30 abril 2021

A AUTO-APENDICECTOMIA DO DOUTOR ROGOZOV

30 de Abril de 1961. Na Antártida, na base soviética Novolazarevskaya instalara-se desde Janeiro daquele ano (quando era Verão) uma equipa de treze especialistas que iriam desenvolver, isolados do exterior, um prolongado programa de pesquisas no quadro de 6ª Expedição Expedição Antárctica Soviética. Um deles era o médico da equipa, um médico jovem de 27 anos chamado Leonid Rogozov. E há 60 anos, deu-se a inconveniência de ter sido precisamente na pessoa do médico da expedição que se deu um ataque de apendicite. De acordo com a história que se conta do incidente, Rogozov não terá tido grandes dificuldades em se auto-diagnosticar. O problema era o tratamento... A evacuação estava fora de questão: a base tinha uma localização tão remota e os meios disponíveis eram tão escassos que não podiam assegurar que não se desenvolvesse uma peritonite fatal no paciente antes de ele chegar a um local onde pudesse ser operado. Portanto, a única solução que restava - realizada com a devida autorização de Moscovo, que o respeito pela autoridade é o estado mais elevado do socialismo soviético! - era que Leonid Rogozov realizasse a cirurgia em si próprio, auxiliado pelos seus camaradas de expedição. O cirurgião realizou uma anestesia local (obviamente!) em si próprio e, enquanto um dos elementos servia de instrumentista, um outro segurava num espelho para que o cirurgião visse o campo operatório, delineado na sua própria barriga. Apesar das vicissitudes - havia um procedimento de emergência para reanimar o cirurgião no caso de ele desfalecer em consequência do efeito da anestesia! - a cirurgia lá se concluiu, sutura e tudo, depois de 1H45 de duração. O pós operatório durou cerca de uma semana e passadas outras duas semanas Rogozov voltara às suas funções (na fotografia abaixo vêmo-lo, do lado direito, a cumprimentar um pinguim). O episódio, que podia ter-se saldado por um fiasco, tornou-se afinal uma peça de propaganda russa/soviética. Contudo, Rogozov só veio a contactar directamente com a popularidade de que gozava quando terminou a sua missão, em 1962.

29 abril 2021

A CONTÍNUA QUESTÃO ACADÉMICA

29 de Abril de 1921... e de 1931. Quem consultar as duas edições desse dia do Diário de Lisboa nem dá por estarem separados por dez anos. A primeira página da edição de 1921 dedica-se à «Greve Académica»; a última página da edição de 1931 ao «Conflito Académico». Cada um destes episódios conterá as suas especificidades - o que os desencadeou, quem participou, como vieram a ser solucionados - mas ambos fazem parte de uma longa lista de conflitos entre estudantes e as autoridades do momento. Parecem fazer parte de uma questão geracional, mais profunda do que a política e os regimes, já que nos exemplos acima e no primeiro caso vigorava a (primeira) República, enquanto no segundo estava-se na Ditadura que precederia o Estado Novo. São episódios que parecem ser muito importantes no momento e depois permanecem vivos, mas apenas na memória de quem os viveu. Hoje já não há ninguém vivo para recordar estas duas crises académicas e o mesmo acontecerá inexoravelmente com as outras de que ainda ouvimos falar.

28 abril 2021

«RAQUEL ESPARRELA»

Quase todos os dias Joana Marques entretêm-nos exibindo o ridículo de alguém que se leva a sério e não devia. O bónus do episódio de hoje, com Raquel Varela, é que além da própria Raquel se levar a sério (...e não devia), há mais quem a leve a sério, no campo académico e no campo do entretenimento mediático. Levam-na a sério, ela leva-se a sério e, como o mostra à saciedade Joana Marques, é tão ridículo que não deviam. A crónica começa por um russo que a Raquel Varela havia ido «ver» à Gulbenkian mas a que troca o nome e que era «pintor», mas que afinal era pianista... mas o melhor mesmo é ouvir o resto!

O INÍCIO DO TURISMO ESPACIAL

28 de Abril de 2001. Pela primeira vez, a missão Soyuz TM 32 que descola do cosmódromo de Baikonur inclui na sua tripulação um membro que nela participa por razões lúdicas, um verdadeiro turista espacial. Chamava-se Dennis Tito, tinha então 60 anos, era um multimilionário norte-americano que pagara vinte milhões de dólares à agência espacial russa (Roskosmos) pelo privilégio de participar naquela missão que, para ele, duraria uma semana no espaço, cinco dias dos quais na Estação Espacial Internacional (ISS). E, considerado o historial da competição espacial entre o socialismo soviético e o capitalismo americano, era impossível não registar a ironia de que este passo pioneiro do capitalismo espacial era protagonizado pelos russos, herdeiros dos soviéticos, e não pelos norte-americanos. Dennis Tito tivera que comprar o bilhete na concorrência...

27 abril 2021

CESSAR FOGO NA OPERAÇÃO «VINHAS DA IRA»

27 de Abril de 1996. Terminava com a assinatura de um cessar-fogo mais uma incursão - a quarta desde 1978 - das tropas israelitas no Sul do Líbano. Como de costume, a iniciativa fora provocada por uma escalada de agressões e provocações de parte a parte entre os militares israelitas e as milícias xiitas do Hezbollah, com a conivência do exército sírio, também presente no Líbano. Outro exército ali presente são os capacetes azuis da ONU (UNIFIL), estacionados em posições de interposição para apartar os beligerantes, mas que são militarmente impotentes nestas circunstâncias (não dispõem de poder de fogo para intervir). A ofensiva israelita começara a 11 de Abril, a intenção proclamada dos israelitas era pressionar o governo libanês para que este pressionasse por sua vez o Hezbollah. Como era tradicional, os inimigos de Israel não resistiram encarniçadamente no terreno, mas ficaram à espera que as suas tropas cometessem erros que pudessem ser explorados mediaticamente, o que veio a acontecer em 18 de Abril com o denominado «massacre de Qana». Qana é uma aldeia no sul do Líbano onde se localizava um dos aquartelamentos da UNIFIL, aquartelamento esse que estava cheio de refugiados civis quando as tropas israelitas o bombardearam: morreram uma centena de civis libaneses e outra centena ficou ferida para além de quatro funcionários fijianos ao serviço da ONU. Com isso, os árabes haviam conseguido a sua «arma» mediática para o contra-ataque. Os funerais das vítimas (fotografia acima) foram realizados em conjunto e foram uma grande operação mediática, com os caixões todos cobertos por bandeiras nacionais e cartazes negros. Repare-se em três ao fundo da foto; o do centro está redigido em inglês (e não em arábico), para que pudesse ser lido pelas opiniões públicas ocidentais... Do ponto de vista estritamente militar, a operação «Vinhas da Ira» veio a revelar-se irrelevante. O cessar-fogo - que implicava, mais uma vez, a retirada dos israelitas do Líbano - entrou em vigor há precisamente 25 anos. Uma nota final, para o nome escolhido pelos israelitas para a operação, uma expressão empregue no Apocalipse de São João. Não deixava de ter uma certa ironia ver o Estado Judeu a ir recuperar uma expressão bíblica (mas do Novo Testamento! - cristã portanto) para baptizar uma operação militar sua. E no entanto, para a opinião pública americana a expressão é razoavelmente conhecida, mas noutro contexto, como o título de um romance de John Steinbeck de 1939 sobre a grande depressão, transposto para o cinema em 1940. Mas o assunto não parece ter sido explorado, nem os responsáveis israelitas questionados sobre a razão da escolha daquele nome.

26 abril 2021

REFLEXÕES PROVOCADAS POR UM MAPA MUNDO COM AS COMPETÊNCIAS DOS POVOS EM INGLÊS

A primeira nota é para chamar a atenção que os países que têm o inglês como língua coloquial - Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália - estão assinalados com uma cor azul neutra própria. Contudo e infelizmente, a cor escolhida não é suficientemente distinta da paleta de cores que servem para escalonar a competência dos restantes países, paleta essa que aparece abaixo do mapa. Para tornar a apreciação mais confusa, aqueles países para os quais não se possuem dados aparecem pintados precisamente dessa mesma cor supostamente neutra. Conclusão, se olharem para o canto superior esquerdo do mapa, aparece o Canadá ao lado da Gronelândia representados pela mesma cor, embora por razões completamente distintas: fala-se inglês correntemente no Canadá, e não existem dados para avaliar as competências em inglês dos habitantes da Gronelândia. Um outro aspecto que confunde o mapa é que há países que têm o inglês como idioma oficial, em que ele é empregue em circunstâncias oficiais muito precisas, como serão os casos da Índia, Nigéria ou África do Sul e que também aparecem avaliados no mapa acima. É que, nesses casos, o inglês não é uma língua estrangeira de comunicação, antes uma língua doméstica que sedimenta a coesão nacional. E há ainda outros países em que acontece precisamente esse mesmo fenómeno, como o Gana, a Tanzânia ou a Zâmbia e para esses não há dados. Mesmo feitas todas estas ressalvas, percebe-se que existe uma «mancha de competência» no idioma na Europa, especialmente no centro e norte do continente e... em Portugal. A comparação com o resto da Europa Latina é-nos favorável. É uma boa notícia e, por isso, não tem qualquer interesse jornalístico em Portugal (a notícia original é da revista The Economist). Quanto à panorâmica geral, as competências alcançadas por cada país dependem não apenas de uma vontade política em se internacionalizarem, como também da qualidade dos respectivos sistemas de ensino. Mas por detrás disso estará sempre e naturalmente, o carácter mais ou menos cosmopolita das sociedades. Só este último pode explicar, por exemplo, que um país como o Japão, aliado dos Estados Unidos desde 1945, tenha obtido nesta classificação uma classificação inferior à da Rússia e da China, que foram e continuam a ser rivais dos americanos desde essa mesma altura.

25 abril 2021

RECORDE-SE QUE TAMBÉM ERAM 89 OS PIDES QUE FUGIRAM DE ALCOENTRE...

Em dia de comemoração de Abril, e olhando para a primeira página da edição do dia do Correio da Manhã, convém recordar que, por coincidência, também foram 89 os Pides que fugiram de Alcoentre, num famoso episódio, também de Abril, de falta de vigilância revolucionária. Mudam-se os tempos e o teor das lutas, e agora é a PSP que se encarrega de travar «as orgias», que agora são sexuais e que outrora haviam sido reaccionárias. «Que se passa? Então isto não é uma ameaça?...»
Remate-se, em jeito de distinção, que a festa de 2021 era de «swing», e que aos Pides de 1974 não lhes foi permitido o «swing» - ao contrário do que aconteceu com tantos outros...

OS PRÍNCIPES BRITÂNICOS EM LISBOA

25 de Abril de 1931. O Diário de Lisboa reservava toda a sua primeira página para dar a notícia da chegada a Lisboa dos dois príncipes britânicos, Eduardo (futuro Eduardo VIII) e Jorge (futuro Jorge VI). Os dois regressavam à Europa no RMS Arlanza, vindos do Rio de Janeiro, depois de uma prolongada digressão a vários países da América do Sul que começara em Janeiro. O acolhimento foi encabeçado pelo chefe de governo, general Domingos Oliveira, acompanhado dos ministros e por uma data de outras «individualidades». Era indubitavelmente chique ter ido à cerimónia. Mas o desenvolvimento da notícia (duas páginas) só se consegue explicar pela riqueza dos detalhes que satisfaziam sobretudo a curiosidade dos leitores, numa época que precede o aparecimento da rádio e da televisão. Registe-se o pormenor da reprodução da mensagem manuscrita do príncipe de Gales: «My broher & I are delighted to visit Portugal, our old friend & ally & are very pleased with the welcome we have received. - Edward P. 25 April 1931». Depois de falar com os jornalistas os príncipes iam para o Estoril, jogar golfe. Como se percebe, nada havia para noticiar, era tudo muito simples, muito chão, quase infantil. Faltava lá o repórter do Correio da Manhã para lhe perguntar, com a brutalidade do jornalismo tablóide, se estava com saudades de Thelma Furness, a sua última namorada...

A APRESSADA EXECUÇÃO DA OPERAÇÃO «GERBOISE» VERDE


25 de Abril de 1961. O primeiro ensaio nuclear francês realizara-se na Argélia meridional, em pleno deserto do Sahara, a 13 de Fevereiro de 1960. Outros ensaios se seguiram, a que se deram o nome de operações «Gerboise» (jerboa, em português), um pequeno roedor nocturno do deserto, de patas compridas e grandes orelhas, assaz comum na fauna do local dos testes. Cada ensaio recebia um nome de código ligeiramente diferente, a operação «Gerboise» Azul fora o ensaio original (acima), a que se seguiram a «Gerboise» Branca e a «Gerboise» Vermelha (as outras cores da bandeira francesa), todas elas antes desta operação «Gerboise» Verde de há precisamente 60 anos. Contudo, esta última diferenciou-se de todas as anteriores pela circunstância de ter sido executada à pressa. Poucos dias antes, alguns generais franceses haviam realizado um pronunciamento militar em Argel em rebelião contra as decisões de Paris e da metrópole (veja-se abaixo a notícia da época). O momento era tenso. Sem uma garantia de controle e considerada a localização do centro de ensaios na própria Argélia semi-insurrecta, as autoridades francesas legítimas decidiram detonar preventivamente a próxima arma nuclear a ensaiar, acautelando a remota hipótese (catastrófica!) de que ela pudesse vir a cair sob o controle dos generais revoltados.
E foi assim, que em português designaríamos por às três pancadas, que a operação «Gerboise» Verde arrancou. Sabe-se hoje, por exemplo, que a pilha de combustível (plutónio) que era destinada a formar a massa crítica do engenho foi transportada na noite anterior ao ensaio num prosaico Citroën 2 CV por 50 km de pistas no deserto... Não surpreenderá o leitor saber que, com tanta preparação, o ensaio se revelou tecnicamente um fiasco: a potência do engenho, que os cálculos teóricos prévios estimavam alcançar entre as 6 e as 18 mil toneladas de TNT equivalente, ficou-se por um décimo da potência esperada. Mas o mais importante fora feito: como nessa época as armas nucleares francesas se fabricavam a um ritmo artesanal, desaparecera a hipótese dos generais de Argel se apropriarem de um desses engenhos. A edição de há 60 anos do Diário de Lisboa transmitia devidamente o recado tranquilizador que o general de Gaulle pretendia dar aos seus homólogos (abaixo), comprovando, em paralelo, um dos mais sólidos princípios do jornalismo de massas: nenhum rumor é para ser levado a sério até ele ser devidamente desmentido, como acontecia com aquela sugestão (absurda!) que os acontecimentos de Argel haviam influenciado o calendário dos ensaios nucleares... Eu creio que há certas circunstâncias em que, quem produz originalmente a informação, se sente inferiorizado se não a produzir mentindo desnecessária e descaradamente, insultando no processo a inteligência daqueles a quem a informação é dirigida. 

24 abril 2021

QUANDO SE ROUBA O QUE SE PODE...

Esta fotografia, de um autor que infelizmente não pude identificar, deve-nos servir de reflexão e ensinamento para que até os melhores dispositivos de segurança nem sempre conseguem obstar ao propósito de quem quer roubar. Tudo dependerá daquilo que o ladrão tenha oportunidade de roubar e, como se constata, pode revelar-se mais importante compreender as intenções de quem rouba do que confiar na robustez do dispositivo anti-roubo.

23 abril 2021

AINDA SE LEMBRAM QUANDO ABRARACOURCIX FOI CONVIDADO PARA SENADOR ROMANO?...

A COMUNICAÇÃO PRESIDENCIAL


Há precisamente 60 anos, a 23 de Abril de 1961, um Domingo, um General de Gaulle acossado por um pronunciamento militar que sublevara as forças armadas directamente engajadas no conflito argelino vem socorrer-se mais uma vez da rádio e, pela primeira vez em larga escala, da televisão. O histórico debate presidencial entre Kennedy e Nixon do outro lado do Atlântico tivera lugar apenas há oito meses e em atenção a este último meio de comunicação, um de Gaulle sempre actualizado aparecia propositadamente fardado com a sua desactualizada farda de general da Segunda Guerra Mundial. O discurso que proferiu corroborava aquilo que se via pelo ecrã:

Um poder insurrecto estabeleceu-se na Argélia através de um pronunciamento militar.
Os culpados da usurpação exploraram a paixão dos quadros de certas unidades militares, a adesão inflamada de uma parte da população de origem europeia assustada por temores e mitos, a impotência das autoridades submergidas pela conspiração militar.
Este poder tem uma imagem: um quarteto de generais reformados. Exprime também uma realidade: um grupo de oficiais facciosos, ambiciosos e fanáticos. O grupo e o quarteto mostram ter um desembaraço expedito mas limitado. Mas eles não vêem nem compreendem a Nação e o Mundo senão através da deformação do seu frenesim. O seu empreendimento só pode conduzir a um desastre nacional.
Porque o enorme esforço de recuperação da França, iniciado desde o fundo do abismo a 18 de Junho de 1940, prosseguido até que, apesar de tudo, a Vitória foi alcançada, a independência assegurada, a República restaurada; repegada desde há três anos, a fim de refazer o Estado, de manter a unidade nacional, de reconstituir o nosso poder, de reestabelecer a nossa posição no exterior, de prosseguir a nossa obra no Ultramar através de uma descolonização necessária, tudo isso se arrisca a ser em vão, mesmo em vésperas de ser alcançado, pela aventura odiosa e estúpida dos insurrectos na Argélia. Eis o Estado violentado, a Nação desafiada, o nosso poder minado, o nosso prestígio internacional rebaixado, o nosso lugar e o nosso papel em África comprometidos. E por quem? Veja-se lá, veja-se lá! Por homens cujo dever, honra e razão de existir deveria ser servir e obedecer.
Em nome da França ordeno que todos os meios, e realço todos os meios, sejam empregues em todo o lado para bloquear o caminho a esses homens, até eles serem dominados. Proíbo todo o francês, a começar por qualquer soldado, de obedecer às suas ordens. O argumento de que pode ser necessário aceitar o seu comando pontualmente sob o pretexto de obrigações operacionais ou administrativas não deverá enganar ninguém. Os únicos chefes, civis e militares, que têm o direito de assumir responsabilidades são aqueles que foram devidamente nomeados para o efeito e que, precisamente, os insurrectos estão a impedir de agir. O destino dos usurpadores não deverá ser mais do que aquele que lhes for destinado pelo rigor das leis.
Diante da infelicidade que paira sobre a Pátria e a ameaça que pesa sobre a República, tendo ouvido as opiniões oficiais do Conselho Constitucional, do Primeiro-Ministro, do Presidente do Senado e do Presidente da Assembleia Nacional, decidi accionar o artigo 16 da nossa Constituição. A partir de hoje, irei tomar, conforme as necessidades, as medidas que parecerem exigíveis pelas circunstâncias. Através delas, assumo-me, tanto hoje como amanhã, como guardião da legitimidade republicana que a nação me conferiu, que manterei aconteça o que acontecer, até ao fim do meu mandato ou até que me faltem, quer as forças, quer a vida, caso em que assegurarei que ela se mantenha depois de mim.
Francesas, franceses! Vejam para onde se arrisca a ir a França, em comparação com aquilo em que ela se estava a tornar.
Francesas, franceses! Ajudem-me.

O INÍCIO DA SEGUNDA GUERRA DA MAFIA

23 de Abril de 1981. Assassinato em Palermo de Stefano Bontate, o capo local da Mafia, no dia em que fazia 42 anos. Filho de um outro capo mafioso, Francesco Paolo Bontate, dito «Don Paolino Bontà», o assassinado representava uma segunda geração de mafiosos que, como a personagem de Michael Corleone em «O Padrinho», recebera uma educação de qualidade e se esmerava em adquirir respeitabilidade social. Casara-se na alta burguesia siciliana. Falava inglês e francês. Filiara-se numa loja maçónica. Jogava ténis e criava cavalos. Mas a esmagadora maioria dos seus rendimentos provinham de actividades clandestinas, como o contrabando de cigarros e de armas, actividades cada vez mais marginalizadas pelo contrabando de opiáceos e processamento de heroína. Esta era revendida para os mercados francês e norte-americano e dessa operação resultavam lucros tão elevados que a cobiça associada irá provocar a sua morte. O mandante do assassinato é Salvatore «Totò» Riina, tem 50 anos, pertence ao clã dos Corleone (o legítimo, não o do filme...) e,  não tem nada da sofisticação de Bontate, mas mostrar-se-á muito mais implacável do que ele. Este assassinato é apenas o primeiro de uma longa série deles, estimados na ordem das quatro centenas ao longo dos anos seguintes, aquilo que virá a ser conhecida como a Segunda Guerra da Mafia. Para além do ajuste de contas interno entre clãs, aqueles a que estamos habituados a ver nos filmes, esta guerra da Mafia a sério irá envolver também o assassinato de muitas figuras representando a autoridade do estado: deputados, generais das forças policiais, magistrados e juízes. Durante a primeira metade da década de 1980 a autoridade do estado italiano por aquelas paragens esteve muito por baixo. A RAI, por sua vez, resolveu rentabilizar esse sentimento de impotência da Itália perante o crime organizado, produzindo uma série televisiva de sucesso intitulada La Piovra. Abaixo, uma reconstituição do assassinato.

22 abril 2021

DE PAI PARA FILHO

22 de Abril de 1971. No Haiti, no dia seguinte à morte do pai, o presidente François «Papa Doc» Duvalier, o seu filho com quase 20 anos, Jean-Claude Duvalier (e que virá a ficar conhecido para a História com a alcunha - previsível - de «Baby Doc»), toma posse desse mesmo cargo presidencial, perante as críticas unânimes de uma comunidade internacional que se mostrava ainda pouco habituada a gestos tão despropositados de sucessão monárquica, pelo menos quando acontecendo em regimes que se reclamam dos princípios republicanos. Quase 50 anos contados dia a dia se passaram, e a 21 de Abril de 2021, aconteceu precisamente o mesmo no Chade, com a morte do presidente Idriss Déby, que foi substituído de imediato no cargo pelo seu filho Mahamat Déby Itno, um sucessor que, com os seus 37 anos, até faz figura de veterano quando em comparação com Baby Doc. A diferença é que agora já não há quem se indigne por aí além com estas sucessões dinásticas como acontecia outrora... até já as houve - e por duas vezes - em países socialistas avançados como a Coreia do Norte!

21 abril 2021

A MORTE DE JOHN MAYNARD KEYNES

21 de Abril de 1946. Morte súbita, de ataque cardíaco, do economista britânico John Maynard Keynes. Tinha 62 anos. Embora a fase mais conhecida e comentada do seu pensamento e obra abranja o período entre as guerras (1919-1939), Keynes mantivera-se extremamente activo tanto durante a Segunda Guerra Mundial como imediatamente após o seu término. Neste último caso, tentando encontrar as melhores soluções - empréstimos bonificados... - para resolver os problemas de pagamentos do seu país, que terminara o grande conflito (1939-45) financeiramente exangue. Mas foi ainda durante a Segunda Guerra Mundial, em Julho de 1944, que teve lugar a conferência de Bretton Woods (já por mim evocada aqui no Herdeiro de Aécio), onde teve lugar um dos desempenhos mais importantes - e menos conhecidos - de Maynard Keynes, nomeadamente na configuração antecipada do que viria a ser o sistema financeiro mundial do após Guerra (recomenda-se o livro abaixo). Keynes e os britânicos fizeram o que puderam para defender os seus interesses, mas a realidade é que as relações de poder faziam com que tivessem sido os americanos - Harry Dexter White e a sua equipa - a deter as cartas decisivas. O sistema de Bretton Woods, que o livro abaixo mostra a ser disputado palmo a palmo na sua configuração entre Keynes e White - veio a sobreviver 25 anos ao primeiro e 23 ao segundo: terminou, nos seus aspectos mais importantes, em 1971. E, como é costume os intelectuais ingleses fazerem nestas circunstâncias em que as suas opiniões foram historicamente vencidas, a sua avaliação é que o Mundo teria sido muito melhor se as suas teses (as de Keynes) tivessem sido adoptadas em vez das americanas. É o caso, por exemplo, da adopção de uma moeda supranacional (bancor) que fosse utilizada para regular os excessos (défices, mas também superavites) que as economias nacionais registassem nas suas contas externas. Como é natural, não se sabe se esse sistema teria funcionado melhor do que o sistema de câmbios fixos preferido pelos americanos. Mas é também com estas especulações sem contraditório que se forjam os mitos...
A terminar, e num registo que talvez possa interessar o leitor, refira-se que John Maynard Keynes tinha apenas 62 anos quando faleceu. Ora os Keynes ficaram conhecidos pela sua longevidade: o seu pai (que ainda era vivo em 1946) morreu com 97 anos; a sua mãe (que também era viva quando da morte do filho mais velho) morreu com 96; o seu irmão morreu com 95 anos e apenas a sua irmã destoa desta galeria de nonagenários, tendo falecido aos 85 anos. Do ponto de vista estatístico, esta morte precoce de John Maynard terá sido uma espécie de anomalia numa série estatística e Deus sabe quanto uma certa escola de economistas leva as estatísticas muito a sério... Se o modelo econométrico estivesse bem deduzido, John Maynard Keynes não devia ter morrido tão cedo...

O «PUTSCH» DE ARGEL

21 de Abril de 1961. Dá-se em Argel um pronunciamento militar dirigido por quatro generais franceses contra a eventualidade da concessão da independência à Argélia, então colónia francesa (da esquerda para a direita: Edmond Jouhaud, Raoul Salan, Maurice Challe e André Zeller). Sendo uma contagem de espingardas, estes generais africanos não estavam dispostos a levar a sua insubordinação contra a legalidade democrática até ao ponto de desencadear uma guerra civil, como o haviam feito 25 anos antes os seus homólogos espanhóis. O confronto travar-se-á realmente nas ondas hertzianas: a ORTF em Paris, contra a Radio Argel. Na capital, e porque o assunto se apresentava como uma coisa entre generais, Charles de Gaulle fardar-se-á também de general para comparecer diante das câmaras de televisão e ali desancar de uma forma desabusada os generais insurrectos, tratando-os por um «quarteto de generais reformados»*.
Em privado, e depois de se assegurar da neutralização das cumplicidades que os insurrectos disporiam na metrópole (como as unidades sob as ordens dos generais Faure e Vanuxem), o presidente comentava: «o que é grave em tudo isto é que não é para ser levado a sério»**. Mas, para além dos comentários sempre inspirados que são atribuídos a de Gaulle, o episódio arrastou-se por cinco dias (21-26 Abril), até à rendição dos insurrectos. A maior parte do contingente militar francês na Argélia, formado por quem cumpria o serviço militar obrigatório, havia-se recusado a seguir os generais. A arma secreta de de Gaulle fora o transistor. No final, 220 oficiais foram demitidos dos seus comandos, 114 foram levados a tribunal militar, 3 unidades históricas do exército francês foram dissolvidas. E, como veremos dentro de dias, mesmo o armamento nuclear que os franceses desenvolvia então no Sahara foi detonado precipitada e preventivamente para o retirar do alcance dos insurrectos.
* «Un quarteron de généraux en retraite» no original. A palavra francesa «quarteron" é bastante mais depreciativa do que a tradução recomendada de quarteto. ** «Ce qui est grave en cette affaire, c'est qu'elle n'est pas sérieuse».

20 abril 2021

O VOO SILENCIOSO DO PRIMEIRO HELICÓPTERO MARCIANO

As imagens espectaculares que nos chegam de Marte com o voo inaugural do mini helicóptero marciano da NASA, provocaram-me uma outra viagem, nostálgica, ao passado, e às descolagens exuberantes de som* das Eagles a descolar da base lunar Alfa, na série Espaço: 1999. Mas aqui, tudo se passa em silêncio. Contudo, por causa da rarefacção da atmosfera marciana, sabe-se que as pás giratórias do drone têm que girar a uma velocidade cinco vezes superior à de um seu equivalente terrestre. E assim poderia ser possível captar o som que produzem. Embora isso possa ser periférico para os propósitos da missão científica. Mas neste mundo em que predomina cada vez mais a forma sobre o conteúdo, desconfio que se acrescentassem esse som, o vídeo da NASA ia ter muito mais cliques...
* Sem atmosfera na superfície lunar, não devia haver som...

AS VOTAÇÕES DA ASSEMBLEIA GERAL DA ONU

20 de Abril de 1961. Portugal sofre uma pesada derrota diplomática na Assembleia Geral da ONU, onde, aproveitando os acontecimentos que se estavam a desenrolar em Angola, é aprovada uma moção respeitante à administração de Portugal naquele território. A dimensão da derrota prendia-se menos com o teor da moção, desfavorável à conduta portuguesa mas de qualquer forma inconsequente, do que com o resultado da votação, em que Portugal (que não quisera participar no debate) recebeu apenas o apoio de 2 países: a Espanha e a África do Sul. Abstenções haviam sido 9, incluindo o Brasil e os principais países da Europa Ocidental, casos do Reino Unido, da França, da Bélgica e da Holanda. Mas assumia um significado substancial o facto dos Estados Unidos também terem votado favoravelmente a moção. Uma moção que se revestia de uma abrangência muito superior ao carácter «afro-asiático» como ela é descrita pelo cabeçalho do Diário de Lisboa - aprecie-se o mapa abaixo com o sentido do voto dos países europeus. A Europa de Leste votou a favor como previsível, o Norte da Europa também, mas também aparecem algumas surpresas de aliados da NATO, como a Itália ou a Grécia.

19 abril 2021

PORTUGAL É UM PAÍS DE POETAS, DE COMENTADORES E DE GRANDES INTRIGALHADAS

Que Portugal é um país de poetas é uma daquelas coisas que se insiste em repetir por aí. Que Portugal é um país de comentadores é outra daquelas coisas que também se insiste em repetir por aí, mas com menos veemência e, paradoxalmente, com muito mais substância do que a coisa dos poetas. Aprecie-se na imagem acima como, ao contrário dos poemas, que nunca ouvimos declamados, os comentários, por mais despropositados que sejam, são encaminhados para caixas de ressonância e viram notícias no dia seguinte, nos exemplos de Paulo Portas (tvi) e Marques Mendes (sic). Mais do que isso: comentador (não confundir com comendador...) é um estatuto que tanto se pode adquirir por inerência, como será o caso de qualquer dos dois mencionados acima, antigos dirigentes de partidos da direita, como também se pode trabalhar para cair na mercê de o alcançar, como parece ter sido o caso de Pedro Marques Lopes, pelo menos a fazer fé na desenvolvida reportagem que a revista Sábado lhe dedicou esta semana (abaixo). Pedro Marques Lopes esse que, nesta última dúzia de anos em que ele se afirmou no estrelato dos comentadores nacionais, se notabilizou por nunca ter tido uma ideia. Não que isso seja importante. Há muitos outros comentadores que, como ele, não têm ideias. E há até outros que seria melhor não as terem... Confesso, porém, que me intriga a oportunidade da publicação desta notícia, que remete para uma história que começa há mais de doze anos (2008) e envolve as mesuras de Pedro Marques Lopes (e o patrocínio recíproco...) a tudo o que pode ser de mais tóxico nestes dias que correm: José Sócrates, Pedro Passos Coelho e Fernanda Câncio. Uma de duas: ou isto se sabia - e eu não sabia - ou, não se sabendo, gostaria de saber quais as razões para a sua promoção precisamente agora. De qualquer das maneiras, e para recuperar a expressão empregue abaixo, eu não faço parte da «meia Lisboa» de quem Pedro Marques Lopes é amigo, e também não faço parte da «outra meia» que «o despreza». Pelos vistos, não existo nesta Lisboa que o jornalista Marco Alves abaixo descreve...

MORTE DE ÓSCAR CARMONA

18 de Abril de 1951. Morte em funções do presidente da República, Óscar Carmona, que contava 81 anos. Na verdade, e considerada a idade do presidente, não se trataria de um cenário imprevisto. Uma possibilidade que fora decerto tida em conta quando, pouco mais de dois anos antes (Fevereiro de 1949), se haviam realizado as últimas eleições presidenciais e a permanência de Óscar Carmona no cargo fora renovada, apesar de já então contar 79 anos e contando que o mandato seria por mais 7(!) anos... (Note-se que os octogenários eram então muitíssimo mais raros do que actualmente) A opção de Salazar e do seu regime fora a de, em vez de proceder às necessárias mudanças na magistratura suprema do país, deixar morrer o chefe de Estado em exercício no cargo, como se se tratasse de um monarca e só tratar do problema da sua sucessão quando a ocasião o tornasse forçoso. Como se vê, de Salazar a António Costa, «empurrar os problemas com a barriga», sempre que tal for possível, é uma marca identifica da condução da actividade política em Portugal. Mas a ocasião apresentava-se agora (em Abril de 1951) e, embora ainda não o sabendo, o presidente do Conselho, tão gabado pela argúcia política, iria fazer afinal uma má escolha (na sua perspectiva...) na pessoa do general Craveiro Lopes.

18 abril 2021

QUANDO AS NOTÍCIAS GIRAVAM À VOLTA DO QUE HAVIA PARA COMER...

18 de Abril de 1946. A Segunda Guerra Mundial já terminara há quase um ano mas, por toda a Europa, subsistiam os problemas de alimentação como se percebe pela leitura da coluna acima da esquerda, com os países do Novo Mundo (no caso, a Argentina) a funcionarem como um celeiro do velho Continente. A Checoslováquia trocava açúcar (de beterraba) pelo detestado - mas hipervitaminado - óleo de fígado de bacalhau oriundo da Noruega. E até a Suíça, que havia dois meses havíamos aqui visto a ser qualificado como «um paraíso», reduzia em 10% a ração quotidiana de pão. Portugal não escapava a este panorama e há uma escola de historiadores doméstica que tem uma explicação simplificada para a escassez de alimentos: Salazar era o culpado de tudo. Agora a sério, uma outra forma de compreender a seriedade então atribuída a tudo o que fosse comida, era acompanhar os dramas gerados pelo assunto, como aquele que aparece na coluna da direita, provocado pelo roubo de três galinhas(!) em Pedrógão Grande e cuja solução policial se veio a concluir em Lisboa com a prisão do gatuno. Como se deduz, ser-se um pilha-galinhas há 75 anos era coisa grave! 

17 abril 2021

O DESEMBARQUE NA BAÍA DOS PORCOS

17 de Abril de 1961. Um pequeno contingente de 1.500 soldados cubanos treinados pela CIA desembarca em Cuba com o intuito de derrubar o governo de Fidel Castro. As avaliações feitas posteriormente são unânimes em considerar que, considerados a escassez dos  meios mobilizados pelos invasores para o desembarque, a operação teria sempre muito poucas hipóteses de vingar. A expectativa dos autores do projecto seria que o regime cubano entrasse em colapso ou, alternativamente, que o engajamento viesse a colocar a administração americana numa situação tão complicada, que forçasse a sua intervenção directa e aí a capacidade militar norte-americana seria decisiva. Mas nenhuma dos dois cenários aconteceu por razões que não virão ao caso desenvolver, e o episódio saldou-se por um fracasso total, que veio a reforçar interna e internacionalmente a posição do regime castrista. Nos dias que correm, não tem ninguém que o defenda, e parece que nem teve autores. Mas, tal é a unanimidade à volta da impossibilidade de sucesso deste projecto da CIA, que me apetece apreciá-lo invertendo a lógica que, certo dia, o marechal Joffre estabeleceu a respeito da Batalha do Marne. Ele, que dela saíra como o general vencedor, comentava-a depois numa ironia ácida: «Eu não sei quem venceu a Batalha do Marne. Agora, se tivesse sido uma derrota, aí sei quem a teria perdido.» Aqui, no caso da Baía dos Porcos, tal é a unanimidade, o determinismo e a assertividade em criticar os planos de invasão, que nem imagino o que se poderia dizer se, por acaso, o desfecho tivesse sido outro... É que, historicamente, há que reconhecer que já houve regimes que colapsaram perante ameaças muito inferiores.

16 abril 2021

AS COMPLICADAS FRONTEIRAS DE BENGALA

Foi a província de Bengala que serviu de núcleo para a agregação do Império Britânico das Índias. A sua capital, Calcutá (actualmente designada por Kolkata), foi também a capital do Império até 1911. Dentro do Raj, os bengalis concebiam-se e assumiam-se como uma vanguarda entre as várias culturas indianas: em 1913 foi um dos seus, o poeta Rabindranath Tagore, a receber o primeiro Prémio Nobel da Literatura atribuído a um não-europeu. Também representavam exemplarmente o que era a sociedade indiana na forma como, debaixo da identidade cultural, as confissões religiosas se misturavam. De acordo com o censo de 1931, 54,4% da população da província era muçulmana – nos dois mapas acima estão assinaladas a cinzento as regiões onde os muçulmanos estavam em maioria. Trata-se porém de uma representação que não mostrará toda a realidade: é que 25% da população de Calcutá também era muçulmana. Esses detalhes tornaram-se muito importantes em 1947, quando do fim do domínio britânico e da Partição do Império entre a Índia e o Paquistão. Separada geograficamente do resto dos territórios de maioria muçulmana da Índia (abaixo), também se traçaram fronteiras em Bengala (acima). As fronteiras então traçadas sob pressão, separando a Índia do que então se tornou o Paquistão Oriental, tornaram-se não só nas mais extensas como também nas mais complexas fronteiras do subcontinente. Na actualidade e como se vê acima, a Índia tem 3.400 km de fronteiras com a China, 2.900 com o Paquistão, 1.700 com o Nepal, 1.500 com a Birmânia e ainda 600 com o Butão. Porém, apesar das aparências geográficas, a fronteira mais extensa da Índia, por causa do seu formato sinuoso (mais de 4.000 km) é com o Bangladesh, o país que resultou da secessão do Paquistão Oriental em 1971.
O senso comum indicar-nos-ia que o traçado de fronteira tenderia a separar as regiões de maioria muçulmana das regiões onde a maioria da população pertencesse a outra confissão – predominantemente os hindus. As realidades do terreno obrigaram a que o traçado da fronteira tivesse que se ajustar e a realidade, bem diferente, pode ser apreciada no mapa acima. Metade da extensão da fronteira (51%) atravessa regiões onde há uma mesma maioria religiosa dos dois lados: 20% muçulmana, 16% hindu e 15% outras confissões¹. E em 120 km há até uma maioria hindu do lado do Bangladesh e muçulmana do da Índia!
À esta questão do traçado da fronteira junta-se ainda a existência de 197 enclaves – são 74 bangladeshis em território indiano e 123 indianos no do Bangladesh!… Numa fronteira tão complexa e, por isso, propensa a incidentes, o que será de surpreender é a ausência deles. Hoje completam-se vinte anos sobre o início do único grande incidente fronteiriço envolvendo a Índia e o Bangladesh (acima e abaixo: um soldado, respectivamente, indiano e bangladeshi, de sentinela numa atitude quase idêntica), e que custou a vida a 81 guardas indianos e a 2 soldados bangladeshis. Tendo em conta as rivalidades do subcontinente, sobretudo as entre a Índia e o Paquistão, este registo quase parece ser um verdadeiro milagre considerando a complexidade do traçado...
¹ Budistas, cristãs ou animistas.

15 abril 2021

ASTÉRIX E A SOPA DE CEBOLA

A questão da sopa de cebola que estivera no caldeirão antes de ser substituída por sestércios é um tema recorrente da aventura «Astérix e o Caldeirão». Obélix chega ao fim da aventura sem perceber qual a importância relativa de um e de outro conteúdo. Pode haver várias maneiras de viver uma aventura, e a de Obélix não implicava necessariamente a compreensão completa do que estava a acontecer à sua volta. Como se lê na antecâmara de todos os álbuns de aventuras de Astérix, na apresentação de Obélix: (Para ele) «Contanto que haja javalis e grandes cenas de pancadaria...» Todos nos rimos da simplicidade de Obélix, mas o seu exemplo está mais difundido do que aquilo que se possa pensar...
Por exemplo, neste assunto do julgamento de José Sócrates parece-me haver também duas maneiras de olhar para o «conteúdo do caldeirão». A «sopa de cebola» é o próprio José Sócrates, um escroque, uma criatura detestável que conspurca tudo o que o rodeia. Mas o «cheiro da sopa» não nos pode nem deve fazer esquecer aquilo que me parece mais importante extrair do processo, «os sestércios»: a constatação da colossal mediocridade do nosso aparelho judicial, nomeadamente a magistratura do ministério público que demorou quase sete anos numa investigação que se concretizou em milhares de páginas... e num mero punhado de acusações sustentáveis, de acordo com o entendimento do juiz encarregado de avaliar o processo. Isto quando o que estava em causa era a conduta de um ex-primeiro-ministro, o que me leva a pressupor que a acusação se tenha esmerado e «vestido o seu fatinho domingueiro». (6.728 páginas? Aqueles gajos vivem em que planeta?)
Para rematar, acrescente-se a receita da sopa de cebola (à francesa), que, ao contrário de José Sócrates, é uma boa sopa...

14 abril 2021

A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA EM ESPANHA

14 de Abril de 1931. Proclamação da república em Espanha. Como acontece muito frequentemente com estes regimes em fase agónica, a monarquia espanhola caiu, mas não chegou sequer a ser derrubada, esboroou-se perante um obstáculo político que não conseguiu superar: umas eleições municipais onde os republicanos haviam vencido em todas as principais cidades de Espanha.

13 abril 2021

QUANDO UM CONGRESSO PARTIDÁRIO ALGURES NA EUROPA CENTRAL ERA MOTIVO DE DESTAQUE

13 de Abril de 1981. Se, no poste anterior, nos confrontámos com as idiossincrasias do jornalismo sob a censura, antes do 25 de Abril, neste confrontamo-nos com as idiossincrasias do novo jornalismo depois do 25 de Abril em que, deixando de haver censura, se instalou, em certos órgãos de informação que haviam anteriormente adquirido prestígio, uma certa padronização das notícias, por muito absurda que fosse a relevância jornalística daquilo que se noticiava. Tomemos o exemplo acima, na página internacional de há 40 anos desse mesmo Diário de Lisboa que, 20 anos antes noticiara de forma censurada o golpe Botelho Moniz, onde se noticiava agora, com um amplo desenvolvimento e até a contribuição da ANOP (a agência de notícias nacional), a forma como estavam a decorrer em Berlim os trabalhos do X Congresso do Partido Socialista Unificado da Alemanha (de Leste).
Tendo desaparecido a censura era difícil compreender o critério jornalístico que justificaria tal destaque a uma reunião magna num país que nem sequer nos era próximo. Assim como não era comum cobrirem-se com todo este destaque o que acontecia nos congressos de partidos de poder no Ocidente, casos, por exemplo, do congresso do Partido Social Democrata sueco ou então o da Democracia Cristã italiana. Mas, mais do que essa disparidade de critérios, a verdade é que o interesse do que acontecera era nulo, a cenografia era sempre a mesma: começava-se sempre por um enfadonho discurso do líder - no caso Erich Honecker - gabando os resultados económicos alcançados (25,4%) e havia sempre na notícia uma referência ao infindo número de delegações de partidos irmãos ali presentes (125). Uma apreciável parcela do texto era, aliás, dedicada ao que fora à Alemanha dizer um russo, Mikhail Suslov, que representava a ortodoxia de pensamento comunista. O que é que isto tinha a ver com o leitor típico português que não fosse comunista? Tendo acabado a censura oficial, passara-se dessa externa e formal, e que bloqueava as notícias importantes, para uma outra interna e informal, que forçava a publicação de outras, irrelevantes. (Esclareça-se que este X Congresso terminaria a 16 de Abril com a eleição por unanimidade dos 2.700 delegados presentes dos membros do Comité Central... - que emocionante!)

O QUE ERA POSSÍVEL NOTICIAR DE UM GOLPE PALACIANO FALHADO

13 de Abril de 1961. Há sessenta anos o chefe de governo não tinha que se preocupar com problemas de comunicação: mandava-se uma nota oficiosa para a comunicação social e o governo estava remodelado. «Por decreto publicado no Diário do Governo de hoje, foram exonerados dos seus cargos Suas Excelências o ministro da Defesa Nacional, o ministro do Exército e o ministro do Ultramar; e os subsecretários de Estado do Exército e da Administração Ultramarina. O chefe de Estado nomeou para o lugar de ministro da Defesa Nacional Sua Excelência o Presidente do Conselho, sr. dr. António de Oliveira Salazar; para o lugar de ministro do Exército, o brigadeiro Mário Silva, e para o lugar de ministro do Ultramar, o dr. Adriano Moreira. Para os cargos de subsecretários de Estado do Exército e da Administração Ultramarina foram nomeados, respectivamente, o tenente-coronel Jaime da Fonseca e o dr. João da Costa Freitas. Foi, também, nomeado chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas o general Manuel Gomes de Araújo.» E pronto. Nada mais se esclarecia, nem nada mais viria a poder ser esclarecido nos dias que se seguiram. Competia ao leitor tentar perceber o que acontecera e que estivera por detrás desta súbita remodelação ministerial. Esta era a informação possível antes de 25 de Abril.

12 abril 2021

O PRIMEIRO VOO ESPACIAL TRIPULADO

12 de Abril de 1961. O cosmonauto russo Yuri Gagarine realiza o primeiro voo espacial tripulado. Esta é uma daquelas efemérides batidas pela comunicação social tradicional, por isso, para quem quiser saber mais, substituo essas eventuais explicações por este vídeo abaixo, descrevendo detalhadamente o voo. O vídeo tem uma duração superior a 20 minutos, correspondente a 20% do tempo de duração real do voo. 

11 abril 2021

...MAIS UMA PETIÇÃO, RECORDANDO A HISTÓRIA DO PITBULL «ZICO»

Tenho que aceitar que não será o ridículo que consegue dissuadir os jornalistas de dar grande relevo noticioso às petições públicas on-line, publicitando-as nos seus órgãos de informação mas fazendo-o sem contexto e sem que se pronunciem sobre a sua oportunidade, pertinência e exequibilidade. Assim, e a propósito do contexto, esta última, acabada de aparecer e dedicada ao afastamento do juiz Ivo Rosa, «já tem mais de 114 mil assinaturas», escreve Ivo Neto, mas ainda está abaixo dos 150 mil que se pronunciaram contra «a presença de José Sócrates como comentador da RTP», embora já tenha superado a marca das 85 mil assinaturas dos que se condoeram com o abate do famoso pitbull «Zico». O pitbull «Zico» não foi salvo, mas serve desde então (2014) de meu benchmark da popularidade efectiva em Portugal: o cão recebeu em assinaturas mais do que os votos recolhidos nas últimas eleições legislativas pelo Chega, pela Iniciativa Liberal, pelo Livre ou pela Aliança... Apesar disso, acabou por não ser salvo pelo canil de Beja. Por outro lado, também as 150 mil assinaturas, mesmo sendo muitas mais, não promoveram a supressão do programa dominical de José Sócrates na RTP, terá sido mais o seu comportamento. Agora, e ainda a propósito das antipatias que José Sócrates tem o condão de gerar por todos os sítios onde passa, esta iniciativa desta petição para o afastamento de Ivo Rosa é mais outro disparate. Mas aquilo que se mostra mais verdadeiramente absurdo em tudo isto, é que, e como se vê, a comunicação social tradicional passa o tempo a criticar as redes sociais pela sua volubilidade e mais uma porção de defeitos, mas nestes casos concretos lá aparece ela - comunicação social - a cavalgar a onda, dando realce ao disparate. E, para mostrar quanto o comportamento está disseminado pela comunicação social dita respeitável, mostre-se que o assunto aparece no formato que descrevi - sem contexto - no Público (acima), mas também no Expresso, no Diário de Notícias, no Correio da Manhã ou no Observador (uma ressalva para este último, com trabalho feito na identificação e reputação do primeiro subscritor).

HARRY TRUMAN DEMITE DOUGLAS MACARTHUR

Há 70 anos, e com um estardalhaço que faz com que até um jornal português dê à notícia as honras de quase toda a primeira página, o presidente dos Estados Unidos demite o general de todos os comandos que exercia. O impacto da demissão era tanto mais surpreendente quanto, entre aqueles, se contavam o comando militar das forças das Nações Unidas (norte-americanas na sua esmagadora maioria), que permaneciam então engajadas na Guerra da Coreia (1950-53). Ao longo da sua carreira, MacArthur nunca fora um subordinado muito respeitador e o estatuto de herói que construíra para si durante a Segunda Guerra Mundial tornara as relações com superiores ainda piores. MacArthur tivera uma ascensão distinta e precoce na carreira, fora promovido a oficial general ainda durante a Primeira Guerra Mundial, com apenas 38 anos. E tornara-se no mais novo chefe de Estado-Maior do exército em 1930, com apenas 50 anos. É óbvio que uma carreira tão fulgurante como esta não se construiu apenas por causa do - indiscutível - mérito de MacArthur, para ela foram precisas também preciosas conexões políticas que ele usou habilmente. Em 1935 MacArthur reformara-se do exército americano e tornar-se-á no ano seguinte, ainda devido às suas conexões, marechal das Filipinas! Será reincorporado no exército americano em 1941, e a propaganda de guerra transformá-lo-á num herói. Depois, numa espécie de vice-rei do Japão. Os efeitos da auto-promoção e da idade (71 anos em 1951) ter-se-ão feito sentir quando, a respeito da condução do conflito coreano, MacArthur resolveu comprar uma briga com o presidente Harry Truman. Truman, um democrata, não pertencia naturalmente ao mesmo círculo das conexões políticas de MacArthur e para além disso e ao contrário do que a fotografia abaixo pretende sugerir, os dois homens não se estimavam reciprocamente. As cautelas de Truman, demonstradas por este exercício abaixo de relações públicas, tiveram contudo que ser ultrapassadas quando a Casa Branca descobriu que MacArthur estaria a desenvolver uma diplomacia paralela e a tomar atitudes deliberadamente provocatórias para arrastar abertamente a China para o conflito. A decisão de Truman provocou alguma agitação, especialmente entre a ala republicana conservadora, a popularidade de Truman afundou-se, mas o episódio acabou por se saldar por uma reconfirmação da proeminência do poder político sobre as chefias militares.

10 abril 2021

O MARECHAL JOFFRE EM PORTUGAL

10 de Abril de 1921. Há cem anos sentiamo-nos muito honrados com a visita do marechal Joseph Joffre a Portugal, acompanhado do italiano Armando Diaz. Joffre fora um militar muito importante da Primeira Guerra Mundial, mas apenas da sua primeira parte; fora afastado em 1916.  Quem compreendesse as hierarquias militares da Grande Guerra na hora da Vitória, em Novembro de 1918, aperceber-se-ia nesta embaixada militar da ausência dos grandes protagonistas: Philippe Pétain e Ferdinand Foch, o britânico Douglas Haig ou o americano John Pershing. Assemelhava-se assim à digressão de uma equipa muito famosa, mas onde, em Portugal, só tínhamos direito, para já, a ver jogar os suplentes...

APARENTEMENTE E DURANTE ANOS A FIO, «PINTOU-SE» UMA HISTÓRIA SOBRE JOSÉ SÓCRATES QUE NÃO SE SUSTENTOU QUANDO FOI FINALMENTE APRECIADA POR UM MAGISTRADO...

Foram sete anos de investigações e não se vão apurar os responsáveis judiciais por este desfecho?...

09 abril 2021

OS X FILES E A VERDADE

Tendo tido um mote como este (A Verdade anda por aí) percebe-se que X Files foi uma série televisiva de ficção que permaneceu fixada nos valores do século passado, numa era em que a Verdade parecia algo elusivo e difícil de alcançar, algo que escapava, episódio após episódio, à dupla Fox Mulder/Dana Scully. Com as redes sociais a verdade deixou de ser um bem escasso, pelo contrário, agora além de andar por aí, transborda por aí, e já não são precisas personagens de ficção em busca dela, porque qualquer dos nossos interlocutores na internet parece ter uma (verdade), pronta a nos explicar. Pode ser a verdade a respeito das melhores vacinas contra a covid, mas também pode ser uma recomendação de uma série da Netflix... Este é um século de onde terão desaparecido as dúvidas.

PORTUGAL NA CAUDA DA EUROPA...

Desta vez e para desenjoar, é mentira que Portugal esteja na cauda da Europa... Na verdade, citando a discreta notícia: «esta é a quarta semana consecutiva em que Portugal ocupa a melhor posição na União Europeia em termos de incidência da covid-19.» Contudo, ninguém duvida que, se Portugal ocupasse a «pior posição» por quatro semanas consecutivas, o facto seria a capa e a notícia de abertura de todos os telejornais. Ora, manda a lógica que, ou as duas são notícia destacada, ou nenhuma delas o é. O que não precisamos é de jornalismo enviesado.