Pessoa amiga e atenta chamou-me a atenção para um artigo publicado no Washington Post de hoje, debruçando-se sobre o agudizar das tensões étnicas no Paquistão, dando um particular relevo à forma como a crise actual, desencadeada pelo assassinato da dirigente política Benazir Bhutto no passado dia 27 de Dezembro de 2007 em Rawalpindi está a ser encarado. O que o referido artigo possui de novidade é uma nova perspectiva que, em vez de se concentrar no radicalismo político religioso, destacar o radicalismo político nacionalista, entre uma das várias nacionalidades (todas muçulmanas) que compõem o Paquistão.
O seu objecto é o de dar uma visão da actual situação política vista da perspectiva dos militantes (porventura alguns dos mais radicais…) do PPP, tradicionalmente de nacionalidade sindi, precisamente a mesma, e onde se contam os adeptos mais incondicionais, de Benazir Bhutto. E um dos aspectos a que ali foi dado maior destaque foi ao do separatismo sindi, concretizado também na hostilidade para com as forças armadas paquistanesas, que são consideradas como dominadas pela nação rival dos punjabis. É algo de esperar entre as correntes radicais, mas será preocupante se essa opinião já estiver muito disseminada…
O Paquistão tem um precedente de secessão: o do Bangladesh, antigo Paquistão Oriental, que se separou em Dezembro de 1971. Entre as causas para as razões de queixa dos bengalis muçulmanos que levaram à criação de um país separado contava-se a sua sub-representação entre os altos escalões da administração. No exército, em 1955, não havia nenhum bengali entre os 3 Tenentes-Generais, nenhum entre os 20 Majores-Generais, havia apenas 1 entre os 35 Brigadeiros, 1 entre os 50 Coronéis, 2 entre os 200 Tenente-Coronéis e 10 entre os 600 Majores. Eram apenas 7 entre os 600 oficiais da Marinha e 40 entre os 700 da Força Aérea.
No entanto, os bengalis representaram, até 1971, um pouco mais de metade de toda a população paquistanesa… Por causa disso, na guerra de libertação que acabou por conduzir à independência do Bangladesh de 1971, nem chegou a haver uma verdadeira guerra civil entre facções do exército paquistanês. As unidades que deveriam defender o Paquistão Oriental da invasão indiana foram sempre percebidas pela população local como se se tratasse de um verdadeiro exército de ocupação… E, até agora, supunha-se que o exército que sobreviveu a essa derrota pareceu ter incorporado e ter estado atento a essa lição dos equilíbrios regionais…
Logo depois, com Ali Bhutto (1973 – o pai de Benazir), estabeleceu-se um regime de quotas de admissão nas diversas componentes da administração pública que estabelecia que 50% dos admitidos e/ou promovidos deveriam vir do Punjab e da capital, Islamabad, 11,5% da Província da Fronteira do Noroeste (NWFP), 11,4% da Província do Sind rural, 7,6% do Sind urbano (refere-se à cidade de Karachi, onde há uma maioria de mohajirs*), 4,0% às áreas do Norte conhecidas pela designação de FATA*, 3,5% ao Baluchistão, 2,0% a Caxemira (a fracção sob controlo paquistanês) e 10,0% exclusivamente a critérios de mérito. Os acontecimentos de 1971 serviram, por muitos anos, de alerta para que entre as cúpulas do Estado paquistanês houvesse uma aparência de equilíbrio entre as diversas nacionalidades que o compõem, não se tornassem eles a repetir. Dois dos casos onde esse equilíbrio era mais acautelado eram as cúpulas do sistema judicial e das forças armadas. Recentemente, devido às circunstâncias, ficou a sensação que Pervez Musharraf parece ter rebentado com esse equilíbrio ao alterar a composição do Supremo Tribunal. Citações no artigo do Washington Post dão a sensação que a percepção desse equilíbrio também está a desaparecer das forças armadas…
É que no passado, na Jugoslávia, também os sérvios sempre tinham sido sempre (como acontece com os punjabis no Paquistão), por efeito da própria demografia, a nacionalidade predominante nas forças armadas federais… Mas as estruturas federais jugoslavas só começaram a falhar quando essas forças armadas acabaram por perder esse seu estatuto de imparcialidade na disputa política, ao terem de implementar pela força (na fotografia abaixo, um blindado destruindo um bloqueio rodoviário na Eslovénia em Junho de 1991), a coesão que deveria ser tacitamente aceite de forma pacífica pelos cidadãos da federação.
Não é de excluir que o artigo do Washington Post poderá estar a exorbitar o facciosismo com que as forças armadas podem estar a ser encaradas actualmente pelos vários agentes políticos paquistaneses, e também é verdade que as teias que dominam os centros de poder no Paquistão são complexas demais para se poderem explicar apenas pela lógica das fidelidades nacionais. Também os juízes afastados por Musharraf do Supremo Tribunal são predominantemente punjabis, assim como o são os quadros principais da Liga Muçulmana Paquistanesa (N) de Nawaz Sharif, três facções insuspeitas de simpatias recíprocas entre si…
Mas é assunto a merecer atenção cuidada. Em 1991, como em 2008, se o exército federal (ou nacional) deixar de ser assim considerado então torna-se muito mau sintoma para a saúde da coesão do Estado…
*Mohajirs – imigrantes ou descendentes de imigrantes da Índia
*FATA – Federally Administered Tribal Areas
O Paquistão tem um precedente de secessão: o do Bangladesh, antigo Paquistão Oriental, que se separou em Dezembro de 1971. Entre as causas para as razões de queixa dos bengalis muçulmanos que levaram à criação de um país separado contava-se a sua sub-representação entre os altos escalões da administração. No exército, em 1955, não havia nenhum bengali entre os 3 Tenentes-Generais, nenhum entre os 20 Majores-Generais, havia apenas 1 entre os 35 Brigadeiros, 1 entre os 50 Coronéis, 2 entre os 200 Tenente-Coronéis e 10 entre os 600 Majores. Eram apenas 7 entre os 600 oficiais da Marinha e 40 entre os 700 da Força Aérea.
No entanto, os bengalis representaram, até 1971, um pouco mais de metade de toda a população paquistanesa… Por causa disso, na guerra de libertação que acabou por conduzir à independência do Bangladesh de 1971, nem chegou a haver uma verdadeira guerra civil entre facções do exército paquistanês. As unidades que deveriam defender o Paquistão Oriental da invasão indiana foram sempre percebidas pela população local como se se tratasse de um verdadeiro exército de ocupação… E, até agora, supunha-se que o exército que sobreviveu a essa derrota pareceu ter incorporado e ter estado atento a essa lição dos equilíbrios regionais…
Logo depois, com Ali Bhutto (1973 – o pai de Benazir), estabeleceu-se um regime de quotas de admissão nas diversas componentes da administração pública que estabelecia que 50% dos admitidos e/ou promovidos deveriam vir do Punjab e da capital, Islamabad, 11,5% da Província da Fronteira do Noroeste (NWFP), 11,4% da Província do Sind rural, 7,6% do Sind urbano (refere-se à cidade de Karachi, onde há uma maioria de mohajirs*), 4,0% às áreas do Norte conhecidas pela designação de FATA*, 3,5% ao Baluchistão, 2,0% a Caxemira (a fracção sob controlo paquistanês) e 10,0% exclusivamente a critérios de mérito. Os acontecimentos de 1971 serviram, por muitos anos, de alerta para que entre as cúpulas do Estado paquistanês houvesse uma aparência de equilíbrio entre as diversas nacionalidades que o compõem, não se tornassem eles a repetir. Dois dos casos onde esse equilíbrio era mais acautelado eram as cúpulas do sistema judicial e das forças armadas. Recentemente, devido às circunstâncias, ficou a sensação que Pervez Musharraf parece ter rebentado com esse equilíbrio ao alterar a composição do Supremo Tribunal. Citações no artigo do Washington Post dão a sensação que a percepção desse equilíbrio também está a desaparecer das forças armadas…
É que no passado, na Jugoslávia, também os sérvios sempre tinham sido sempre (como acontece com os punjabis no Paquistão), por efeito da própria demografia, a nacionalidade predominante nas forças armadas federais… Mas as estruturas federais jugoslavas só começaram a falhar quando essas forças armadas acabaram por perder esse seu estatuto de imparcialidade na disputa política, ao terem de implementar pela força (na fotografia abaixo, um blindado destruindo um bloqueio rodoviário na Eslovénia em Junho de 1991), a coesão que deveria ser tacitamente aceite de forma pacífica pelos cidadãos da federação.
Não é de excluir que o artigo do Washington Post poderá estar a exorbitar o facciosismo com que as forças armadas podem estar a ser encaradas actualmente pelos vários agentes políticos paquistaneses, e também é verdade que as teias que dominam os centros de poder no Paquistão são complexas demais para se poderem explicar apenas pela lógica das fidelidades nacionais. Também os juízes afastados por Musharraf do Supremo Tribunal são predominantemente punjabis, assim como o são os quadros principais da Liga Muçulmana Paquistanesa (N) de Nawaz Sharif, três facções insuspeitas de simpatias recíprocas entre si…
Mas é assunto a merecer atenção cuidada. Em 1991, como em 2008, se o exército federal (ou nacional) deixar de ser assim considerado então torna-se muito mau sintoma para a saúde da coesão do Estado…
*Mohajirs – imigrantes ou descendentes de imigrantes da Índia
*FATA – Federally Administered Tribal Areas
Mais um post de grande interesse. Muito importante para se poder acompanhar (e compreender) a evolução da complexa situação paquistanesa. Complexa e perigosa...
ResponderEliminarAqui como noutras áreas do planeta, as sequelas da colonização continuam a determinar a vida dos povos.
ResponderEliminarÉ, ainda e sempre, o resultado de um prévio e hábil esquartejamento, a régua e esquadro, de regiões, numa geometria atentatória da idiossincrasia e da liberdade dos povos autóctones, a quem, em grande parte, continua destinado o papel de condenados da história.
JRD, note-se que no caso específico do Paquistão, houve uma parcela significativa das lideranças dos povos autóctones que fizeram mesmo questão de ser "esquartejados" em 1947...
ResponderEliminarNão sendo um grande conhecedor da matéria,apesar do que já aqui aprendi, presumo que se refere às migrações entre a India e o Paquistão.
ResponderEliminarAs lideranças actuam de acordo com as suas conveniências de conjuntura e muitas vezes constituem-se, ainda que a posteriori, aliadas dos antigos senhores ou de outros.
O Paquistão pode não ter sido um caso paradigmático, mas, de um modo geral, creio que a minha posição é consequente.
Cumpts.
JRD
ResponderEliminarEstava a referir-me às negociações que levaram à independência da Índia e do Paquistão como dois países distintos, aquilo que ficou conhecido como a Partição da Índia (1947).
O assunto está disponível na Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Partition_of_India), muito embora aquele artigo se refira mais às suas consequências do que à sua génese.
Precisamente sobre isso, modestamente, produzi já há algum tempo um poste (http://herdeirodeaecio.blogspot.com/2007/02/um-bom-romance-uma-bela-histria.html) comentando alguma bibliografia que existe sobre a questão, que talvez lhe possa interessar.