter ensaiado uma das suas primeiras projecções de poder no exterior, fomentando entre os seus na Malásia um movimento de subversão cujo auge durou de 1948 a 1954. Também o predomínio dos chineses entre os quadros do Partido Comunista Indonésio (PKI) levou a uma associação entre ideologia e nacionalidade que teve o efeito perverso de, durante um Golpe de Estado militar na Indonésia, em 1965, a perseguição ao PKI se ter transformado numa gigantesca perseguição sangrenta contra a comunidade chinesa.

Este último troço das regiões da Ásia que se dispõem entre os dois colossos do futuro, contém, curiosamente, o único país, fora naturalmente a República Popular da China e a Formosa, onde existe uma maioria populacional chinesa: Singapura. Nessa perspectiva pode ser vista como mais um elo de uma cadeia de grandes cidades chinesas como Xangai e Hong-Kong. E, de facto, o actual fluxo do desenvolvimento económico sopra decididamente de Leste. É para aí que as economias tem de se virar. Mas, se a religião dos malaios servirá de indicação da sua neutralidade numa qualquer disputa ideológica entre o seu Leste e o seu Oeste, pelo menos os precedentes históricos – com o valor restrito que esse facto possa ter – apontam para que ali se estivesse estado sempre mais disposto a receber as ideias que vêm de Ocidente do que as do Oriente…

26 novembro 2006

PIMENTA NA LÍNGUA DE CORREIA DE CAMPOS!



Vai para mais de dez anos, ainda Cavaco Silva chefiava o governo, houve um ministro que aproveitou uma pausa da Conferência para contar uma anedota engraçada, mas politicamente incorrecta. Longe de ser um Jerry Seinfeld, o ministro assassinou completamente a anedota, tirou-lhe a graça toda, e, quanto muito, deveria ter sido corrido de onde estava por falta de jeito sob uma saraivada de tomates – biológicos, que a pasta em questão era a do Ambiente.

O que me surpreendeu foi a desproporção que se seguiu entre o conteúdo do episódio e as suas consequências, com Duarte Lima a aparecer na televisão – na altura creio que era presidente do grupo parlamentar do PSD – com cara de buldogue mal disposto, um verdadeiro cão portanto, a protestar como o gesto era absolutamente inaceitável da parte de um ministro do governo do professor Cavaco Silva e como o duplamente infeliz Carlos Borrego tinha que se demitir.

Foi este episódio que acabou por matar qualquer crença que eu tivesse sobre a existência de uma regra lógica e deontológica que associasse, na vida política portuguesa, a dimensão da bronca cometida à necessidade da demissão posterior do titular que a comete. Borrego foi um verdadeiro pato em toda aquela história porque broncas e gafes de toda a espécie se seguiram sem que os seus autores fossem incomodados ou se pedisse sequer a sua demissão.

Há aqui na blogosfera quem peça demissões de ministros com uma regularidade mensal quase cronométrica. Outros que são muito mais moderados e por isso nos merecem mais atenção. Tudo isto quero associar às palavras proferidas recentemente por Correia de Campos (Os grupos privados [do sector da saúde] têm a sua política e pagam aos senhores jornalistas para porem notícias nos jornais e nas televisões), em mais um dos exemplos que ele não sabe estar calado.

É evidente – embora não costume ver isto destacado – que, de entre as duas pastas governamentais consideradas mais complicadas (a Educação e a Saúde), enquanto a oposição e os bloqueios às políticas do ministério dirigido por Maria de Lurdes Rodrigues são feitos talvez de uma mistura de 4/5 de militâncias pessoais e de 1/5 de interesses económicos, no caso do ministério dirigido por Correia de Campos o caso muda completamente de figura, lembremo-nos apenas dos interesses de laboratórios e farmácias ou dos interessados em explorar a medicina privada.

E também é evidente que, havendo dinheiro, há lóbis para defenderem e promoverem os interesses de quem lhes paga. E todos temos uma ideia, nem que seja aproximada, da forma como os lóbis funcionam… Agora, apesar disto tudo, há algo que se tem de explicar (por mais uma vez…) a Correia de Campos: que há afirmações que se podem e outras que não se podem fazer quando se está diante de câmaras de televisão e/ou com um microfone de rádio aberto.

Na televisão, a situação fiscal de Luís Filipe Vieira é transparente, a história da vida de Valentim Loureiro é impoluta – há ainda quem se lembre da gafe da campanha eleitoral de 95, quando chamou ao palco o próximo primeiro-ministro de Portugal? Guterres! Guterres! Gu… (era Fernando Nogueira que ele devia anunciar…) – e António Vitorino sempre foi uma pessoa muito estimada no PS. E ai de quem discorde! E ai deste ministro se continua a ser assim desbocado...

Mas também custa ouvir tanta indignação quando suspeitamos que aquilo que foi dito não deve ser de todo mentira e que se trata sobretudo e apenas, de uma falta de cortesia e de etiqueta. Porque disparates técnicos, lembro-me de os ter ouvido a uma antecessora e camarada de partido do actual ministro, Maria de Belém Roseira, quando tentava argumentar com uma jornalista (que embarcou na explicação…) que as dívidas totais do seu ministério eram apenas as vencidas e não o total, englobando vencidas e vincendas.

Ora sobre esse episódio – que não era para rir, antes para chorar, dada a ignorância técnica demonstrada pela ministra conjuntamente com a incapacidade da jornalista em a interrogar, corrigindo-a – não me lembro de ter visto quaisquer pedidos de demissão. E daí, também não me recordo de que a passagem da Maria de Belém pela pasta da Saúde tenha resultado em inflexões significativas no ministério – em consonância aliás, com a imagem que ficámos do chefe desse governo. Teria sido por isso que não valia a pena pedir a sua demissão?

25 novembro 2006

A “CAMPAINHA” QUE PERTURBA VITAL MOREIRA

Sempre que o assunto envolve militares, Vital Moreira reage sempre agressivamente, qual cão de Pavlov, como que se estivesse condicionado, desde uma outra encarnação, a rosnar ao som de uma campainha quando o tópico envolvesse fardas. Parece ser um estilo constante, e tanto faz que eu lhe possa dar razão - como aconteceu no último caso a que se referiu envolvendo os militares e a manifestação - como não, é por demais visível que Vital Moreira não guarda um pingo de simpatia pela classe profissional.

Ora não faz sentido que assim aconteça, porque com certeza que ele sabe que em qualquer grupo profissional, em qualquer especialidade, há sempre bons profissionais, outros menos bons, e uma minoria que é medíocre. Eu, por exemplo, mesmo como leigo, quando o assunto envolve a constitucionalidade das questões costumo prestar toda a atenção ao que diz e escreve o professor Jorge Miranda a esse respeito. Mas não me irrito assim tão exuberantemente com o que outros possam opinar sobre esse mesmo assunto (e Deus sabe como há quem se esforce por provocar a nossa irritação...).

O ACESSO AO MICROFONE

Felizmente, longe vão os tempos em que o controle da comunicação social permitia aos detentores do poder impedir o acesso a ela daqueles que não lhes fossem convenientes. Numa disputa, existia a versão oficial e assim o caso estava praticamente arrumado.

Ainda bem que hoje tudo se passa de forma diferente. Não invalida que aos detentores do poder lhes continue a desagradar certas notícias e as opiniões de certos protagonistas, mas agora a versão oficial tem de estar mais bem estruturada que a versão contrária.

E também não impede que existam casos praticamente arrumados. Não por falta de audição livre de uma das partes mas, como acontece com José Veiga nos negócios do futebol ou com o major Reinado nas disputas políticas em Timor, porque essas partes perderam a própria credibilidade.

KONSTANTIN ROKOSSOVSKY, O MARECHAL RUSSO DE NOME POLACO

É curioso como às vezes são as autocracias que se podem permitir gestos de generosidade ou tolerância, permitindo-se a liberdade de romper com as convenções, para com elementos de valor, mas de grupos desfavorecidos, que não estariam destinados a ocupar os postos de destaque que vieram de facto a ocupar, se não houvesse o tal poder despótico que os promovesse.

Por exemplo, Mehmed Koprulu (1575 ou 78 ou 83-1661), que nasceu pobre na Albânia e foi recrutado à força, enquanto jovem, para servir como janízaro na guarda do Sultão turco, ali fez carreira até chegar a ser o Grão-Vizir – uma espécie de primeiro-ministro – (1656-1661) todo poderoso do Sultão otomano Mehmed IV, numa espécie de reedição oriental do quase contemporâneo cardeal Richelieu da França.

Entre nós e mais próximo no tempo, embora numa escala mais modesta, só o poder absoluto de Salazar em 1936 pode explicar a ascensão de um capitão do exército de 37 anos (Fernando Santos Costa) às responsabilidades da implementação da grande reforma das Forças Armadas – embora com o título discreto de subsecretário de estado – numa sociedade pouco propensa a precocidades desse género.

E, na União Soviética, mais ninguém, à excepção do próprio Staline, se atreveria a dar publicamente mostras de desagrado chauvinista por um dos três maiores comandantes militares das unidades do Exército Vermelho que, em finais de 1944, se preparavam para conquistar Berlim e concretizar a vitória soviética ter o nome distintivamente polaco – embora russificado – de Rokossovsky.

As primeiras dúvidas colocam-se logo sobre as origens de Rokossovsky – ou melhor, Rokossowski, na forma polaca do nome que era o de origem de seu pai. E dividem-se as opiniões quanto ao local de nascimento, Varsóvia ou Velikie Luki, na província de Pskov (Rússia), e quanto à origem social da família, um funcionário dos caminhos-de-ferro ou um pequeno proprietário rural, ramo menor de uma família abastada.

Não há dúvidas quanto à data de nascimento, 21 de Dezembro de 1896 (é 19 dias mais novo que Zhukov e um ano e 7 dias mais velho que Koniev, os outros dois grandes Marechais), nem que, a ter nascido na Rússia, era muito novo quando a família se mudou para os arredores de Varsóvia: apesar de bilingue (admite-se que a sua mãe fosse russa), o seu russo sempre manteve uma acentuada entoação polaca.

Mas é preciso não nos esquecermos que, durante a infância e a juventude de Rokossowski, a Polónia fazia parte do Império Russo. Segundo as biografias oficiais – há duas, uma soviética, outra polaca, esta paradoxalmente mais ideológica – em1914, com 18 anos, alistou-se como voluntário para lutar pelo Exército Russo, onde obteve, até 1917, uma excelente folha de serviços.

Como terá acontecido a muitos outros naquela altura, o jovem Rokossovsky – terá sido por esta altura que terá russificado o seu nome – com aquela idade pouco mais sabia fazer do que combater e juntou-se aos bolcheviques durante a Guerra Civil que sacudiu a Rússia (1917-21), onde teve oportunidade de se tornar um excelente e reputado oficial de cavalaria montada* no Exército Vermelho.

Em consequência disso, Rokossovsky tornou-se uma estrela em ascensão, depois de se ter distinguido em operações onde esteve envolvido no Extremo Oriente, contra os chineses (1929). Em 1930, com 34 anos, tornou-se o comandante da 7ª Divisão de Cavalaria – o equivalente ao posto de general (os postos haviam sido abolidos, só vieram a ser reintroduzidos em 1935).

Em 1936 já comandava um Corpo de Exército, mas Rokossovsky era um alvo bom demais para escapar às purgas ordenadas por Staline naquela época, de que os escalões superiores do Exército foram uma das piores vitimas. Preso, acusado de espiar para a Polónia, depois torturado, objectivamente Rokossovsky deve ter tido a sorte de ter escapado vivo. Foi libertado na primavera de 1940.

A invasão alemã de Junho de 1941 criou a necessidade no Exército Vermelho, que havia ficado decapitado pelas purgas dos finais dos anos 30, que uma nova geração de comandantes – Rokossovsky e Zhukov tinham 45 anos e Koniev 44** – aparecesse para o dirigir, geração que iria ser formada sobretudo pela competência que os novos generais demonstrassem em combate.

A carreira de Rokossovsky é meteórica. Em Dezembro de 1941 comandava o 16º Exército, encarregado de impedir que Moscovo fosse tomada pelos alemães, um anos depois, em Dezembro de 1942, comandava a Frente do Don, englobando 7 exércitos e responsável pela manobra de cerco e aniquilamento do VI Exército alemão em Stalinegrado.

São também as forças sob o seu comando – agora designada por Frente Central – que estão envolvidas na Batalha do Kursk, em Julho e Agosto de 1943, onde os soviéticos conseguem deter uma enorme contra-ofensiva alemã, naquela que foi considerada a maior batalha de blindados de toda a Segunda Guerra Mundial. Rokossovsky foi promovido a Marechal em Junho de 1944.

E foram também, paradoxalmente, as tropas sob o seu comando – agora a Primeira Frente da Bielo-Rússia – que estiveram envolvidas na controvérsia que perdura até hoje sob a ausência de qualquer apoio do Exercito Vermelho à Revolta de Varsóvia que a resistência polaca resolveu desencadear contra a ocupação alemã, que durou de Agosto a Outubro de 1944.

Como era a Frente de Rokossovsky que se encontrava mais bem posicionada para vir a conquistar Berlim, Stalin decidiu que o comando dela deveria passar para Zhukov e Rokossovsky fosse transferido a Segunda Frente da Bielo-Rússia, o que aconteceu em Novembro de 1944. Foi uma decisão que, embora fosse compreensível do ponto político, Rokossovsky nunca aceitou com razoabilidade.

No final da Segunda Guerra Mundial, como acontecia com alguns dos seus camaradas, como Marechal da União Soviética, com inúmeras condecorações, Rokossovsky tinha atingido o pico da sua carreira militar antes de fazer cinquenta anos. E como ícones populares, Staline sabia que tinha de tratar dos seus egos com métodos diferentes aos que empregara nas purgas dos anos 30.

A origem de Rokossovsky foi agora aproveitada para lhe atribuir colocações na Polónia, primeiro como Comandante em Chefe das forças soviéticas (1945-49) e depois, através de uma naturalização tão inesperada como espectacular, Ministro da Defesa polaco, Marechal da Polónia e membro do Politburo do Partido Operário de Unidade Polaco (nome comprido do Partido Comunista Polaco).

Como polaco, Rokossovsky, mais os assessores militares soviéticos que instalou no país, acabou odiado pelos seus compatriotas, personalizando como ninguém o domínio russo sobre a Polónia. Acabou em desgraça nas revoltas de 1956, quando se pretendeu opor à substituição do antiquado Bierut pelo mais moderado Gomulka. A União Soviética recebeu-o de volta, com todos os títulos e honras.

Faleceu em Agosto de 1968. Com boa figura e boa presença, o que apenas aumentava ainda mais as especulações sobre as suas origens aristocráticas polacas (que seriam inadmissíveis num Marechal da União Soviética), Rokossovsky foi sobretudo um dos melhores oficiais generais da sua geração, com uma carreira excepcional na sua pátria de adopção – ou não, isso ficará sempre por esclarecer…

* Ainda muito utilizada e valorizada na Guerra Civil russa (1917-21) pela sua mobilidade, a cavalaria tradicional havia já sido completamente abandonada na Frente Ocidental da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e foi depois substituída pela cavalaria dos blindados.

** Os generais soviéticos da Segunda Guerra Mundial são geralmente 5 a 10 anos mais novos que os seus homólogos alemães e ocidentais: enquanto os soviéticos mencionados nasceram em 1896 e 1897, Rommel nasceu em 1891 e Manstein em 1887, Montgomery em 1887 e Alan Brooke em 1883, Eisenhower em 1890 e Patton em 1885.

24 novembro 2006

A IMPORTÃNCIA DE FORTIFICAR ANNAPOLIS

Embora a democracia inglesa seja muito gabada pela sua precocidade (Século XVIII), a verdade é que a proporção dos que nela participavam nessas fases iniciais em relação à população britânica total da época (entre 1 a 2% do total), a transforma em exemplo tão bom quanto o ateniense – o exemplo tradicionalmente utilizado – daquilo que é uma democracia imperfeita, apenas formal.

Essa característica também se transpunha para a falta de qualidade em geral dos políticos e dos governantes britânicos daquela altura, visto o campo de recrutamento se limitar a uma classe social de efectivos muito reduzidos. Convém, contudo, dizer que, sendo as hierarquias e estruturas sociais rigorosamente as mesmas, o mesmo se passava com todos os outros países europeus da época.

Claro que a falta de concorrência também fazia com que os verdadeiramente dotados ficassem no poder por 21 anos – como aconteceu com Sir Robert Walpole, que foi primeiro-ministro de 1721 a 1742 – ou alcançassem o cargo supremo aos 24 anos de idade – Sir William Pitt, o Novo, tornou-se primeiro-ministro em 1783, depois de ter sido chanceler do Tesouro por um ano, antes disso.

Mas é sobre os menos brilhantes que quero falar, neste caso precisamente de Sir Thomas Pelham-Holles, Duque de Newcastle, que foi primeiro-ministro por duas vezes, entre 1754 e 1756 e depois entre 1757 e 1762, no meio das vicissitudes da Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que opuseram o Reino Unido e a França pelo controle das colónias da América do Norte e que terminaram aliás com a vitória dos britânicos.

Houve uma certa ocasião em que alguém fez notar ao Duque a conveniência que se fortificasse Annapolis. Annapolis?, respondeu, evidentemente fortificaremos Annapolis. Mas onde é que ela se encontra, exactamente?. A geografia não era o forte do pobre Duque, e naquela época ainda não havia sido inventada aquela figura do consultor culto incumbido de, soprando-lhe ao ouvido, safar o político destas enrascadas*.

Mas, para além do pobre Duque não ter percebido que o problema das fortificações na América do Norte tinha que ser sempre analisado na sua globalidade (que prioridades estabelecer em função dos recursos disponíveis), há que reconhecer que a estrela do diálogo acima descrito é mesmo o autor do bitaite inicial, o que alertou o Duque para a importância de Annapolis e o pôs a correr atrás da bola…

250 anos depois, precisamente aquela mesma técnica de bitaite continua viva, de boa saúde e continua a fazer efeito. Temos oportunidade de a ver, por exemplo, quando se abordam as relações exteriores de Portugal, e se comenta como têm sido negligenciadas as relações de Portugal com a Índia, ou com o Japão, ou com a Argentina, ou com qualquer outro país que venha ao caso…

Consideradas isoladamente, os Negócios Estrangeiros podiam sempre ter feito melhor quanto às relações entre Portugal e o tal outro país. Suspeito é que, mesmo que a assistência o faça, os governantes destinatários de tal discurso já não caiam na armadilha onde outrora o pobre Duque se espalhou… Por curiosidade, Annapolis é hoje uma pequena cidade (36.000 habitantes), capital do Estado norte-americano de Maryland.

* Às vezes falha. Lembrem-se do Guterres que acabou a mandar fazer as contas que ele não sabia fazer...

PARA ACABAR DE VEZ COM A CULTURA

O título é o melhor do livro, mas isso agora não interessa nada, porque é do título que eu preciso para o ligar a uma certa escola de pensamento, que eu suponho composta de almas sensíveis, que, estando sempre atentas às dotações que afectam as áreas culturais (vide este frenesim que gira agora à volta da extinção da Festa da Música), escolhem sempre para inimigos de estimação, porventura por os considerarem nos antípodas da sensibilidade, os militares, para quem aquelas mesmas almas, quando combinam a sensibilidade com militância, pedem a extinção.

Há quem pense que, quando muito repetida, uma certa linha de argumentação deixa de ser tonta pela força dos números de quem a defende. Na minha opinião, trata-se de acontecimentos independentes, e que, caso isso se verifique, um argumento tonto apenas passa a ser um argumento tonto repetido por muita gente. Que, na maioria das vezes, nem merece ser refutado, ou se o for, isso se possa fazer na brincadeira, recorrendo-se ao absurdo e invocando por sua vez uma argumentação arrojadamente tonta de sentido diametralmente oposto.

Ora, andando eu a aprender as técnicas argumentativas de causar impacto com algumas abordagens mais radicais que se escrevem num certo blogue, não concebo nada de maior impacto para responder a quem se mostre indefectível da cultura e hostil do militar que proponha e defenda, por contrapartida e qual arremedo de Arroja, a extinção do orçamento da cultura e o reforço correspondente das verbas para a defesa. Afinal, pensando bem, qual é a utilidade pública de mariquices como ballets ou de fantochadas como óperas e outras manifestações que só rotos parecem apreciar?

Quem estiver surpreendido pelo disparate da argumentação, preste-lhe uma melhor atenção, porque a única novidade dela é a inversão dos alvos, que não o radicalismo nem a superficialidade… O único problema que daqui poderá sair será se alguns daqueles a quem copiei a técnica argumentativa me levem a sério, concordem comigo e ainda por cima proponham a privatização do Exército para que ele seja naturalmente mais eficaz, esquecendo tudo o que Maquiavel escreveu sobre o assunto…

23 novembro 2006

O OCASO DOS NEOCONS?

É caso para reflexão séria o tom do último artigo de opinião publicado no LA Times por Max Boot, o neocon residente daquele jornal. Intitulado Cutting and running on our allies, partindo da situação actual no Iraque (o tema querido de Max Boot), passa em revista, desde 1804, todos os episódios em que o governo dos Estados Unidos abandonou e deixou entalados os seus aliados nos seus envolvimentos no estrangeiro.

O tom geral é, naturalmente, condenatório e a sequência de eventos acaba por se tornar, na perspectiva de Max Boot, justificativa do actual comportamento progressivamente distanciado dos iraquianos em relação aos norte-americanos. Nada disto é novo, os acontecimentos históricos mencionados sempre existiram e as análises associando-os (alguns ou todos os eventos) com a actualidade iraquiana pululam. A novidade está em quem os escreve.

Confesso não resistir ao gosto de lhe apontar algumas fraquezas na sua argumentação, como por exemplo a omissão do exemplo sul-coreano, um aliado norte-americano a que há que reconhecer um sucesso inquestionável, e pelo qual se compreende que nem sempre repousam nos Estados Unidos todos os factores decisivos – e, consequentemente, nem todas as responsabilidades – sobre o sucesso ou insucesso dos seus aliados externos.

Nos fundamentos deste lapso, percebe-se como Max Boot continua imperialisticamente norte-americano. Mas um norte-americano que, ao contrário dos seus melhores artigos do passado, se tornou agora apenas descritivo e que parece assumir-se como um mero espectador, embora atento, do que poderá vir a ser a nova política externa desta Administração. E nestes pequenos detalhes também se notam as sequelas dos resultados das eleições deste mês…

A DIFERENÇA ENTRE UMA CAIXA E UMA BOMBA

Em Portugal, nos assuntos ligados a futebol – que, cada vez mais, menos têm a ver com o jogo propriamente dito – é muito frequente arranjarem-se caixas jornalísticas mas é quase impossível arranjarem-se bombas. A bomba pressupõe a publicação de algo que o público desconhecia e nem sequer suspeitava e não se pode dizer que isso acontecesse com as manipulações de Valentim Loureiro e Pinto da Costa na arbitragem ou no caso mais recente dos negócios de José Veiga.

E o facto de se tratarem de caixas, a que muitos reagem – incluindo jornalistas – com uma espécie de sensação de alívio (finalmente!...) pelo fim da impunidade com que o visado se movimentava, é capaz de estar por detrás das excelentes entrevistas televisivas realizadas, tanto na TVI, como na SIC e na RTP, a José Veiga, obrigando o entrevistado a sustentar as suas insinuações e confrontando-o com as implicações das suas palavras, quando tentava colar a sua pessoa (e os seus problemas) à instituição Benfica.

Vale a pena realçar um bom trabalho, porque nestas coisas de caixas e de bombas e das artes de manipulação na televisão, é difícil esquecer o episódio em que Carlos Cruz foi às três televisões em cadeia e em todas elas, com planos a dar destaque às suas lágrimas, ele chorou a sua inocência… E nesse episódio específico, mesmo ainda antes de terminar o julgamento e da emissão das respectivas sentenças, já é possível concluir que as televisões caíram que nem uns patinhos

22 novembro 2006

QUANDO METE MERDA…

Quando os ditados populares têm palavrões do tipo merda costumam-se amenizá-los, dizendo que recorrem ao português vernáculo e invocando-se Gil Vicente e Bocage. Exemplo típico do que acabei de dizer, A merda é sempre a mesma só as moscas é que mudam, por alusão à luta política, aos políticos e ao rotativismo parlamentar do período da monarquia constitucional da segunda metade do Século XIX e do inicio do XX.

Terá sido por uma associação livre e por contradição que me lembrei de moscas que não mudam, e associei-a à reacção inequivocamente corporativista da classe dos jornalistas – se a dos outros é censurável, ainda alguns deles nos quererão convencer que a deles nem por isso… - em contestação à próxima abolição do regime especial de previdência e outras regalias sociais de que gozam.

A contradição entre essa atitude e as opiniões que se haviam lido previamente por toda a comunicação social, condenando reacções similares verificadas com outros grupos profissionais, como foram os casos dos polícias ou dos militares, apenas se torna caricaturalmente cómica, além de compreensivelmente humana, que já há muito tempo assim havia pregado frei Tomás…

Ou, para se adequar ao ambiente escatológico do poste, parece que os jornalistas só se aperceberam da crise e quão estávamos todos na merda quando o cheiro da dita lhes chegou finalmente ao nariz…

O TEMPO EM QUE FESTEJAVAM O DIA DOS MEUS ANOS!...

Nunca apreciei nem me senti confortável com o comércio informal – é um eufemismo... – e os regateios associados que me deixam sempre a sensação de ter sido aldrabado. Tenho uma sensação semelhante, que estou a lidar com pessoas – neste caso organizações - sem um pingo de seriedade, quando as televisões alteram, sem pré-aviso, as suas programações, quando intercalam intervalos com comerciais com uma duração quase superior à do programa original ou quando encadeiam os programas uns nos outros sem intervalo.

A minha relação com a TVI, por exemplo e depois de vários incidentes menores, só recentemente se tornou saudável. Conclui que os seus programadores não me englobavam como objectivo para os programas que transmitiam e que, por isso, seria sempre perda de tempo pesquisar quais seriam as suas propostas. Todas estas considerações me surgiram a propósito de uma notícia recente sobre legislação a aprovar que pretende que – salvo em condições excepcionais - as televisões só possam alterar a programação com mais de 48 horas de antecedência sobre a hora da sua emissão.

E o que talvez mais impressione seja a argumentação contrária, das televisões, defendendo que quem quer regulamentar sobre isso se está a imiscuir numa área em que não o devia fazer, como se se acusasse alguém de ser sobre intervencionista. Ora eu creio que este descaramento nasce também da segurança de quem antecipa que, houvesse uma verdadeira intenção em moralizar as práticas televisivas ora condenadas, bastaria invocar certos aspectos da legislação existente para sancionar fortemente as televisões, dissuadindo-as de as manter.

Portanto antecipa-se que será para que tudo fique rigorosamente na mesma… Deixem-me ao menos ser nostálgico e irónico, parafraseando um pequeno trecho do poema Aniversário, que Fernando Pessoa fez atribuir a Álvaro de Campos:

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
A programação da TV andava regularmente atrasada – mas era a que vinha no jornal!
Havia intervalos entre e a separar os programas transmitidos
Onde a sua duração raramente excedia os cinco minutos.
E eu tinha a grande saúde de nem saber o que era fazer
zapping.

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

21 novembro 2006

AS TRÊS OPÇÕES

Se a importância de um livro se medir pela frequência com que dele nos lembramos então Yes, Prime Minister será um dos livros mais importantes que tive oportunidade de ler. E se, como série de televisão, Yes, Prime Minister ainda se pode classificar na categoria das que importa mostrar que se conhece, embora seja importante não afectar demasiado apreço – já é tão antiga!... – o livro nem sequer aparece cotado na tabela das conversetas de cocktail.

O pretexto para a lembrança foram os títulos dados às três hipóteses colocadas pelos Comandos Militares norte-americanos para a evolução do seu envolvimento militar no Iraque: Go Big, Go Long, Go Home. Como se depreende dos títulos (uma escolha feliz), a primeira hipótese implica o aumento do envolvimento, com mais efectivos, a segunda, o prolongamento do envolvimento, embora reduzindo os efectivos, e a terceira, o fim do envolvimento.

Sem tropas suficientes para aumentar o envolvimento e ainda sem lata suficiente para se porem a cavar do Iraque, a resposta final tem tanto de inesperado como a adivinha sobre qual a casa dos três porquinhos que resistirá ao lobo mau: a de palha, a de madeira ou a de tijolo? Mas, só para chatear os adivinhadores, os generais arranjaram uma espécie de solução extra-concurso, em que se aumentam os efectivos por pouco tempo, para depois os reduzir e permaneceram reduzidos por muito tempo…

E onde é que entra a associação de Yes, Prime Minister a todo este episódio? Na recordação dos ensinamentos que Sir Humphrey Appleby prestou ao seu discípulo Bernard Woolley sobre a forma como um comité (tal qual o dos generais americanos) se deveria conduzir e produzir um documento síntese para apoio da decisão do primeiro-ministro num espinhoso caso de política externa. O documento deveria ter sempre três opções, especificou Sir Humprey:

A opção A era a correcta. A B era a opção A mas redigida de outra maneira. Se o primeiro-ministro, obtuso, escolhesse, apesar de tudo isso, a opção C, demonstrava-se-lhe que isso desencadearia a III Guerra Mundial em menos de 48 horas…

AS CEM ESCOLAS DE PENSAMENTO

O longo Período dos Estados Guerreiros da China começou algures em meados do Século V a.C., quando o Império Chinês – que, naquela altura abrangia apenas o rio Amarelo e parcelas do rio Yangtzé – se desmembra numa pluralidade de pequenos reinos e só termina em 221 a.C. quando um deles (Qin) vem a conseguir a ascendência sobre todos e a reconstruir a unidade com o seu monarca como imperador.

A curiosidade é que o período, mesmo muito rico em convulsões políticas e militares, não afectou em nada o ritmo de expansão da cultura e civilização chinesas ao longo do vale do Yangtzé, foi um período de significativa evolução tecnológica, com a introdução do ferro no armamento (atrasados em relação à Europa e Ásia Ocidental) e um período fértil no vasto campo das ideias.

O famoso Sun Tzu (Século VI a.C.) fora o percursor de uma vasta escola de pensadores da disciplina por ele criada, mas é na filosofia que se vai assistir a uma época irrepetível pela riqueza da produção teórica e que ficou conhecida para a História da China como o período das Cem Escolas de Pensamento. Das míticas cem, há três delas, indígenas, conjuntamente com uma alienígena (o budismo), que se virão a tornar determinantes para a explicação da História da China até hoje: o confucionismo, o taoismo e o legalismo.

CONFUCIONISMO

Confúcio era um professor itinerante que viveu no Século V a.C., que se deslocava de estado em estado, ensinando, criando discípulos e servindo de consultor aos governantes que estavam interessados nos seus serviços. Como acontece também com muitos dos grandes pensadores da Antiguidade, o que ficou do seu pensamento para a posterioridade não foram os textos da sua autoria, mas as notas compiladas pelos seus seguidores acerca dos seus ensinamentos. É de notar que, apesar de ter sido na sua época um consultor de sucesso, não há a certeza de que Confúcio tenha alguma vez recebido responsabilidades pela implementação daquilo que preconizava.

Centenas de anos de estudos e leituras e inúmeros retoques de milhares de leitores de grande qualidade intelectual aprimoraram os textos dos ensinamentos que lhe são atribuídos, sendo de destacar as contribuições de Mencius, um filósofo do Século III a.C. A preocupação principal do confucionismo centra-se no relacionamento humano. Os subordinados devem referenciar e obedecer aos seus superiores, enquanto estes devem exercer o seu poder de uma forma benevolente e justa. São excelentes princípios, talvez demasiado optimistas para o nosso cinismo ocidental moderno. Mas, intrínseco ao confucionismo está uma aversão congénita à inovação e, por arrastamento, ao progresso, dando sempre como referência os exemplos do passado como fonte de inspiração para a resolução dos problemas correntes. Entre as ideias do confucionismo que mais influência tiveram para a formação do pensamento chinês, vale a pena destacar:

Em primeiro lugar, o confucionismo atribui à família o papel de elemento nuclear da sociedade, e nela, a relação reverencial para com os progenitores é primordial. A lealdade para com os pais sobrepõe-se a tudo o mais, incluindo lealdades para com filhos, cônjuges ou governantes. Em segundo lugar, a visão confucionista da sociedade é basicamente constituída por relações onde está presente o elemento hierárquico. Nas cinco relações chave enumeradas pela doutrina confucionista o elemento assimétrico, de superioridade entre um dos intervenientes e o outro, está presente em quatro: pai e filho, governante e súbdito, marido e mulher e entre o irmão mais velho e o mais novo. Só a relação entre amigos escapa a essa lógica. Em terceiro lugar, a posição exposta pelo confucionismo defende que não só o governante tem a obrigação de governar bem e de fornecer boas condições de vida aos seus súbditos, mas que isso se vem a revelar benéfico para si e para o seu regime a prazo. Se o governante perder o apoio dos súbditos virá provavelmente a ser derrubado porque perderá o mandato divino para governar. Finalmente, o exercício do poder deve preparar-se através de educação específica para esse fim. Se, como se disse acima, Confúcio nunca veio a exercer funções executivas, a verdade é que, através dos seus discípulos, o conhecimento da sua doutrina tornou-se um critério selectivo para a ascensão aos lugares de decisão até se vir a tornar (muitos séculos depois) obrigatório.

Não deve ter havido muitos governantes daquela época que se tenham comportado de uma forma completamente conforme aos ensinamentos de Confúcio. Mas, sem se constituírem como uma oposição política (o que constituiria uma contradição com a lealdade ao governante preconizada pela própria doutrina), os seus seguidores sempre se podiam constituir como uma referência moral e uma elite intelectual que não se coibia de manifestar o seu desprezo por aquilo que consideravam má governação.

TAOISMO

Embora seja um enorme problema apresentar datas precisas para os acontecimentos da China antiga, é razoável assumir que Lao-Tse, o fundador do Taoismo, deva ter sido contemporâneo de Confúcio. Crê-se que, ao invés de Confúcio que era um consultor de grande categoria, mas itinerante, Lao-Tse fosse um alto funcionário de uma das cortes de um dos principados em que a China estava dividida naquela época. Depois do seu principado ter sido derrotado, e a corte aonde pertencia extinta, partiu para o exílio montado num búfalo. Ao chegar à fronteira que separava a China da barbárie, o funcionário alfandegário, Yen-Hi, pediu-lhe que lhe deixasse os seus ensinamentos, o que Lao-Tse fez, após uns dias de paragem para redigir o tratado que o tornou famoso (Tao To Ching), composto por 81 capítulos. Depois partiu e, segundo a tradição, mergulhou na eternidade acompanhado do seu búfalo.

Um dos aspectos principais do taoismo é a forma como ele preconiza a harmonia com as forças da natureza. Um dos aspectos a realçar na vida é o da sua simplicidade. E embora concordando com a visão dos confucionistas sobre a qualidade deplorável dos governantes da época, o gesto adequado do taoismo para isso é o de sobranceiramente ignorá-los. Na sua argumentação, o homem sábio preocupa-se com os seus próprios problemas, prefere ignorar o governo na esperança que ele lhe retribua da mesma forma.
O taoismo como que incita o indivíduo a uma inacção activa, uma espécie de viagem espiritual interior (o étimo Tau pode ser traduzido como o Caminho ou a Via), alheando-se das seduções mundanas, evitando a vida pública, e a dedicar-se à meditação e à ascese. Embora seja de certa forma absurdo falar das recomendações que o taoismo possa fazer a um governante, os ensinamentos que ele possa fazer a um indivíduo que, acessoriamente, seja governante, serão para que se empenhe em conhecer a si próprio e que, com naturalidade, conceda aos seus governados a liberdade para que possam fazer o mesmo.
A filosofia do taoismo veio posteriormente a cruzar-se com as práticas medicinais tradicionais, com crenças populares mais antigas e outros elementos culturais chineses. Não sendo propriamente de origem uma religião, o Taoismo é, de entre as escolas aqui apresentadas, a que reúne melhores condições para se integrar com as crenças ancestrais chinesas. Entre os resultados daquele cruzamento conta-se assim uma religião devidamente estruturada para a adoração das inúmeras divindades ancestrais e a disciplina de artes marciais que conhecemos por Kung Fu.

LEGALISMO

Se, pela terminologia moderna, atribuirmos aos seguidores do Taoismo o qualificativo de líricos, ao dos seguidores do Legalismo será de atribuir o qualificativo de pragmáticos. Os seguidores desta corrente filosófica argumentavam que sendo o ser humano fundamentalmente amoral, nunca poderão ser cativados pelos exemplos e pelos incentivos morais. A única forma de as fazer proceder correctamente é através de um sistema legal forte usando prémios e castigos. Se mesmo as infracções menores forem seriamente punidas, então ninguém se atreverá a cometer crimes. O filósofo Han Fei, que viveu no Século III a.C., defendia que, mesmo que haja ocasionalmente um indivíduo naturalmente bom, que não precisasse de ser coagido a comportar-se devidamente, o governante inteligente não lhe dará qualquer valor distintivo especial. A razão para isso é que as leis do estado só podem ser concebidas e aplicadas esquecendo as excepções. As leis são coercivas e destinadas a todos; não tem qualquer relevância que um certo individuo em particular se pudesse comportar devidamente sem que fosse coagido a tal.

Para Han Fei, a ideia de que o governante devia considerar as opiniões dos seus governados era um absurdo. Embora reconhecesse que o objectivo de um governo era o benefício do povo, manifestava a convicção que o povo era demasiado estúpido para o reconhecer, mesmo que vivesse sob ele. Outro filósofo da mesma escola de pensamento e seu contemporâneo, Li Si (a quem certas narrativas atribuem a responsabilidade pela execução de Han Fei), é ainda mais radical, e defende que o governante deve ignorar não só as opiniões mas até o bem-estar dos seus súbditos. O objectivo do governo deve ser servir os interesses do governante e não os da gente comum. Nas suas palavras se um governante não usar o estado para seu próprio prazer mas, pelo contrário, massacra o corpo e desgasta a cabeça em devoção ao povo, então transforma-se em escravo do seu povo em vez do domesticador do estado. Qual é a honra nisso?

Oriundos normalmente da classe aristocrática e com responsabilidades governativas, os filósofos da escola legalista parecem ter começado, a maioria das vezes, a sua formação imbuídos dos pensamentos da escola confucionista para depois darem uma volta de 90 ou 180º em relação aquilo que lhes fora ensinado. Li-Si, enquanto chanceler do imperador, acabou a ordenar perseguições aos confucionistas. Os legalistas eram muito mais assertivos que os filósofos das escolas concorrentes, sem grande respeito pela tradição e orientados para o futuro, confiantes que podiam criar novas técnicas de governo superiores a todas as praticadas no passado.

Uma pequena nota curiosa final e marginal: enquanto se travavam estas grandes disputas filosóficas na China, do outro lado dos Himalaias, na Índia, travava-se uma outra, também acesa, entre o HINDUÍSMO e o BUDISMO, e onde este último parecia estar a levar vantagem, já se tendo expandido para as regiões que são hoje o Afeganistão e as antigas repúblicas soviéticas…

O PICK-UP DO ZÉ CHINÊS



Esta é uma história antiga, com cerca de 40 anos, quando ainda havia discos e gira-discos, e os gira-discos eram ainda novidade e por isso tratados por um dos seus nomes originais em inglês: pick-up. A história passa-se em África, numa ex-colónia portuguesa, e envolve também um funcionário que tinha relações profissionais (administrativas) com um comerciante chinês que se especializara na importação de electrodomésticos japoneses, uma actividade que se afigurava como imensamente promissora.

Ora o funcionário tinha dois filhos que não deixavam de lhe pedir que comprasse um gira-discos, acessório de espectacular sucesso naquela época (estamos nos anos 60…) entre os adolescentes. E, aproximando-se a data de anos de um dos filhos, o funcionário lembrou-se de perguntar ao Zé Chinês (claro que ele tinha outro nome, mas era assim tratado, numa prova viva que o racismo não se aplicava só aos negros…) se ele vendia pick-ups. E o Zé Chinês vendia e apareceu lá em casa com um, novinho em folha, para oferecer aos meninos.

Gerou-se o mal entendido, porque o funcionário queria, de facto, comprar-lhe o aparelho, insistiu em pagar, o comerciante insistia em oferecer e só perante a ameaça da devolução da prenda é que o Zé Chinês lá estabeleceu um preço simbólico – 100$00! – que o funcionário pagou na doce ignorância do valor real do gira-discos. Todo este episódio é um perfeito exemplo do que podem ser os choques culturais nas formas como se negoceia e se estabelecem contratos e como se encaram as relações de poder e os subornos nas culturas orientais.

Comparados com eles, os portugueses sempre estiveram na infância da arte. Mas sempre que leio menções aos extraordinários desempenhos das economias chinesa e indiana raramente vejo referências aos extraordinários e conhecidíssimos índices de corrupção existentes nas suas economias. Não quer isto implicar que elas se desenvolvem por causa da corrupção. Mais, suspeito que as economias asiáticas se desenvolvem aos ritmos impressionantes que atingem, apesar da corrupção que ali grassa.

Mas, por muito politicamente incorrecto que isto possa soar, entre os factores essenciais que influenciam o desenvolvimento económico não se conta o da presença ou ausência de corrupção. O combate à corrupção é necessário como forma de estabelecer mais equidade e mais justiça social na repartição da riqueza. Isso vale a pena ir aprender à Finlândia… Como se pode aumentar essa riqueza, pode ser ali ou noutro lado qualquer…

20 novembro 2006

A ÁSIA ENTRE OS DOIS COLOSSOS DO FUTURO – 4


Se, seguindo as aparências, considerarmos os olhos amendoados como o traço fisionómico identificativo das populações do Extremo Oriente, então a grande linha divisória entre a China e a Índia situar-se-á ainda em território indiano, porque na população que habita os Estados montanhosos do Nordeste da Índia (entre os naga, por exemplo) já se notam esses traços fisionómicos. Mas se, em alternativa, seleccionarmos critérios culturais, essa grande linha divisória traçar-se-á logo a uma distância curta das fronteiras do Vietname, nos seus dois pequenos países vizinhos, o Cambodja e o Laos, onde os respectivos alfabetos, bem como a religião dominante, o budismo theravada, não deixam dúvidas quanto ao peso da influência indiana que ali se fez sentir.
Cambodja e Laos são países estranhamente pequenos em relação à dimensão média dos países da vizinhança próxima. A sua existência não deixa, por isso, de ser completamente legítima, assim como acontecerá na Europa, por exemplo com os casos da Áustria ou da Bélgica. Mas, tal como nos exemplos europeus citados, a lógica constitutiva destes dois pequenos países (à escala asiática) alicerça-se mais na lógica europeia da formação de pequenos estados tampão transportada para a Ásia – onde essa lógica não existia – por uma potência colonial europeia (a França) do que na configuração natural (tanto quanto se pode falar nestes casos de natureza…) resultante do equilíbrio de forças entre nações asiáticas.

CAMBODJA

Para muitos, o Cambodja é um país que, apesar da sua relativamente reduzida dimensão, pode ser rapidamente associado a duas imagens contraditórias. Uma é a de Angkor Wat, um dos mais belos (e maiores) templos do mundo, erigido no século XII e originalmente dedicado a cultos da religião hindu, depois veio a ser convertido ao budismo. A outra imagem é a de incontáveis pilhas de caveiras, resultado – ou melhor, subproduto – de uma radical transformação social – onde a vida humana não tinha qualquer valor – que se tentou levar a cabo no país entre 1975 e 1979 pelo regime dos Khmers Vermelhos. Embora, pelo número absoluto de mortos (de 1,5 a 2 milhões), o genocídio ali praticado nem tenha sido dos maiores da História recente, é-o quanto avaliado em proporção à população envolvida (7 milhões de habitantes contava o Cambodja naquela altura).

O Cambodja é um país de 181.000 Km2 (o dobro de Portugal), que faz fronteiras com o Vietname (1.230 Km.), a Tailândia (800 Km.) e o Laos (540 Km.), para além de uma linha costeira com quase 450 Km. de extensão. É um país onde predominam as baixas altitudes, onde o maior acidente geográfico é um curioso grande lago, Tonlé Sap, com cerca de 2.500 Km2 de extensão na estação seca, mas cuja dimensão aumenta quase dez vezes na estação das chuvas e que tem um sistema de abastecimento adjacente bastante flexível pois, conforme a estação, abastece ou é abastecido – os rios que lhe fornecem água flúem nos dois sentidos! - de água pelo grande rio Mekong, o eixo primordial do sistema fluvial do país. O clima é tropical, sujeito ás monções.

A população residente está estimada (2005) em 14,1 milhões de habitantes e pela análise da sua distribuição e composição ainda se notam as sequelas dos quatro anos do regime dos Khmers Vermelhos. No primeiro caso, pelos quase 10% da população (700.000 pessoas) que se expatriaram, sobretudo na Tailândia, e que só a ritmo lento têm regressado ao país desde 1992. No segundo, pela anomalíssima proporção de 7 mulheres para apenas 4 homens que se encontra entre os cambodjanos com mais de 65 anos de idade, resultado das execuções maciças (que incidia sobretudo nos homens) da época do genocídio. Todas estas perturbações tornam também difícil apresentar dados sobre a composição étnica da população. A esmagadora maioria da população – mais de 90% - é khmer. Depois, havia uma minoria (Cham) que, habitando o centro do país e representando cerca de 5% da população total, se identificava pela religião professada: era muçulmana. Foram perseguidos especialmente pelos Khmers Vermelhos, em cuja sociedade ideal não havia espaço para particularidades, mas não se consegue estimar o efeito disso na actualidade. Outra minoria perseguida naquela altura, mas depois protegida, foi a dos Vietnamitas. Sabe-se que muitos cidadãos do Vietname emigraram para o Cambodja nos últimos 15 anos onde pediram (e adquiriram) a respectiva naturalização. Mas não se sabe quantos eram vietnamitas étnicos e quantos pertenciam à minoria khmer do Vietname. Dúvidas semelhantes se põem quanto à quantificação das minorias chinesa, tailandesa e indiana, substancialmente menores que as anteriores. Quanto à religião, a maioria esmagadora da população (mais de 90%) assume-se como budista theravada e, além da minoria muçulmana já citada acima, há uma minoria cristã, sobretudo católica romana.

Os primeiros registos sobre os khmers apareceram no Século VI, cobrindo os territórios do que é hoje o Cambodja moderno e a Cochinchina (o Sul do Vietname), à volta do curso terminal do grande rio Mekong. Tratava-se de um estado onde se fazia sentir uma forte influência da cultura indiana, onde a religião oficial era mesmo o hinduísmo e que atingiu um longo período de apogeu, entre os Séculos IX e XII, quando para além dos territórios mencionados abrangia quase toda a actual Tailândia. Novas ideias – o budismo theravada, a partir do Século XIII - e novas potências – os thais, a ocidente, a partir do Século XIV e os vietnamitas, a oriente, a partir do Século XVII – vêm contribuir para a compressão progressiva do reino Cambodjano que parece estar em vias de extinção e um campo de disputa entre tailandeses e vietnamitas depois de um dos seus monarcas, Ang Cham II (1806-37), ver os seus domínios ocupados pelos tailandeses em 1812, enquanto, para contrabalançar, se reconhecia vassalo do imperador vietnamita de Hué.

Como uma cena clássica de Western, onde o 7º de Cavalaria surge à última da hora para os salvar dos índios, o reino do Cambodja, depois de já ter sido dividido por tratado entre os seus dois poderosos vizinhos (1845), é salvo da extinção total pela chegada dos franceses que aproveitaram as circunstâncias para darem mostras de um gesto grandioso salvando o Cambodja, colocando-o na condição de protectorado francês (1863). Transformados em defensores dos interesses cambodjanos, os franceses acabam por recuperar, pressionando os tailandeses, muito de território que a estes havia sido cedido durante as últimas décadas, dando-lhes as fronteiras ocidentais actuais em 1907. O Cambodja sob protectorado acaba por se transformar numa espécie de sub-colónia, onde a maior parte do pessoal administrativo é de origem vietnamita, e onde os circuitos comerciais vão parar a uma minoria chinesa, oriunda sobretudo de Saigão (hoje é a cidade de Ho Chi Minh, no Vietname).

Transformado num conjunto designado por Indochina francesa, conjuntamente com o Laos e o Vietname, de que se tornou uma área periférica e onde sempre predominou naturalmente aquele último, essa mesma condição marginal faz-se sentir nas disputas da ocupação japonesa de 1941 a 1945, na recuperação da soberania francesa, que concedeu a autonomia ao protectorado do Cambodja em 1946, e na concessão total da independência em 1954. Tudo o que aconteceu no Cambodja – e mesmo grande parte do que estava para acontecer até 1991 – foi consequência dos acontecimentos que se desenrolavam no grande país vizinho. O Cambodja transformou-se numa vítima colateral na guerra civil vietnamita que se travou entre 1964 e 1973 e o seu regime pró-americano afundou-se em 1975, quase em simultâneo com o do Vietname do Sul.

Os quatro anos seguintes (1975-79) é que tornam o Cambodja único na história dos genocídios recentes, sob o regime dos Khmers Vermelhos sob a direcção de Pol Pot. Impressiona também – e isso é muito menos publicitado - apercebermo-nos que a direcção desse regime, mesmo depois da sua deposição de dirigentes do país, foram os responsáveis, agora como rebeldes, pela manutenção de uma guerra civil que se prolongou até 1991. Pensando no futuro, a política de neutralidade cambodjana, tão apregoada durante a guerra do Vietname, pode não passar, como naquela altura, de um desejo, porque o Cambodja, tendo salvo a sua existência na última badalada do relógio, não consegue fugir à dura realidade de estar entalado entre duas potência maiores (Tailândia e Vietname).

LAOS

O Laos é, por inerência, o país desconhecido, interior, fora das grandes áreas de interesse e de prosperidade da Ásia. Não fora o aparecimento dos franceses nos finais do Século XIX que o configuraram e o transformaram num protectorado, apoiando-se no curso do rio Mekong como linha defensiva contra a expansão tailandesa (apesar dos povos de um e outro lado do rio serem próximos…) e dificilmente se estaria hoje a falar desse país, cujas regiões pertenceriam possivelmente a qualquer um dos grandes países vizinhos: China, Vietname ou Tailândia.

Com uma área de 237.000 Km2 e fronteiras bastante extensas com o Vietname (2.070 Km.) e a Tailândia (1.830 Km.) e menos extensas com a China (500 Km.), o Cambodja (430 Km.) e a Birmânia (240 Km.), o Laos é um país simples de descrever, com um Alto Laos, de montanhas, junto à fronteira com o Vietname, e um Baixo Laos, que percorre as planícies associadas ao rio Mekong e aos seus afluentes, nas áreas junto à fronteira tailandesa. O clima é tropical, sujeito às monções.

A população está estimada em 5,9 milhões de habitantes o que faz do Laos um país anormalmente sub povoado (densidade de 25 hab./Km2) para país asiático. Cerca de 2/3 dos laocianos são de etnia lao, habitando o oeste do país e pertencem ao mesmo grupo que habita o leste da Tailândia, com quem compartilham língua, cultura e religião (budismo theravada). A composição do resto da população encontra-se pulverizada entre várias designações que ocupam as terras altas no Leste do país. Aí, predominam os cultos tradicionais.

A história inicial do Laos é muito semelhante à da Tailândia, com a migração dos thai, vindos do Norte (Yunão, na China) desde o Século X, a constituírem a classe dirigente sob a qual se organizaram os primeiros estados da região. Mas o Laos sempre foi um local remoto e quase despovoado (se actualmente a densidade é de 25 hab./Km2, imagine-se qual seria a daquelas épocas…), na órbita da Tailândia, embora tivessem ocorrido incidentes em que o país se cindiu em dois estados rivais (segunda metade do Século XVIII) reflectindo a rivalidade contemporânea entre tailandeses e birmaneses.

A rivalidade entre estados (os principados de Luang Prabang e Vientiane) serviu de pretexto aos franceses para se imiscuírem nos problemas da região na segunda metade do Século XIX e, tomando o curso do rio Mekong como fronteira, constituírem um estado tampão entre a Tailândia e o seu Vietname, que constituíram em forma de protectorado em 1893. As fronteiras definitivas do país, nomeadamente as ocidentais datam de 1904, com a cedência das terras do Laos da margem ocidental do Mekong pela Tailândia.

Se a história do Cambodja sob os franceses e depois disso segue a história da Indochina francesa, o que quer dizer a do Vietname, então, por maioria de razão, assim se pode descrever a evolução da história do Laos. Pior que a do Cambodja, a neutralidade do Laos (apesar de ratificada em Tratado em 1954) nunca passou de uma quimera: a maior parte da famosíssima trilha Ho Chi Minh, por onde o Vietname do Norte reabastecia em homens e material os guerrilheiros Vietcong no Vietname do Sul corria pelo território laociano. Usada descaradamente pelos norte-vietnamitas e bombardeada maciçamente pelos norte-americanos, o governo laociano – também dividido em três facções: pró-americana, pró-norte-vietnamita e verdadeiramente neutral… - não passou de um espectador impotente durante a fase da intervenção norte-americana no conflito em que o seu território era zona de combate.

Também no Laos, 1975 representou o ano da vitória final da linha pró norte-vietnamita e durante o decénio e meio que se lhe seguiu o país seguiu a conduta que tinha sido a da época colonial: a de um satélite do Vietname. Curiosamente, desde aí e muito mais do que no Cambodja e muito provavelmente devido a proximidade cultural entre as populações lao dos dois lados da fronteira, a aproximação entre Laos e Tailândia tem colocado o primeiro país numa posição muito mais equidistante entre os seus dois grandes vizinhos do que acontece com o seu vizinho cambodjano do Sul.