31 dezembro 2008

PROVA DE AMOR

A Teoria dos Jogos é uma disciplina interessantíssima das matemáticas, que se costuma aplicar às Ciências Económicas e Sociais, onde já se inventaram uma profusão de jogos. No entanto, na lista que consultei, não encontrei qualquer referência a um jogo de um programa de rádio chamado Prova de Amor, que se jogava há coisa de uns oito a dez anos no programa da manhã da Rádio Comercial.

Em que é que consistia? A pedido de um dos namorados (9 em 10 vezes era ela), a produção do programa simulava uma chamada telefónica ao parceiro de um(a) admirador(a) onde a sua fidelidade era descaradamente posta à prova. No fim, aparecia em linha o namorado que quisera fazer a Prova de Amor e, também 9 vezes em cada 10, o programa acabava com o ambiente azedo entre o casal…

As coisas azedavam não apenas com os casos dos parceiros apanhados em plena infidelidade (que eram a maioria…) mas também com a reacção daqueles que, mantendo-se fiéis, descobriam depois a grosseria do teste a que haviam sido submetidos pelo parceiro… Em suma, duma maneira ou doutra, telefonar para o programa Prova de Amor parecia uma forma garantida de terminar o namoro…

Na altura, o calão tecnocrático ainda não havia popularizado a expressão, que hoje se tornou corrente, da win-win situation, mas a Prova de Amor, nos antípodas da expressão anterior, e para quem queria verificar qual era a solidez do seu namoro, era uma descarada lose-lose situation

O SÍMBOLO DO COMUNISMO

Há que reconhecer que quase todos os movimentos ideológicos que se reclamaram da herança marxista se apropriaram, como seu símbolo, da foice e do martelo. Tenho para mim, que o que mais próximo existiu daquela sociedade que se reclama socialista e que ainda faz sonhar Odete Santos e os nostálgicos do XVIII Congresso do PCP do Campo Pequeno terá sido a da Alemanha Democrática. Não fosse a devoção iconográfica e creio que o verdadeiro símbolo desse comunismo de confronto e de concorrência com o capitalismo deveria ser o escudo da antiga República Democrática Alemã.
Além do seu martelo operário ao centro, a adição do compasso dá um espaço próprio, mais legítimo, aos intelectuais, superando uma das mais caricatas lacunas dos comunistas, que são obrigados a classificar como operários (no PCP, começa-se pelo exemplo de Jerónimo de Sousa) pessoas que não se aproximaram de uma máquina fabril há vários decénios… Além disso o alinhamento geométrico das espigas de centeio em redor dão ao conjunto a ideia daquele rigor organizativo que os comunistas tanto prezam e que agora se sabe que era muito maior entre os alemães do que entre os russos.
Conhece-se a cerrada disputa entre capitalismo e comunismo que se travou nas fronteiras internas da Alemanha, o desfecho da história, que não terminou bem para os comunistas. Ao contrário do que se costuma pensar, a maior parte dos muros que marcavam as fronteiras internas entre as duas Alemanhas já haviam sido erigidos em 1952, muito antes da construção do famigerado Muro de Berlim, que veio a dividir a cidade em Agosto de 1961. Essa separação física não evitou outras disputas Leste/Oeste que se travaram doutra forma, em pequenas histórias que aqui ainda virei a contar.
Mas o que se torna interessante é como durante aqueles 40 e poucos anos de Guerra-Fria e perante a Europa Ocidental, a Alemanha Democrática – mais do que qualquer outro país da Europa de Leste e muito mais do que a própria URSS – funcionou como uma espécie de montra da sociedade do que aqueles regimes podiam prometer. Se calhar, terá sido por isso que depois de 1989 terá sido implacável a forma como as fraquezas do regime foram denunciadas… Mas depois delas, será preciso ser de uma ingenuidade dialéctica para ainda acreditar que o fiasco do projecto se deveu a erros de implementação

30 dezembro 2008

HOMENAGEM

Este poste é uma homenagem minha a alguém que teria ficado deliciado se tivesse visto a cena abaixo. O filme de que a cena foi retirada intitula-se Cármen la de Triana, data de 1938 e é espanhol do lado nacionalista (lembre-se que em 1938 ainda se estava em plena Guerra Civil), embora conste que as cenas interiores foram todas rodadas na Alemanha.

Como a Cármen original, a de Bizet, cujo argumento copia, trata-se de um musical cujas músicas alcançaram imensa popularidade à época. Em Portugal o filme só veio a ser estreado em 1942. A canção que a protagonista (chamada Império Argentina) canta em palco neste vídeo foi um desses êxitos, intitulado Los Piconeros.

A HUMILHAÇÃO FRANCESA

Estas duas fotografias são exemplos de um outro género de humilhação por que passaram os franceses depois de se verem forçados a assinar o Armistício de Junho de 1940. Os blindados que se nelas se vêem eram originalmente franceses (Somua S-35) mas foram capturados e depois decorados com as marcas da Wehrmacht e tripulados por soldados alemães.
Humilhação acrescida: as duas fotografias foram ambas tiradas em França – numa delas vê-se nitidamente o obelisco da Place de la Concorde em Paris. Considerando que possuíam diversas deficiências de concepção (uma tripulação de apenas 3 elementos era uma delas), os alemães desistiram de usar os Somua em combate e deram-lhes outros destinos (guarnição, instrução).
Contudo, esta curiosidade não pode fazer esquecer a enorme contribuição para a produção industrial de guerra que a Alemanha adquiriu em consequência das anexações da Áustria (as indústrias da Steyr Mannlicher) e da Checoslováquia (as da Škoda) e das conquistas da Bélgica (a FN Herstal) e da França (Schneider & Cie e muitas outras).

29 dezembro 2008

TV NOSTALGIA – 35

Depois de me ter referido, com Silencium, a uma série britânica com uma música de genérico muito bonita, acabei por ter mais um ataque de nostalgia televisiva e fui desenterrar uma outra série britânica, já com 25 anos, que creio que se intitulava O Barco Espião (Spyship, no original), cuja música de apresentação (A Cold Wind, cantado por June Tabor), além de muito bonita, era inconfundível na sua estrutura semelhante a uma antiga balada céltica:

A cold hand moved out over the sea...

A cold hand moved out over the icy sea...



And it took good men,
Good fishing men,
From their wives and families...

Now there's sorry and grief,
There's anger in the town
And this hollow mystery...

O Mistério centrava-se em quais haviam sido as verdadeiras causas para o afundamento de um inocente barco de pesca durante a sua faina no Mar do Norte e a música pode ser escutada no início do vídeo abaixo:


E os meus enormes agradecimentos a quem me ajudou nesta pesquisa.

28 dezembro 2008

A EUROPA LOURA E DE OLHOS AZUIS

Os resultados de uma investigação sobre as características genéticas de uma população como a europeia tendem a apresentar-se da forma que se pode observar no mapa abaixo: extremamente confusos. Os vários círculos mostram a distribuição dos Haplogrupos do cromossoma Y humano nos diversos países europeus e, por muito leigos que sejamos, apercebemo-nos facilmente como uma explicação razoável de qual seja o significado daqueles resultados é capaz de ser, não só bastante complexa, como de nos vir a tomar algum tempo…
Ora, recentemente, em vários daqueles artigos científicos de jornal, destinados a não cansar quem os lê, um desses estudos (sobre a população ibérica) foi simplificado para conclusões no estilo foi revelado que 20 por cento da população portuguesa e espanhola são de origem judaica e 11 por cento de origem árabe e berbere, o que foi uma maneira airosa de compactar as muito mais complexas conclusões do artigo original do American Journal of Human Genetics. Quase apetecia dizer que pareciam simplificações para louras, as das anedotas.
É que para escrever artigos sobre genética das populações europeias assim dessa leveza, e mesmo a propósito das louras (mas não as das anedotas), adiciono aqui dois outros mapas da Europa, que parecem mais vocacionados para o estilo noticioso que se pretende nesses artigos. Num (acima) mostra-se a distribuição pela Europa da proporção de indivíduos loiros. Noutro (abaixo), a dos indivíduos com olhos azuis. Trata-se de dois atributos genéticos que intuitivamente associamos e é engraçado verificar se essa associação faz sentido.
Comparem-se os dois mapas e verifique-se como a distribuição da incidência de indivíduos de olhos azuis nem sempre acompanha a distribuição geográfica da incidência dos indivíduos louros, especialmente na Europa Ocidental e Central. Como se vê por este exemplo, até é fácil escrever um artigo científico engraçado sobre a distribuição genética de populações europeias. Agora, é necessário que se escreva, como aqui, sobre temas simples. Quando se tenta simplificar assuntos complexos – foi o caso do estudo da população ibérica – costuma dar asneira…

MAPA RELIGIOSO DOS ESTADOS UNIDOS

Embora nos países de língua portuguesa normalmente não se costume ser muito sensível às especificidades das diversas denominações protestantes, é fácil apercebermo-nos da heterogeneidade de confissões existentes nos Estados Unidos, ao observar o mapa acima onde cada um dos quase 3.150 condados está identificado por uma cor convencionada que se associou à denominação religiosa que é maioritária nesse condado. Quando essa maioria é absoluta o facto está assinalado por uma pinta preta (pode clicar em cima do mapa para o ampliar).

Um dos primeiros fenómenos que chama a atenção é a grande mancha vermelha, correspondente às Igrejas Baptistas que predomina no Sul. Os baptistas são uma reforma à reforma inglesa. Acima dessa mancha aparece uma outra de cor de laranja, correspondente às Igrejas Evangélicas de inspiração luterana vindas da Europa continental. Entre as duas, uma mancha verde, um pouco dispersa, assinala os condados onde a maioria pertence a Igrejas Metodistas que, como os baptistas, são uma outra dissidência à doutrina da reforma anglicana.

Mais para Oeste, centrada no Estado de Utah, aparece uma outra mancha de cor bege. A Igreja tem o nome Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mas os seus seguidores são normalmente designados por mórmons. O fundo azul claro do mapa corresponde aos condados onde a Igreja Católica Romana é maioritária, o que é muito frequente quando os católicos são contados, não em comparação com as denominações protestantes em conjunto, mas com cada uma delas em separado. Em maioria absoluta os católicos predominam no Sul dos Estados do Texas e da Luisiana.

27 dezembro 2008

SILENCIUM

Além de ser a banda sonora de uma boa série televisiva policial (Testemunha Silenciosa - que está actualmente a passar no AXN), esta música, denominada Silencium, possui uma beleza própria que merece bem o destaque de um poste.

O TAO

Aqueles que escrevem e se pronunciam com extremo rigor mas de assuntos que não costumam ser abordados frequentemente, quando lhes adicionam ainda por cima um estilo e um vocabulário de alguma forma hermético, tendem a ser considerados, além de brilhantes, um pouco como profetas e aquilo que dizem e escrevem costuma ser levado à conta de oráculos
Há quem, nestes momentos festivos em que se tem popularizado demais o envio de SMS congratulatórios, não queira fazer má figura perante tais vultos da erudição e, vai daí, peça emprestado a outros profetas do passado alguns dos seus pensamentos para enfeitarem o seu SMS com votos de boas-festas, como se procurassem não se desmerecer aos olhos do destinatário…
Fica um pouco excessivo, mas torna-se ainda mais ridículo quando esses pensamentos vêm escritos em inglês, como se o pensador, e será o caso, por exemplo, do filósofo chinês Lao-Tse (Século VI a.C.), tivesse tido algum contacto com o idioma de Shakespeare… Em rigor, no SMS há que atribuir os textos (traduzidos em português) a Lao-Tse (ou Lao Zi) ou então no original a 老子…

26 dezembro 2008

OS ESTADOS PRINCIPESCOS DA ÍNDIA – 8

Com a meia dúzia de casos que foram aqui apresentados não se pretende ter esgotado, apenas tipificado a história dos problemas por que passaram tanto a Índia quanto o Paquistão para a definição das suas fronteiras recíprocas. Uma das questões que a Partição de 1947 não resolveu, apesar dos milhões de refugiados que ela gerou, foi a questão dos muçulmanos que ficaram do lado errado da fronteira. Hoje, mais de 60 anos passados, entre os 460 milhões de muçulmanos com que conta o subcontinente, há 150 milhões (ou seja, quase um terço) que têm a nacionalidade indiana.
Isso permite chegar àquelas conclusões tão surpreendentes quanto curiosas: que a Índia é o terceiro país do Mundo em número de muçulmanos, depois da Indonésia e do Paquistão, ou que é o segundo país com o maior número de muçulmanos xiitas, logo a seguir ao Irão. Só que a realidade sociológica da comunidade muçulmana é muito mais complexa que aquela aritmética comparativa: aqueles 150 milhões de indianos são um agregado tão heterogéneo quanto aquele que transforma, do outro lado da fronteira, a coesão nacional do Paquistão num dos problemas prioritários da sua existência.
Muito do que une os indianos de confissão muçulmana em organizações como a Liga Muçulmana da União Indiana são memórias. Compare-se, por exemplo, na fotografia acima, aquele que foi o líder daquela formação até à sua morte em Junho deste ano, G. M. Banatwalla, com o retrato institucional do pai fundador do Paquistão, Muhammad Ali Jinnah, imediatamente por cima… Ora o projecto de uma pátria única protagonizado por este último para os indianos de confissão muçulmana esgotou-se há muito… Pior, sofreu danos irreversíveis em 1971 com a secessão do Paquistão Oriental, tornado Bangladesh.
Como qualquer grande fenómeno sociológico que ocorre aquele subcontinente, a questão dos indianos de confissão muçulmana é um fenómeno extremamente complexo onde o primeiro patamar de complexidade resulta do facto dos mencionados 460 milhões se distribuírem em números muito aproximados entre as três nacionalidades do subcontinente: paquistanesa (160), indiana (150) e bangladeshi (130 milhões). São fenómenos como esse que conferem às rivalidades geopolíticas ali existentes um direito de intromissão que não costuma existir noutras grandes rivalidades espalhadas pelo Globo.

Tomemos, por exemplo, a tradicional rivalidade sino-japonesa e os elementos culturais que as duas culturas compartilham (como o alfabeto ou a religião budista) e verifique-se como lhe falta o toque fraternal que, apesar das quatro guerras (1947, 1965, 1971 e 1999) a rivalidade indo-paquistanesa contêm. Tanto é assim que uma encenação dessa rivalidade passou a desenrolar-se todos os dias no posto fronteiriço de Wagah (acima) e o evento já adquiriu fama turística mundial… Menos histriónicos, mas muito mais graves (foi por aí que comecei esta série), foram os ataques de Novembro em Bombaim…
Interpretando os acontecimentos de há um mês para cá, se os Serviços de Informações indianos foram obviamente apanhados desprevenidos quanto ao quando da Operação, a pressão que eles têm colocado (por intermédio dos Estados Unidos) em cima dos seus homólogos paquistaneses, e o incómodo evidente que tem sido revelado por estes últimos parece indiciar que os indianos mostram saber quem terá estado por detrás da Operação. E o momento, com o capital de simpatia gerado por terem sido as vítimas é demasiado bom para que a Índia não explore esse filão até ao fim…
Será propósito da Índia usar os Estados Unidos para que pressionem o Paquistão para que ele desarme o seu arsenal de movimentos islâmicos clandestinos, alguns deles efectivamente controlados pelos Serviços de Informações paquistaneses, outros apenas alegadamente controlados e outros que nem alegadamente o são… O que restará ao Paquistão, na situação de fragilidade em que está colocado, serão manifestações mediáticas de aumento da tensão militar como aquelas que ultimamente têm vindo a ser ventiladas… Mas a constrição diplomática montada pela Índia parece ser muito forte

25 dezembro 2008

PAZ NA TERRA AOS HOMENS DE BOA VONTADE

Com a devida vénia, transcrevo para aqui um poste do Da Literatura colocado no passado dia 22, da autoria de Eduardo Pitta e comentando um artigo de Francisco Almeida Leite (co-autor do Corta-Fitas) que havia sido publicado nesse mesmo dia no Diário de Notícias. Pelos esclarecimentos que pretende prestar, o poste faz-me lembrar aquela tradicional mensagem de Natal: Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade… Reza assim:

O Diário de Notícias informa que Pacheco Pereira vive numa quinta: «a quinta onde reside, a Marmeleira, fica aí» (no concelho de Rio Maior). Sucede que a Marmeleira não é uma quinta. É uma freguesia do concelho de Rio Maior, criada em 1878, e elevada a vila em 1927. De acordo com o censo de 2001, terá 700 habitantes. Pacheco Pereira e mais 699. E não, não há nenhuma quinta dentro da vila.

Houve quem zurzisse no artigo aqui pela blogosfera, mas confesso que, apesar da boa vontade, o esclarecimento contido no poste de Eduardo Pitta me deixa confuso. Será que a questão em causa é a da Marmeleira ser uma freguesia e não uma quinta? Ou será que a questão é a freguesia ter outros 699 habitantes além de José Pacheco Pereira? Ou será que a questão é terem-na tentado passar por quinta quando não passava de mera freguesia? E daí, quem será o responsável por tal assomo de petulância?

Será o freguês José Pacheco Pereira que, apesar dos seus apelidos de ressonância histórica, não parece mostrar sequer ter posses para Morgado? Ou será o articulista Francisco Almeida Leite que se terá entusiasmado em excesso sobre as respectivas posses quando escrevia o seu artigo sobre barões e baronetes do PSD?... De qualquer modo, em espírito de boa vontade natalícia, Eduardo Pitta com aquele poste parece ter-nos explicado quanto a questão de não haver quinta na freguesia é grave…

24 dezembro 2008

A MANCHA VERMELHA

The House On Carroll Street (1988 - veja-se aqui a apresentação) foi um daqueles filmes que continha demasiados atributos negativos para se poder tornar popular e um sucesso de bilheteira. É um filme que versa o McCarthyismo, tema que não costuma recolher grande agrado das audiências norte-americanas. Foi escrito por um argumentista que havia sido uma vítima real desse mesmo McCarthyismo (Walter Bernstein), o que se reflecte no conteúdo do enredo, onde não se vislumbra qualquer ponta de lirismo: nem no final o herói fica com a moça, apesar de ter procedido bem. Como castigo é despromovido para um rincão
Sintetizando o argumento, trata-se da história de uma intelectual de esquerda (Kelly McGillis) que depois de ter sido convocada para uma daquelas audiências típicas do McCarthyismo, onde os convocados eram intimados a nomear uma lista de nomes para continuar a alimentar a actividade do Comité, vê a sua vida profissional completamente desfeita, por se ter recusado à fazê-lo. Reduzida a um emprego de dama de companhia de uma senhora idosa (Jessica Tandy), vem a descobrir que, ainda por cima, está a ser vigiada por uma parelha de agentes do FBI, onde um deles é convencional (mau), mas o outro é novo, ingénuo e bom (Jeff Daniels).

A intriga que justifica o título arranca no dia em que McGillis se apercebe de uma enorme discussão na mansão da vizinhança. Um dos pormenores que lhe desperta mais a atenção é o facto de a discussão se travar em alemão e o outro é que um dos visitantes da misteriosa casa ser o próprio Senador (Mandy Patinkin) que dinamiza o Comité de cariz McCarthyista (abaixo) que havia sido responsável pela degradação da sua situação. Com a ajuda do tal agente bom, a heroína vai tentar descobrir o que se passa na tal casa, que se revela um entreposto de uma rede de imigração clandestina de europeus que vêm para os Estados Unidos...

Afinal o promotor da rede é o próprio Senador e os imigrantes ilegais são antigos nazis. Seguindo o seu raciocínio, enquanto por um lado perseguia aqueles que considerava os vermelhos por intermédio do Comité do Senado, por outro, perante a nova lógica da Guerra-Fria que se desenhara, o Senador pretendia aproveitar os préstimos daqueles antigos inimigos dos seus novos inimigos. E é enquanto ele tentava explicar isto a McGillis numa conversa de uma afabilidade apenas aparente a uma mesa de restaurante que decorre a cena que marca todo o filme e que acaba por justificar todo este extenso poste.


Procurando dar uma imagem mais viva à expansão do comunismo pelo Mundo que estava a descrever a McGillis, Patinkin pega numa daquelas garrafas típicas de ketchup da Heinz e, abrindo-a, começa a despejá-la a ritmo compassado em cima da toalha da mesa do restaurante: flof, flof, flof… A cada sacudidela, era mais um país que caía nas garras do comunismo… É verdade que as figuras de época sobre aquele mesmo tema estão repletas de imagens – com manchas vermelhas que alastram, polvos vermelhos que estendem os seus tentáculos, etc. – que transmitem uma ideia semelhante…

Mas nenhuma delas se equipara, em espírito norte-americano de interpretação do resto do Mundo, ao simbolismo da explicação estratégica feita através daquelas sacudidelas de ketchup para cima de uma toalha de restaurante. Em primeiro lugar, por se tratar de ketchup, que é um dos condimentos típicos, senão mesmo o mais típico, da alimentação norte-americana... Depois, pelo desperdício que aquele gesto representava na altura (o filme passa-se em 1951) em que os Estados Unidos eram um oásis de abundância num Mundo que uma boa parte ainda se estava a recompor da devastação causada pela Segunda Guerra Mundial...

23 dezembro 2008

FOTOGRAFIAS EXTRATERRESTRES – 2

No meu outro poste com este mesmo título, ao nomear os corpos celestes do Sistema Solar dos quais existem fotografias de proximidade esqueci-me de mencionar Titã. Titã é um satélite do planeta Saturno, pouco iluminado em relação aos outros corpos fotografados (Lua, Marte e Vénus) porque muito mais afastado do Sol, e que além disso, como Vénus, está envolvido por uma densa névoa de cor alaranjada que se pode ver acima.
A conjugação daqueles dois factores fazem com que a fotografia de proximidade que foi tirada pela Sonda Huyguens em Janeiro de 2005 não nos forneça propriamente uma das melhores panorâmicas do que é aquele mundo extraterrestre… A fotografia transmite uma visão esbatida da paisagem que pode ser desconfortável para os mais imaginativos que ainda se lembrem como era o planeta onde a nave inicialmente invadida pelo Alien se tinha despenhado…

22 dezembro 2008

AS BIOGRAFIAS DOS GESTORES DE SUCESSO

Para mim, a moda das biografias dos gestores de sucesso terá começado com o sucesso da de Lee Iacocca, que escreveu uma história em meados da década de 80 (1984/85) em que se assumia como o salvador da Chrysler. Ainda me lembro como tentaram fazer passar a sua Autobiografia (acima) como uma espécie do omnipresente Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas de Dale Carnegie, mas destinado a quadros mais sofisticados…
Uma treta! O livro foi um êxito editorial, mas o conteúdo era uma treta. A popularidade de Iacocca como gestor da Chrysler foi completamente ultrapassada pela popularidade de Iacocca como autor da história de como gerira a Chrysler… Bom, o que agora interessa é que o exemplo de imodéstia de Iacocca fez escola, e o seu livro foi o precursor de um certo estilo editorial em que o autobiografado faz um elogio a si mesmo com a ajuda de alguém que o escreve.
A categoria do contratado para escrever a autobiografia tornou-se também uma medida do sucesso e do prestígio do gestor, mas com as consequências inerentes. Assim, por exemplo, o prestígio adquirido em 1997 por António Champalimaud (acima), ao contratar José Freire Antunes para escrever a sua, tornou-se num desprestígio equivalente daquele historiador, ao prestar-se a emprestar o seu nome a um livro que não passava de um interminável panegírico…
Mas o que até agora, que se soubesse, ainda era inédito na edição desses livros de gestores de sucesso, era fazê-lo precisamente no momento em que, perante a sociedade, o autobiografado acaba de se despencar da sua trajectória de sucesso que normalmente esses livros descrevem. Aconteceu com João Rendeiro, e essa sua fulgurante autobiografia, chama-se João Rendeiro – Testemunho de um banqueiro. A história de quem venceu nos mercados.

A César o que é de César: O autor original deste último paradoxo tão caricato é este.

OS MONÓCULOS OFERECIDOS A DÍEZ-ALEGRIA

Reza a história da Transição espanhola que, depois do 25 de Abril de 1974, houve um período em que se tornou uma espécie de desporto enviar monóculos àquele que se encontrava à frente das Forças Armadas espanholas, o Chefe de Estado-Maior da Defesa espanhola, que era então o Tenente-General Manuel Díez-Alegria (abaixo). A alusão da brincadeira era óbvia: o monóculo era o adereço que tornava inconfundível o novo Presidente português depois do pronunciamento militar, o General António de Spínola. E os monóculos eram um convite, não muito velado nem subtil, a que Díez-Alegria o copiasse, e terminasse com o franquismo por meio de um golpe semelhante.
É mais do que provável que o Tenente-General nunca tivesse tido essa intenção mas, segundo rezam as já referidas crónicas da Transição espanhola, acabou mesmo assim destituído em 1975, em consequência de um convite aceite para uma inusitada visita à Roménia que afinal incluía um (imprevisto) encontro com o secretário-geral do PCE, Santiago Carrilho…O que este episódio tem de mais exótico, quando contado a quem conheceu o período do PREC, mas observado do lado português, é a ingenuidade que parecia existir entre as elites espanholas que deviam estar muito pouco esclarecidas quanto aos poderes reais de António de Spínola e à realidade da Revolução que estava a acontecer do outro lado da fronteira (abaixo)...
É que interpretando o desejo de quem enviava monóculos ao general parecia desejar que ele se apropriasse do poder, roubando-o a um regime franquista que se apresentava já então como irremediavelmente agonizante, entregue a cortesãos, mas em que tudo aquilo se passasse com uns blindados nas ruas (que remédio!), mas como uma suavidade fluida nas negociações entre as altas patentes. Ora em Portugal não era nada isso que se passava. Pío Cabanillas (abaixo), que era então o Ministro da Informação e Turismo, pertencia à ala menos conservadora do franquismo e era um dos poucos espanhóis bem informados sobre o trajecto revolucionário que estava a acontecer em Portugal, organizou uma sessão de cinema privada para os seus colegas de Governo.
Perante as imagens das manifestações populares nas ruas de Lisboa, os murais vermelhos e os discursos cada vez mais revolucionários, tudo o que Pío Cabanillas conseguiu ouvir aos seus pares foi um conjunto de fanfarronadas sobre a capacidade que duas companhias da Guardia Civil teriam para pôr tudo aquilo na ordem… Cabanillas demitiu-se em Outubro de 1974. Spínola já se havia demitido no mês anterior e, por essa altura, Díez-Alegria já deixara de receber monóculos: em contrapartida, aparecia nas forças armadas espanholas uma organização de oficiais pró-democracia denominada UMD… E os antigos colegas de Cabanillas - cortesãos de um regime moribundo - não tardaram a ter que ser substituídos por gente válida…

21 dezembro 2008

ALGUNS NÚMEROS POR DETRÁS DO MARCELISMO

O gráfico abaixo mostra a evolução no número de registos de licenças de televisão desde o início das emissões até 1969, ano que costuma ser considerado o apogeu da época depois baptizada por primavera marcelista em Portugal. Ele foi retirado do livro Vamos Falar de Televisão da autoria de Lopes da Silva e Vasco Hogan Teves, que foi publicado em 1971 na colecção Livros RTP.
A progressão exponencial do crescimento, não nos pode fazer esquecer que, com cerca de 350.000 licenças emitidas em 1969 e mesmo contando com as televisões clandestinas e ilegais o número de portugueses que acompanhariam regularmente as emissões de televisão não deveria ultrapassar muito os dois milhões, ou seja, sensivelmente um pouco menos do que 25% da população continental da altura.
O marcelismo, pelo menos nos seus aspectos comunicacionais (lembremo-nos das Conversas em Família), ter-se-á assim desenrolado entre um círculo muito restrito de portugueses e, pela mesma lógica, não seria de todo surpreendente a famosa manchete que o Expresso escolheu para a sua primeira edição de 6 de Janeiro de 1973 (acima): a de que, naquela altura, 63% dos portugueses nunca tinham votado.

20 dezembro 2008

A MAIS IMPRESSIONANTE FOTOGRAFIA DE GUERRA

É defensável que a mais famosa fotografia de guerra seja a de baixo, tirada pelo famoso fotógrafo húngaro Robert Capa em 1936 perto de Córdoba, ainda nos primeiros meses da Guerra Civil de Espanha. Actualmente, ainda se debate qual seria a identidade do miliciano (do lado republicano) que nela aparece – o Público de hoje dedica-se precisamente a esse assunto – no preciso momento em que é atingido, sem se saber se já estaremos a ver um morto ou se se trata ainda de um moribundo…
Todavia, para além da fama, ignoro quem terá sido o autor daquela que considero a mais impressionante fotografia de guerra de entre as milhares que vi até hoje. Foi tirada durante um conflito que considerado ainda mais secundário do que o que forneceu a foto anterior: a Guerra Russo-Polaca de 1920. E mais do que uma fotografia de guerra propriamente dita, trata-se de uma fotografia dos extremos que a bestialidade humana pode atingir durante um desses conflitos. A vítima é um oficial polaco que fora capturado pelos bolcheviques que compõem a assistência. Além de o despirem, de o dependurarem de cabeça para baixo, de o empalarem, é difícil imaginar alguma sevícia que não lhe tenham feito mais… Nem se percebe se o decapitaram ou não... Como na outra fotografia, a de Capa, também nesta se levanta involuntariamente a questão se o fotografado já estará morto ou é ainda um moribundo e todos os nossos instintos desejam que o sofrimento tenha sido mínimo…

19 dezembro 2008

FOTOGRAFIAS EXTRATERRESTRES

O número de fotografias extraterrestres de proximidade é muito limitado, tão limitado quanto as capacidades tecnológicas da Humanidade em enviar sondas em missões bem sucedidas para outros corpos do nosso sistema solar.
O primeiro sortido dessas fotografias extraterrestres data de Julho de 1969, da missão tripulada norte-americana Apollo 11 e tem por objecto a Lua (acima). Muitas outras fotografias do mesmo tipo se seguiram nas missões seguintes, até à conclusão do programa Apollo em 1972.
O segundo sortido de fotografias daquele mesmo género foram tiradas em Marte em 1976 a partir das Sondas gémeas norte-americanas Viking 1 e 2 (acima). Contudo, em Marte, só passados mais de 20 anos (1997) é que se reataram outras missões de características semelhantes.
Todavia, a mais bizarra fotografia extraterrestre de proximidade é esta de cima tirada em Vénus em 1982 pela Sonda soviética Venera 13. A fotografia é única e não é grande coisa, mas havia alguma pressa em a tirar, porque a sonda apenas resistiu 2 horas aos 456º Célsius e às 89 atmosferas de pressão da superfície…

18 dezembro 2008

OS PÁRA-QUEDISTAS DO DIA D

A ocasião é a das horas tensas que antecedem o dia do grande desembarque da Normandia durante a Segunda Guerra Mundial (6 de Junho de 1944) e a fotografia abaixo é uma das mais conhecidas desse período, com o Comandante Aliado Supremo, o General Dwight D. Eisenhower, a dirigir-se a soldados pára-quedistas (maçaricos) da 101ª Divisão Aerotransportada. Os responsáveis pela propaganda adicionaram à foto uma legenda daquilo que Eisenhower hipoteticamente lhes estaria a pedir: – Full victory, nothing else*
O mesmo soundbite teria tido um impacto diferente se tivesse sido usada esta outra fotografia, tirada precisamente na mesma altura mas de um ângulo diferente, onde Eisenhower aparece muito mais genuíno a conversar – e com problemas aparentes de comunicação… – com as suas tropas. O peso da corte que o acompanhava é muito mais visível nos uniformes atrás de si e o peso das responsabilidades do que estava para vir talvez fizesse com que muitos dos pára-quedistas quisessem viver aqueles momentos em recato e faltassem à fotografia…
É que para eles, aquela Full victory que alegadamente Eisenhower lhes pedia era muito mais do que uma frase de propaganda: era a diferença entre dois destinos totalmente distintos. Aerotransportados e largados nas regiões imediatamente adjacentes às costas da Normandia, o destino mais benigno dos elementos das unidades pára-quedistas no caso de ocorrer um fracasso do desembarque e de haver uma ordem de retirada era a sua captura pelos alemães… Mas também estou convicto que nem todos pensassem o seu destino com essa profundidade.
Porque a minha fotografia dos pára-quedistas do Dia D é esta de cima, onde dentro de um avião de transporte ou de um planador preparado para partir ou mesmo já a caminho do objectivo, se vê um soldado com cara de puto com a cara mal mascarrada – as operações iam decorrer de noite, por isso os pára-quedistas haviam recebido produtos para pintar a cara – e onde o olhar de apreensão se mistura com o de orgulho por ele ser o operador do que parece ser uma bazooka que segura diante dele.

* Vitória total, nada mais

17 dezembro 2008

ÀS MEIAS LAJES…

Há dias assim, em que toda a família acabou por ficar de molho em casa, a contas com um vírus da gripe, e em que o melhor a fazer é esperar que o dia se escoe às meias lajes, entre a tosse, os espirros, os arrepios de frio e as dores de cabeça…

16 dezembro 2008

TV NOSTALGIA – 34

Hoje, ao deparar-me com uma coisa completamente pífia que está a passar na RTP 1 e a que tiveram a ousadia de baptizar de Natal dos Hospitais como se o Natal dos Hospitais, o genuíno, o original, pudesse ser outra coisa senão uma roda de estrelas que parava o país… É um dia excelente para me fazer eco das saudades dos Natais dos Hospitais de antanho, quando a RTP era única e o auditório vibrava com o desfile de todas aquelas estrelas – e ai de quem se atrevesse em não comparecer…

Em representação das dezenas daqueles habitués que se sucediam no palco, ano após ano, e apresentavam quase sempre o mesmo número (e era mesmo aquele mesmo número que as pessoas queriam!...), insiro aqui dois em representação de duas gerações diferentes: acima é Max, mais a sua Mula da Cooperativa, ainda da era do preto e branco, e abaixo temos o Coro de Santo Amaro de Oeiras, mais o Maestro César Batalha, e o A Todos um Bom Natal, já da época da televisão a cores.

A única coisa que parece se manter omnipresente desde o princípio é a Philips, que começou por instalar generosamente as televisões nos hospitais para a transmissão do programa, depois deixava-as lá ficar generosamente até ao dia de reis, depois sorteava generosamente algumas para ficarem definitivamente instaladas, até tudo recomeçar em 1980 quando apareceram as televisões a cores… Hoje, confesso, não vi o que generosamente estavam lá a fazer…

OS ESTADOS PRINCIPESCOS DA ÍNDIA – 7

Ficou para último o caso do Estado Principesco de Caxemira (acima, a roxo e grená), que, nos casos dos 500+ Estados do Império das Índias, era o único deles em que, contrariando a tendência histórica quase milenar da conquista do subcontinente por uma casta guerreira muçulmana, devido a razões que seria fastidioso aqui detalhar, existia um monarca de religião hindu a governar uma região onde havia uma maioria da população (77,3%) de confissão muçulmana. Era um estado relativamente extenso com 222.000 km², mas relativamente pouco povoado, com um pouco mais de 4 milhões de habitantes.

Medido pela importância das salvas de canhão, o soberano de Caxemira tinha direito a 19, embora, quando se considerava que ele também era monarca de Jammu, tivesse direito às 21 da tabela máxima! Explique-se um pouco mais esta classificação artilheira, já aqui tanto falada: ia desde um máximo de 101 salvas, apenas conferido ao Rei Imperador (o monarca britânico) enquanto o máximo para os príncipes locais era de 21, depois a hierarquia estabelecia-se em números ímpares: 19, 17, 15, 13, 11, 9, até um mínimo de 3… Contudo o mínimo socialmente significativo era a categoria de 9 salvas.
Falando de coisas mais sérias, a Liga Muçulmana sempre considerou que o Estado de Caxemira seria uma das regiões constituintes indispensáveis do futuro país para os muçulmanos da Índia que ambicionavam. O nome desse país fora inventado apenas nos inícios dos anos 1930 e era formado pelas letras iniciais do Punjabe, da Afgânia (que era outra designação para a província conhecida normalmente por NWFP: Província da Fronteira Noroeste), de Caxemira (Kashmir em inglês), do Sindh e as finais de BalochisTÃO. Em inglês o jogo de letras resultava P-A-K-S-TAN: Paquistão.

Contudo, do ponto de vista formal, o destino de Caxemira quando da Independência e da Partição dependeria não das ambições dos líderes da Liga Muçulmana (ou do Partido do Congresso) mas da decisão do Maharaja Hari Singh (abaixo). Como acontecia em Jodhpur, Caxemira localizava-se numa zona que seria a fronteira entre a Índia e o Paquistão: podia optar. Como acontecia com Travancore, situava-se num dos extremos do subcontinente com a hipótese de se tornar independente deles dois. E tal qual se passava em Hyderabad, tinha dimensão suficiente para evadir às pressões a que o sujeitassem.
A 15 de Agosto de 1947 Hari Singh ainda não se havia decidido. E apesar de não ser o único a não o ter feito, no fundo acabava por ser o único Estado Principesco cuja evolução futura era, genuinamente, uma incógnita. É preciso perceber que a questão de Caxemira ainda hoje não se resolveu e, por isso, a narrativa dos acontecimentos que se sucederam têm uma forma distinta de ser contada conforme a nacionalidade do narrador: indiana ou paquistanesa. Em Outubro de 1947, perante o impasse (e mais um Standstill Agreement assinado entre as partes), o Paquistão ensaiou uma manobra para o contornar

Na perspectiva paquistanesa, depois de 15 de Agosto, a comunidade muçulmana de Caxemira estava a ser perseguida e expulsa do território e esse facto serviu de pretexto para que alguns chefes proclamassem a formação de um governo no exílio de uma Caxemira Livre (Azad Kashmir – bandeira abaixo). Para expandir a autoridade desse governo no terreno o Paquistão veio a servir-se de voluntários (mujahideens) pashtunes da província paquistanesa vizinha do Afeganistão (NWFP). E à medida que essas forças de voluntários progrediam no terreno a tensão subia cada vez mais.
Subia porque as próprias forças de defesa de Caxemira se mostravam ineficazes para conter aquela invasão; algumas desertaram até para o lado dos invasores; também subia porque os invadidos rapidamente descobriram e publicitaram que o apoio logístico dos voluntários estava a ser fornecido pelos militares paquistaneses; subia ainda porque o comportamento dos libertadores nas regiões libertadas deixava muito a desejar; subia finalmente porque, naquelas circunstâncias o Maharaja viu-se compelido a pedir auxílio ao único país que estava em condições de o ajudar: a Índia.

A intervenção indiana teve um preço: a assinatura do Acto de Adesão à Índia por parte de Hari Singh em 27 de Outubro de 1947. O conflito depressa perdeu aquela faceta inicial de faz-de-conta e caminhou para a uma fase do embate directo e assumido entre os exércitos indiano e paquistanês (abaixo). Entre Outubro de 1947 e 31 de Dezembro de 1948 a frente de batalha teve diversas configurações (a evolução pode ser acompanhada aqui). A que existia no último dia de 1948 passou a ser a fronteira na prática entre os dois países e a partir daí veio a ser designada pela sigla LOC (Line of Control).
O antigo Estado de Jammu e Caxemira apresenta-se desde então dividido entre uma região oriental sobre controlo indiano (compreendendo cerca de 40% do território e de 75% da população original, a laranja no mapa abaixo) e outra ocidental sobre controlo paquistanês (com a parte restante, a verde). As manobras diplomáticas e militares desenvolvidas por um lado e outro durante os últimos 60 anos transcendem o âmbito desta série, que se pretende circunscrever às vicissitudes associadas às Adesões dos Estados Principescos durante o período inicial da existência de ambos os países.

Mas, para além dos argumentos de ordem estratégica que costumam ser invocados para justificar o valor que os dois lados atribuem ao controle de Caxemira, há que reconhecer como é difícil atingir-se um consenso: para os paquistaneses, a pertença de Caxemira ao seu país é uma evidência, exemplificada no nome que o país adoptou; para a facção moderada dos indianos, a existência de um Estado maioritariamente muçulmano como Caxemira é a demonstração que a Partição foi um erro e que a ideia de Índia era muito mais vasta do que a de um Estado fundamentalmente para os hindus…

(Continua)