30 novembro 2014

FOGE CÃO, QUE TE FAZEM BARÃO. PARA ONDE, SE ME FAZEM VISCONDE?

Está giro e aqueles óculos até lhe conferem um ar inteligente de ombrear com alguns colegas abaixo, mas o cãozinho chegou uma semana atrasado para também dar a sua opinião sobre a detenção de José Sócrates.

ENQUANTO ISSO, PELA EUROPA...

Enquanto por cá nos vamos entretendo com a cobertura do XX Congresso do PS entremeado com a das excursões a Évora, pelo estrangeiro, David Cameron, fez um interessante discurso na Sexta-Feira em que anunciou pretender rever restritivamente as regras a aplicar aos imigrantes, incluindo os oriundos dos restantes países da União. A seis meses das eleições e saído de uma humilhante dupla derrota em eleições intercalares para os antieuropeístas do UKIP, para David Cameron as ameaças de expulsão do Reino Unido que foram expressas no princípio do mês por Angela Merkel já nem têm importância alguma porque o que está em causa é a sua própria sobrevivência política. O eleitorado tradicional dos tories parece ter abraçado em números substantivos o antieuropeísmo do partido de Nigel Farage e, se não o recuperar até Maio, Cameron arrisca-se não apenas a não ser reconduzido, como o próprio partido conservador se arrisca a sofrer, por causa da dispersão dos votos e da peculiaridade do sistema eleitoral britânico, uma derrota acabrunhante, na linha da sofrida pelos trabalhistas em 1983¹.

Do outro lado do Canal, realiza-se um outro congresso partidário, o da Frente Nacional, agora dirigido por Marine Le Pen, a filha do fundador. Numa daquelas entrevistas que se dão nestas ocasiões, na mesma Sexta-Feira do anúncio de David Cameron, Marine Le Pen prometeu um referendo, a realizar logo nos primeiros seis meses do mandato, na eventualidade de vir a ser eleita nas eleições presidenciais francesas que terão lugar em 2017. Trata-se um cenário improvável, mas o que torna a entrevista interessante é a apropriação de uma retórica e de um estilo gaullista (Marine Le Pen promete também resignar se do referendo não resultar o resultado que antecipa: a saída da União), um discurso inédito quando vindo de uma facção da direita francesa que, historicamente, só apoiou de Gaulle quando não havia mais nada a fazer. Simultaneamente, Nicolas Sarkozy regressa à presidência da UMP, os gaullistas legítimos, e já o imaginamos a fazer como Cameron, a radicalizar o discurso, atrás do prejuízo das simpatias que o populismo nacionalista congrega.

Em suma, em dois dos mais importantes países da União (excluída a Alemanha!), afiguram-se ameaças sérias de futuro à coesão europeia. No meio disto tudo, e retomando os trabalhos do congresso socialista por onde começou o texto, a forma como a questão da Europa e da União Europeia foi lá abordada até pareceu de que se trata de um assunto suprapolítico, cuja existência se dá por incontornável, fazendo lembrar aquelas monarquias europeias do Século XIX (ou princípios do Século XX) onde o regime se reformava mas não se questionava e a existência de republicanos era uma curiosidade política marginal, até que a turbulência dos tempos políticos acabava por impor a sua implantação - hoje há uma maioria de repúblicas, mesmo na Europa. Assim como naquela altura era a esquerda que nunca se reconheceu confortável na instituição monárquica, actualmente é a direita que não se reconhecerá desse mesmo modo na instituição europeia, e a História parece demonstrar-nos que não vale a pena tentar-se iludir as questões fingindo que elas não existem.

¹ Nessas eleições, os votos tradicionalmente trabalhistas dividiram-se significativamente entre trabalhistas e uma cisão social-democrata. Os conservadores, mesmo baixando a votação, reforçaram a sua bancada parlamentar por causa da dispersão dos votos da oposição, ficando com uma representação em deputados que era quase o dobro da dos trabalhistas (397 vs. 209).

29 novembro 2014

ORGANIZEM-SE!

Organizem-se! é a punchline de uma anedota que é escabrosa demais para ser contada socialmente mas que, estranhamente, toda a gente conhece. Será por isso que, quando surge uma daquelas discussões múltiplas em que ninguém se parece estar a entender, um apelo expletivo mas veemente à organização costuma ter o efeito de gerar silêncio e concitar a atenção imediata dos intervenientes. É o seu equivalente internáutico que aqui procuro reproduzir quando chamo a atenção para a enorme contradição que parece grassar na comunicação social entre os que opinam que ainda não se sabe nada de concreto sobre aquilo de que José Sócrates é acusado, os que opinam que tem havido imensas violações do segredo de justiça, e até os que acham simultaneamente uma coisa e outra. Se tem havido imensas violações do segredo de justiça, porque é que ainda não se sabe nada sobre as acusações concretas? Como em várias outras expressões que se ouvem empregues por aí¹, também o segredo de justiça terá adquirido um entendimento tão para além do seu conteúdo jurídico original, que neste momento ninguém se entenderá em que é que consiste e muito menos de que forma é violado - e fiquemo-nos por aqui, não repitamos o apelo, considerando o potencial de comentários que se poderiam seguir, lembremo-nos da anedota que dá origem a este poste...

¹ Estou-me a lembrar de, por exemplo, serviço público de televisão.

PROMOÇÕES PARA REMEDIADOS

Sempre achei ridículas estas promoções que nos tentam convencer que os bens de luxo também estão ao alcance das bolsas dos remediados. Nunca estão. A sua profusão, contudo, é um claro indicador de como haverá muitos remediados que, por culpa própria e para gozo de quem os rodeia, gostam de embarcar na ilusão que lhes propõem. É um trabalho cuidadoso, o do vendedor: no exemplo acima, não se exibe a fotografia da ilha privada que estará a ser promovida por 80 mil euros; é que somos capazes de descobrir que, quando a maré encher, a nossa varanda lá de casa tem uma área maior do que a tal ilha. Mas, para uma verdadeira paródia ao deslumbramento dessas vítimas de um outro conto do vigário, deixem-me adicionar esta velhinha prancha de BD de Flordelys, como prova que o fenómeno é intemporal.

28 novembro 2014

«COCARDES» ANACRÓNICAS

As minhas deambulações pela internet em busca de Messerschmidtts Bf-109 ostentando uma cocarde específica (búlgara, croata, húngara, etc.) levaram-me a um local curioso, onde o autor se entretém a personalizar aviões de combate com cores anacrónicas (acima é um desses aparelhos pintado com as cores dos seus arqui-inimigos soviéticos). O que une a colecção, para quem conheça a história da aviação militar, é que todos os aviões que dela fazem parte não pertenceram, nem nunca poderiam ter pertencido, às Forças Aéreas sob cujas cores aparecem pintados. Escolhi trazer para aqui um punhado de exemplos, alguns que nos são próximos porque os desenhadores também usaram as cores da nossa Força Aérea.
Por exemplo, a FAP dificilmente poderia contar no seu arsenal uma esquadrilha de Sukhoi Su-27 como o que aparece pintado acima. Apesar de se tratar de um avião bonito e muito manobrável, trata-se de um aparelho relativamente ultrapassado, um dos últimos caças entrados ao serviço durante a era soviética e que Portugal, que sempre esteve do outro lado – o da NATO – nunca se disporia a adoptar para o seu arsenal. 
Em contraste, o problema que se coloca à nossa adopção do F-22 Raptor (abaixo) não é político (nem estético), é outro: trata-se do seu custo (ronda os 120 milhões € cada unidade, o quíntuplo do que custaria um dos Sukhoi acima), que se torna excessivo mesmo para a USAF, que tem ao seu serviço menos de 200. Uma esquadrilha deles ficar-nos-ia pelo dobro daquilo que custaram os nossos dois famosos submarinos da classe U-214.
Em contrapartida, o F-16 é um avião de custo relativamente acessível e muito difundido: é, por exemplo, o avião de combate da FAP. A originalidade da imagem acima está na decoração: o F-16 pertence a uma imaginária Força Aérea do Vaticano (note-se o requinte da cruz na cauda) e aquilo que sob Bento XVI nos pareceria anacrónico, esquecido Júlio II, com o actual papa Francisco até é capaz de nos arrancar um sorriso.
Finalmente, de um avião real ao serviço de uma Força Aérea imaginária, concluímos com um avião (e até um pouco mais do que isso!) imaginário ao serviço de uma Força Aérea real, a colombiana. A nave é a Eagle que só os mais velhos se lembram de ver operada pelos habitantes da Base Lunar Alpha da série televisiva Espaço 1999 há quase 40 anos. Para quem goste e consiga perceber os anacronismos, o site vale a visita.

«SOLSBURY HILL»


Tanto ou mais do que o conteúdo, era a capa deste primeiro disco a solo de Peter Gabriel (1977) que parecia possuir algo de mais distintivo, hipnótico: aquelas enormes gotas condensadas em cima do carro de um azul eléctrico. Uma evocação que me parece apropriada nesta manhã que se segue a uma noite de chuva intensa. A letra de Solsbury Hill tem o cunho de incompreensibilidade que era típica de Gabriel e que já a trouxera dos Genesis. No seu estilo de pequenos trechos coerentes que se desgarram para formar um todo de significado imperceptível, Gabriel faz-me lembrar um antepassado lírico das actuais aparições televisivas de José Adelino Maltez.

Climbing up on Solsbury Hill
I could see the city light
Wind was blowing, time stood still
Eagle flew out of the night
He was something to observe
Came in close, I heard a voice
Standing stretching every nerve
Had to listen had no choice
I did not believe the information
I just had to trust imagination
My heart going boom boom boom
"Son," he said "Grab your things,
I've come to take you home."

To keep in silence I resigned
My friends would think I was a nut
Turning water into wine
Open doors would soon be shut
So I went from day to day
Tho' my life was in a rut
"Till I thought of what I'd say
Which connection I should cut
I was feeling part of the scenery
I walked right out of the machinery
My heart going boom boom boom
"Hey" he said "Grab your things
I've come to take you home."
(Back home.)

When illusion spin her net
I'm never where I want to be
And liberty she pirouette
When I think that I am free
Watched by empty silhouettes
Who close their eyes but still can see
No one taught them etiquette
I will show another me
Today I don't need a replacement
I'll tell them what the smile on my face meant
My heart going boom boom boom
"Hey" I said "You can keep my things,
They've come to take me home."

27 novembro 2014

ISTO NÃO É UMA NOTÍCIA

René Magritte (1898-1967) não terá provavelmente pensado neste género de abuso que eu irei fazer à legenda de um dos seus mais famosos quadros, mas esta não-noticia que se tornou em notícia não a sendo começa por uma senhora inglesa chamada Susan Clark. Que é advogada. Que diz gostar muito do Algarve. Que os factos que se seguem comprovam gostar muito de cavalos. Que diz não gostar de ver cavalos maltratados. Especialmente no Algarve. E vai daí, resolveu lançar uma petição apelando ao boicote ao turismo no nosso país até que alguma coisa (something) seja feita. Valha o elogio do remate da petição, notando que Portugal é um país da CEE e não um país do Terceiro Mundo ¹. Pede a proponente que se alcance um objectivo de 10.000 assinaturas. Quando escrevo, a petição tem 3.352 assinaturas. Mau para a eficácia do boicote é que entre as últimas 250 assinaturas que constam do documento verifiquei que apenas umas 20 é que não residem em Portugal, o que obrigará, caso a amostra seja significativa, a que mais de 90% dos subscritores da petição tenham de ir de férias para o estrangeiro... Mas reconheça-se quanto o número de assinaturas já angariado não é despiciendo: é superior ao número de militantes envolvidos nas últimas eleições para a Convenção do Bloco de Esquerda.

Contudo, além da sua disposição para assinar entusiasticamente petições em que nos condoamos dos bichinhos, o povo português soube criar uma sabedoria tolerante a estas toleimas. Em vez da inglesa, podia ser uma sueca. Em vez de advogada, podia ser arquitecta. O amor pelo Algarve manter-se-ia mas o pretexto para o boicote podia ser dessa vez o facto de matarmos e comermos coelhos que por aquelas paragens nórdicas costumam ser considerados bichos de estimação. E lá se seguiria um novo corrupio de assinaturas entre duas pratadas de uma feijoada de lebre. Agora a sério: o que estraga a piada ao assunto são os jornais: a partir do momento em que isto aparece publicado num, aparece noutro e mais noutro e o assunto deixa de poder ser levado com a seriedade que merece. Tudo terá começado pela Lusa, pegou-se ao Diário de Notícias, ao i, ao Correio da Manhã, será que os outros títulos conseguem resistir à preocupação com esta emergente ameaça equina ao futuro da nossa indústria turística?

¹ Registe-se o rigor formal do documento: há mais de 20 anos que a expressão CEE foi abolida.

A HEGEMONIA CONTINENTAL DOS MESSERSCHMITT Bf-109


O Messerschmitt Bf-109, nas suas inúmeras versões desenvolvidas desde a sua entrada ao serviço em 1937 até ao final da Segunda Guerra Mundial em 1945, simbolizará como mais nenhum outro aparelho, a aviação de caça da Luftwaffe durante aquele conflito. No total terão sido construídas 34.000 unidades deste aparelho, mas o que o torna mais interessante e é assunto de destaque das fotografias neste poste é proliferação do modelo, colocado ao serviço não apenas em várias forças aéreas dos países aliados da Alemanha como também na de países neutrais, casos da Espanha e da Suíça.
 Bulgária
 Croácia
 Espanha
 Finlândia
Hungria
 Roménia
Suíça
São imagens de uma certa padronização do material militar a que se esteve habituado depois de 1945, mas em equipamentos norte-americanos e sob a égide da NATO. Note-se a ausência de Portugal da lista acima, apesar da neutralidade e das simpatias ideológicas do regime, mas que mesmo assim, ao longo do conflito e mantendo uma atitude que fora adoptada inicialmente na Primeira Guerra Mundial, continuou a privilegiar a aquisição e emprego de material de guerra de origem britânica.

26 novembro 2014

QUARTO PODER? NÃO SE ESTÁ A VER NADA...

Se afixo esta tira de BD com dois irmãos Dalton e o cão Rantanplan é porque os dias se sucedem e a comunicação social portuguesa mostra não conseguir perfurar o segredo de justiça que rodeia o processo de José Sócrates e que toda a opinião pública estará interessada em saber: de que constam concretamente as acusações que o levaram à cadeia? Claro que, entre a opinião pública, há sempre os rantanplans que se contentam com qualquer coisa que lhes dêem, há o jornalismo mais sofisticado que julga dar a volta aos seus leitores, e há a imprensa mais popular que, como acima Jack Dalton, alimenta os seus a sabão (e eles gostam!). Mas parece-me continuar a haver uma maioria moderada e sensata que, profissões de fé de parte, não se deixa iludir, não se dispôs a entrar no gag lá de cima, e que se mantém expectante, porque, sobre o assunto e concretamente, apenas existem umas bocas desgarradas.

Porém, a perenidade com que o segredo se mantém parece permitir-nos tirar duas conclusões: a) Que as verdadeiras capacidades de investigação jornalística da comunicação social portuguesa se revelam, mais uma vez, uma lástima: têm uma opinião pública (a razão da sua existência, costuma-se ouvir aos jornalistas como primeiro argumento a qualquer contrariedade) sedenta à espera dos factos, da história, da notícia e, pura e simplesmente, não a conseguem satisfazer; e b) Que decorre da anterior e é para ser considerada retrospectivamente: que as inúmeras violações de segredos de justiça ocorridas no passado se terão devido sobretudo à cumplicidade de uma das partes envolvidas e não ao engenho dos nossos jornalistas, que estão neste momento a provar que só conseguem publicar aquilo e apenas aquilo que os verdadeiros poderes lhes deixam, quando os deixam.

«AUTOBAHN»

Hesita-se em eleger o tema principal da fotografia antes de nos decidirmos pela auto-estrada cá em baixo onde um automóvel de modelo já antigo – que nos faz dar cerca de 60 anos à foto – se cruza com uma motorizada. A configuração da auto-estrada, com aquela pavimentação de placas de cimento típicas que os mais velhos ainda se lembrarão de ver na nossa A5 antes de se designar por A5, remetem-nos inquestionavelmente para a Alemanha e para as famosas autobahn, alegadamente mandadas construir por Adolf Hitler para dar emprego aos desempregados¹. E, talvez por se descobrir que se está na Alemanha, é nesse momento que o resto da fotografia se desvenda no seu rigor geométrico e estratificado. A modernidade abaixo, um bucolismo laborioso com as colheitas colhidas ao centro, acima um céu de nuvens. É uma porra que as paisagens no resto da Europa, especialmente as do Sul, não possam ser assim tão organizadas. A fotografia é de Georg Oddner.

¹ Na verdade, o programa da sua construção é anterior. A primeira autobahn, entre Colónia e Bona, foi inaugurada em 1932, i.e., antes da chegada dos nazis ao poder.

25 novembro 2014

A MEMÓRIA DO 25 DE NOVEMBRO

Hoje é dia 25 de Novembro e parece-me sempre estranho como estas organizações cívicas que tanto dizem prezar a Memória se destaquem pelo silêncio como deixam passar sempre a data. Ou então não e é compreensível, porque a intenção de a prezar, à Memória, é uma fraude e a memória em causa sectariamente selectiva. O que, a ser verdade, me aparece um entendimento dialéctico demais do que é o civismo. O que me restam poucas dúvidas é, tendo o 25 de Novembro de 1975 o desfecho que teve, a Democracia em Portugal tem continuum desde 1974; tivesse tido o desfecho oposto e, em vez do 25 de Novembro que quase ninguém evoca, actualmente haveria uma outra data a celebrar, comemorando o restabelecimento da Democracia depois de 1989, consequência do colapso generalizado do comunismo na Europa. Data outra essa que não seria por ser mais recente que o pessoal (cívico) da memória não se esqueceria também dela...

COM OU SEM MAQUILHAGEM

Ainda recentemente, encontrei-me numa fila precedido por uma jornalista da SIC Notícias, uma das pivôs facilmente reconhecíveis por aparecem regularmente no ecrã. Pois bem, confesso que, apesar de todos aqueles minutos de ociosidade que se escoam na caixa de um supermercado a olhar para todo o lado, não a consegui reconhecer sem a maquilhagem! Tanto me intrigou o episódio que pesquisei o assunto na internet, onde descobri por exemplo a jornalista de televisão acima, a australiana Tracey Spicer, que tem feito da questão da maquilhagem em televisão assunto em foco que, quem quiser, pode seguir aqui num vídeo do TEDx. Mas a verdade é que se eu estou a falar aqui de maquilhagem é por analogia.
A analogia estabelece-se comparando como as televisões têm dificuldade em mostrar em estúdio protagonistas que não estejam devidamente retocadas (a ponto de os espectadores nem as conseguirem reconhecer nessas condições) e de como as televisões têm também uma incapacidade congénita em serem genuínas para nos confessarem que não dispõem de qualquer tipo de informação relevante que justifique os aparatos noticiosos: ainda ontem houve um verdadeiro frenesim à volta da detenção de José Sócrates todo o dia, equipas nas ruas, comentadores em estúdio, mas em termos de verdadeiro trabalho de investigação jornalística, o de saber aquilo de que concretamente o acusam, não se sabe rigorosamente nada mais do que (não) se sabia ao princípio...
Um lembrete, agora que a televisão tende a assumir o papel principal também como fonte de informação, de como naquele mundo também se gosta de maquilhar os seus fracassos e impotências.

OS IDIOTAS... E OS IDIOTAS

Recebi a mensagem que não era muito distinta de muitas outras que circulam por aí pela internet. Intitulava-se O Dia Chegou e nela se encadeiam imagens de jovens enfronhados nos seus gadgets em situações em que se esperaria uma qualquer interacção com o meio que os rodeia. Para ajudar à compreensão do leitor (presumo), adicionaram-se umas (duvidosamente necessárias) legendas explicativas.
Após um jogo de sete fotos, em número adequado para criar o ambiente, sobe-se a parada e apela-se ao lado intelectual do leitor recuperando-se uma citação de Albert Einstein: I fear the day that technology will surpass our human interaction. The world will have a generation of idiots – adiciona-se uma tradução para os menos desembaraçados em línguas e concluiu-se que o dia antecipado por Einstein chegou! Depois compete ao destinatário repassar a mensagem aos seus contactos que está muito gira!
Concordo que o fenómeno se pode tornar socialmente confrangedor e não é inédito chamar a atenção para ele mas acontece que a citação de Albert Einstein é apócrifa: ele nunca disse o que lhe atribuem, como se pode constatar facilmente numa rápida consulta na internet. Mas é assim que à idiotia dos das fotos se junta a daqueles que lhes dão popularidade, passando adiante a mensagem. Só falta mesmo inventar outra citação do que Einstein poderá ter dito dessa futura geração de idiotas que teria os melhores meios de sempre para verificar a fidedignidade daquilo que lhes transmitem mas que, por desleixo, preguiça ou idiotia, se dispensa de o fazer. Suponho que nem será preciso a opinião de Einstein para compreender que a idiotia de uma geração também se manifesta pela ausência de espírito crítico.

24 novembro 2014

O HOMEM A QUEM PARECE QUE ACONTECEU NÃO SEI BEM O QUÊ


O que é bom merece ser sempre recordado especialmente quando parece vir a propósito.

JOSÉ SÓCRATES REVISITED


Há uns sete anos (vejam-se estes vídeos de Outubro e Dezembro de 2007), os tempos eram muito diferentes, felizes para José Sócrates, embora o prosseguir da História nos tenha vindo a demonstrar, também pelos seus comentários públicos posteriores (nomeadamente por várias críticas, algumas delas recentes, a declarações de Angela Merkel), que, obcecado pelo tacticismo dos seus objectivos políticos pessoais e de curto prazo, Sócrates nunca terá chegado a conseguir compreender quais eram, e qual seria a melhor forma de defender, os objectos estratégicos do seu país enquanto teve responsabilidades. Quando, no vídeo acima, o vemos a congratular-se por se ter alcançado sob a presidência portuguesa da União um acordo sobre um tratado (o que ficou a ser conhecido por Tratado de Lisboa) cuja assinatura fracassara sob a égide da presidência alemã que a precedera no semestre anterior, ressalta a pergunta óbvia de como é que Portugal e a Alemanha poderiam compartilhar os mesmos interesses na direcção da evolução da União, quando consideradas as suas distintíssimas especificidades nacionais. Ou, como se dizia naquele velho ditado popular hoje ultrapassado pela produção de frangos em aviários, a suspeita de que quando um pobre come galinha é porque algum deles está doente. Sobre tudo o que acima se descreve não tenho quaisquer dúvidas que a História irá condenar José Sócrates. Ela tende a perdoar quem se engana na forma mas não no fundo, como aconteceu por exemplo com Winston Churchill, mas não a Sócrates que, apesar de poder argumentar e defender a forma como governou, se enganou redondamente no fundo. Todavia, sobre o outro assunto - as acusações de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal - que agora enche a informação, mantenho a mesma expectativa prudente que aqui anunciei há dois dias, apesar - ou até mesmo por causa - da acentuação de um frenesim pseudo-noticioso que, pela ausência de substância, nos deveria continuar a deixar indiferentes.

23 novembro 2014

QUANDO FOREM PARA AS RUAS, É MELHOR NÃO AS ESCOLHEREM MUITO AMPLAS NEM DEMASIADO COMPRIDAS...

...No primeiro dia em que António Costa faça aquilo que tanto se tem esforçado por esconder, nesse primeiro dia terá o Bloco nas ruas, foi o aviso deixado este fim-de-semana por João Semedo ao encerrar a Convenção do Bloco de Esquerda. Isso aconteceu após se ter registado uma participação recorde na eleição de delegados a essa Convenção: votaram 2.653 aderentes... Às vezes nem nos damos conta da atenção mediática desmesurada dada a estes eventos que envolveram uma participação correspondente a ⅓ da assistência alcançada num espectáculo musical dado por uma estrela popular (Tony Carreira) num estádio de província (em Leiria).  Refira-se, a complementar, que o mesmo António Costa, acima ameaçado por João Semedo, foi eleito como secretário-geral do PS também este fim-de-semana, mas com cerca de 23.000 votos dos militantes socialistas. Não sendo impressionante, pelo menos é o triplo dos fãs da região de Leiria de Tony Carreira...

A DIFERENÇA ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO HISTÓRICA


Tomorrow belongs to me é uma canção que foi composta propositadamente em jeito de hino germânico em 1966 para o espectáculo musical Cabaret que veio a estrear nesse mesmo ano na Broadway. Seis anos depois a canção adquiriu uma popularidade acrescida através do filme homónimo de Bob Fosse. O sucesso da cena acima, como metáfora da adesão progressiva dos alemães aos ideais nazis, fez com que o suposto hino alemão seja frequentemente referenciado e tido mesmo por legítimo e contemporâneo do período que a peça pretende retratar, e que os seus autores sejam até acusados de simpatias pelo nazismo, num anacronismo improvável considerado o facto de a dupla de autores, John Kander e Fred Ebb, serem ambos de ascendência judaica. Sendo um erro frequente, torna-se mais embaraçoso ver uma historiadora qualificada como Irene Pimentel (ainda mais quando reputada como especialista daquele período da História) prestar-se ao equívoco de dar a entender que tomou o hino nazi de Kander e Ebb por genuíno quando escreve num blogue que (no) caso (do hino) o resultado foi o assassinato de milhões de seres humanos. Não se negando o desfecho, a relação causal expressa é, como se explicou, improvável, considerando que a canção só foi composta mais de 20 anos depois do Holocausto... O comentário só fará sentido se se tomar a ficção histórica por História, algo que uma historiadora como Irene Pimentel deveria saber distinguir.

22 novembro 2014

COMO SE ESQUECEM RECATADAMENTE AS EXPRESSÕES DE ANTI-SEMITISMO NOS PAÍSES VERDADEIRAMENTE CIVILIZADOS

Fotografia feita na Suécia pouco antes ou durante a Segunda Guerra Mundial. No cartaz afixado à porta desta livraria pode-se ler: Proibida a entrada a judeus e meios-judeus. Mesmo nesses anos difíceis a Suécia permaneceu uma verdadeira democracia (abaixo, as eleições de 1936), o proprietário exerceria a sua prerrogativa de reservar o direito de admissão no seu estabelecimento comercial (como então era corrente), mas não deixa de ser significativo como a sanção social da evoluída sociedade sueca não chegaria para o inibir de exibir assim tão ostensivamente as suas convicções – sabe-se lá se com prejuízo ou benefício da sua actividade comercial.
Embora a população judia na Suécia fosse diminuta (mesmo contando com o influxo adicional dos refugiados fugidos da Alemanha depois de 1933, o objecto do protesto do cartaz abaixo, a comunidade judaica na Suécia representaria no máximo umas 10.000 pessoas, o equivalente a cerca de 1 para 650 habitantes), o anti-semitismo mostrar-se-ia um sentimento suficientemente forte para despertar avisos como o inicial ou cartazes como o abaixo. Episódios posteriores como o resgate da comunidade judaica dinamarquesa (cerca de 8.000 pessoas) a partir do Outono de 1943 serviram para anular um comportamento que registou períodos muito mais equívocos do que aquilo que a historiografia oficial sueca gostaria de deixar transparecer.

É PRECISO É CALMA!

A propósito da detenção de José Sócrates só gostaria de deixar a opinião que esta é uma daquelas ocasiões em que o fervor jornalístico em ir mantendo os clientes entretidos pode não corresponder à existência de informação relevante. Como alguém que conheço repete à exaustão: o que é preciso é ter calma!  

21 novembro 2014

A FRANÇA, CADA VEZ MENOS «ETERNA»

Ainda no seguimento da coscuvilhice pela actividade sentimental do presidente francês e do sucesso alcançado pelo livro de Valérie Trierweiler, mencionado mais abaixo, permitam-me reforçar a impressão de que, por causas mais graves que o (in)cumprimento da disciplina orçamental da União Europeia, estão a forçar a França está a deixar de ser a França eterna. Na edição de hoje (21 de Novembro) de uma revista de mexericos denominada Voici, o furo jornalístico (scoop) são as (primeiras!) fotografias de François Hollande com Julie Gayet, a outra que serviu de detonador à vocação literária despeitada de Valérie. As fotografias parecem ter sido sacadas com aquelas tele-objectivas de paparazzi no palácio do Eliseu. Ora a França orgulha-se de ter um património de privacidade dos seus presidentes que é único: que outro país teve um a morrer nos braços da amante, nunca se saberá se mais em flagrante (Félix Faure)? Onde é que é possível que toda a comunicação social se disponha a encobrir durante catorze anos a existência de duas famílias (oficial e oficiosa) à volta de um outro (François Mitterrand)? Ou então tratar com cumplicidade simpática a destreza sexual – cinco minutos, incluindo o duche – de um terceiro (Jacques Chirac)? Uma revista como Voici nada tem a ver com este património imaterial e fotos como as que exibe serão mais uma expressão da descaracterização da França, a tal, verificada nos últimos 40 anos e de que Zemmour se queixa, e que mobiliza cada vez mais eleitores para votar na Frente Nacional. Há que perceber que estes aspectos de como se noticiam assuntos de saias são mais identitários do que ter hispano-suíços naturalizados (Valls) a governar o país: a velha França teve um italiano naturalizado (Mazarino) a governá-la por dezoito(!) anos no Século XVII e hoje isso é um pormenor da História. Mas estas coisas de costumes, quando importadas do outro lado do canal, são graves. Já há muitos franceses a preferirem digerir com um whisky em vez de um calvados ou de um armagnac. E qualquer dia, ainda se considerará grosseiro molhar o pão no café do pequeno-almoço.

A PROPÓSITO DE ALGUNS ANTIGOS PROFESSORES QUE TODOS NÓS TIVEMOS


No jantar anual dos correspondentes na Casa Branca de 2012, o apresentador da cerimónia, Jimmy Kimmel, aproveitou a ocasião dos agradecimentos finais para dedicar um em especial ao seu antigo professor de História, o senhor Mills, que antecipara quanto ele não iria chegar longe se continuasse a armar confusão nas suas aulas¹. Chegado aqui, Jimmy anunciou que ia trocar uma saudação calorosa (o exuberante high five) com o presidente dos Estados Unidos, para depois rematar: - Embrulha lá, oh Mills! (Eat it, Mills!)

Quando dos jantares de confraternização de ex-alunos e com o passar do tempo parece haver uma tendência para dulcificar o passado, perdendo-se com a idade não apenas a irreverência inata ao passado que se evoca, mas até a própria verdade sobre aquilo que aconteceu. Espero que, a propósito de um evento desse género hoje, onde não poderei estar presente, se consiga fazer a distinção entre não querer mal a alguns antigos professores e continuar a considerá-los as bestas que nunca deixaram de ser.

¹ I also want to thank Mr. Mills, my (…) high school history teacher, who said I’d never amount to anything if I kept screwing around in class.

MODERNICES COM MAIS DE CINQUENTA ANOS

O que quero realçar com esta fotografia é a nossa duplicidade de critérios quando, leigos, classificaremos de moderno o arrojo arquitectónico deste terminal de aeroporto (ao fundo sobressaem por detrás dos edifícios duas caudas de aviões comerciais), antes de repararmos na indumentária das pessoas à vista - nomeadamente aquele que ainda anda de chapéu! - e no design dos automóveis, que remetem a data da fotografia para mais de uns cinquenta anos atrás. A maioria de nós - e incluo-me nessa maioria - não percebe nada de arquitectura e se, no tempo em que esta obra foi moderna, havia vergonha em excesso em exprimir o que se pensava, actualmente, ao ler-se o desassombro de como se opina por aqui na internet, passou-se para o extremo oposto. O autor da foto foi Ezra Stoller.

20 novembro 2014

OS «BESTSELLERS» DE OUTONO DE UMA FRANÇA COSCUVILHEIRA E IRRITADA

A França assistiu este Outono à eclosão de dois bestsellers inconvenientes. Primeiro, em princípios de Setembro foi o lançamento do de Valérie Trierweiler, Merci pour ce Moment, aquilo que a ex-companheira do presidente Hollande terá para contar sobre a sua vida em comum e mais o processo de separação. Houve quem encomendasse sondagens que mostraram a existência de uma maioria que desaprovava a publicação do livro mas a minoria mostrou-se indiferentemente coscuvilheira: só nos primeiros quinze dias após o lançamento venderam-se mais de 400.000 exemplares, hoje essa marca está em muito ultrapassada, hoje escreve-se que Valérie Trierweiler se tornou milionária à conta do livro. A seguir, em princípios de Outubro, foi o lançamento de Le Suicide français, um ensaio de um jornalista de ascendência argelina e judaica, conhecido pelas suas opiniões controversas próximas da extrema-direita, chamado Éric Zemmour. Sobre o conteúdo deste não se fizeram sondagens, mas tornou-se evidente – sobretudo pela recepção mediática – quanto ele chocou contra o establishment político-cultural francês, ao qual deixará, de resto, violentas críticas. E, sendo a outra cusca, há no caso deste livro uma outra minoria (que neste caso não se sabe se é a mesma e se é mesmo minoritária) que adora ver as elites francesas a serem descascadas pela forma como terão conduzido a França nos últimos 40 anos. Contudo, ao contrário do que aconteceu com o bestseller precedente, o ritmo das vendas deste terá vindo a progredir em crescendo, desde os 5.000 exemplares diários dos primeiros dias até aos 17.000 exemplares de finais de Outubro. A meta das vendas de Le Suicide francais já se situa em igualar senão mesmo ultrapassar Merci pour ce Moment. Tudo isto não passará de mera curiosidade editorial se no futuro próximo nada de significativo ocorrer em França. No caso improvável de algo ocorrer, como uma eclosão de nacionalismo antieuropeu, estes dois livros até poderão vir a ser encaixados na História como exemplos premonitórios da vontade dos franceses, como cá se fez com Portugal e o Futuro, por ter sido publicado dois meses antes do 25 de Abril.

...EM CIMA E POR DEBAIXO DA MESA

Cansado do bordão de linguagem tornado cansativamente recorrente dos problemas (e correlacionados) que estão sempre em cima da mesa¹, quero fazer votos que as revelações que vão surgindo a propósito (como esta, acabada de sair, que também o chefe de gabinete de Miguel Macedo metia umas cunhas) do escândalo dos vistos gold sejam uma oportunidade para arejar a expressão por debaixo da mesa, de uma sintaxe igualmente bonita e muito pertinente para a ocasião.

¹ Exemplo típico do uso e abuso social da expressão nos dias que correm, socorro-me de uma vulgar notícia no Diário de Notícias onde se lê no primeiro parágrafo: Em resposta à escassez de químicos para injeções letais por boicote de empresa europeia que é contra a pena de morte, o estado do Utah, EUA, coloca em cima da mesa o fuzilamento de condenados. Ora os fuzilamentos costumam ser ao ar livre, o pelotão dispara de pé, o condenado costuma estar também de pé, outras vezes está sentado, e aí será preciso uma cadeira, mas mesas é que não são mesmo precisas.

19 novembro 2014

AS PANTUFAS DE SANTOS E PECADORES

Convencionou-se que fotografar alguém de pantufas equivale a fotografá-lo na intimidade. Albert Einstein (1879-1955) disputará com não mais que uma meia dúzia de concorrentes representar a benignidade da primeira metade do Século XX, um brilhantismo intelectual acompanhado de uma irreverência que, na sua mais famosa fotografia, o chega a infantilizar. Em contraste, Adolf Eichmann (1906-1962) estará na outra short-list, a da malignidade desse mesmo período, distinção a que não é indiferente o facto de ser um dos raros casos em que a maldade foi judicialmente sancionada, como imporia a Moral, se vivêssemos num Mundo perfeito. Einstein olha francamente para a objectiva, sentado num alpendre num dia que até nem parece muito frio ao ponto de justificar as pantufas, com um sorriso que nada pode desarmar, nem sequer o aspecto ridículo, felpudo, das ditas que o fazem parecer ter as patas de um elefante. As pantufas mais convencionais, caseirinhas, de Eichmann porém, parecem existir para o ajudar a expiar os seus pecados quando da sua detenção em Israel (note-se o arame farpado). Imerso nos seus pensamentos, Eichmann nem olha para a câmara mas também não parece resignado ao seu previsível destino, simbolizado pela cadeira vazia em primeiro plano, que ele preferiu ignorar.

UMA GRANDE FOTOGRAFIA DE PROPAGANDA – no exército errado e durante o conflito errado.

Rommel compartilhará com Montgomery, Eisenhower, MacArthur ou Patton, o privilégio de ser um dos generais mais fotografados da Segunda Guerra Mundial. Esta fotografia acima será uma das que lhe foram tiradas quando do seu comando do Afrika Korps (1941) só que, pelos padrões actuais da promoção de imagem, parece ser quase boa demais para não ter sido encenada. A verdade é que a fotografia foi mesmo casual e até acabou por desaparecer anónima e sem valor entre as centenas publicadas promovendo Erwin Rommel. Para a cultura elitista prevalecente entre a Wehrmacht alemã não era de valorizar a imagem de generais próximos do povo, capazes de arregaçar mangas para desatascar o seu próprio automóvel. Um general distinguia-se por comandar. Mal sabiam eles que dali por 60 anos, até os presidentes jantariam com os soldados...

18 novembro 2014

SOBRE A IMPORTÂNCIA IMAGINÁRIA OU REAL DA DURAÇÃO DE UMA VOLTA AO MUNDO

Nos tempos em que as obras de Jules Verne eram populares podia-se afirmar que, quem as tivesse lido (ou mesmo talvez tendo apenas visto o filme), saberia seguramente quem tinha sido Phileas Fogg, o excêntrico cavalheiro inglês fleumático que ganhou a aposta de dar uma volta ao mundo em (apenas) 80 dias. Publicada originalmente em formato de folhetim entre Outubro e Dezembro de 1872 no jornal parisiense Le Temps, o protagonista da obra A Volta ao Mundo em 80 dias nunca foi mais nada senão o produto da imaginação de Verne. Em contrapartida, em tempo algum o nome de Elizabeth Cochrane, ou o seu pseudónimo jornalístico de Nellie Bly, chegou a alcançar a notoriedade do de Fogg. Contudo, a jornalista Nellie Bly existiu mesmo e, não tendo sido original (nesta ideia...), teve ao menos o mérito de realizar, dezassete anos depois da simulada por Verne e patrocinada por um jornal nova-iorquino (New York World),...
...uma volta ao mundo semelhante à de Verne, mas completada em 72 dias. O folhetim da proeza – desta vez real – foi também vertido para livro. Mas já não se tratava da mesma coisa. Apesar de Nellie Bly ter feito aquilo que apenas se imagina que Phileas Fogg teria feito, o que a longínqua antecessora de Cândida Pinto realizou não passara de um mero degrau suplementar num indicador adequado para avaliar o progresso técnico e o grau da Globalização: até ao começo da Primeira Guerra Mundial em 1914, vários viajantes trouxeram o record até metade da duração da viagem de Nellie: 36 dias; e depois da guerra, com o desenvolvimento da aviação, a competição acabou por perder o sentido. Quando em 1989 Michael Palin ressuscitou uma série documental de viagens intitulada precisamente A Volta ao Mundo em 80 dias, a duração da mesma tornara-se irrelevante, o prazer residia todo em comentar os locais por onde se passava...

UMA CASA PORTUGUESA E «UNA MACCHINA ITALIANA»


Nunca se sabe quais são as intenções – se as houver... – dos criativos da publicidade mas não deixa de se registar pela curiosidade a escolha pelos publicitários da FIAT da música Uma Casa Portuguesa como banda sonora deste anúncio ao pequeno FIAT 500, anúncio esse que se percebe concebido especificamente para o público italiano. É possível datá-lo entre 1957 e os primeiros anos da década seguinte, o crepúsculo do salazarismo em Portugal, e permita-se a especulação se a imagem que se pretende transmitir associada simultaneamente aos dois produtos seria a de simpatia, economia e/ou modéstia?...

17 novembro 2014

O CASO SALENGRO

A demissão de ontem de Miguel Macedo da pasta da Administração Interna, e a aprovação generalizada como foi registada essa demissão lembrou-me, por uma daquelas coincidências bizarras, o Caso Salengro cujo desfecho ocorreu precisamente há 78 anos. Roger Salengro (1890-1936) foi um longínquo homólogo de Miguel Macedo naquela mesma pasta (que em França é designada por Ministério do Interior). Político socialista, veio a ocupá-la como membro do governo da Frente Popular (composta por socialistas, radicais e comunistas) que, presidido por Léon Blum, se formou em Junho de 1936. Escassos meses depois, começou uma campanha na imprensa da direita totalitária,...
...no L’Action Française e no Gringoire acusando-o de ter desertado e de se ter deixado aprisionar em 1915, quando soldado na Primeira Guerra Mundial. Houve um desmentido técnico: uma comissão presidida pelo general Maurice Gamelin, que era então o Chefe de Estado-Maior do Exército reexaminou as actas dos Conselhos de Guerra de então e que concluiu que Salengro, que fora julgado como contumaz em 1916 quanto à acusação de deserção, fora absolvido da acusação. Houve também um desmentido político: submetido a votação, o parlamento francês pronunciou-se de forma esmagadora (427 votos em 530, ou seja 80%, uma maioria muito mais expressiva do que a que a Frente Popular possuía) pela falta de fundamento às acusações a Roger Salengro.
Todavia, tudo isso não terá chegado para desarmar a oposição nacionalista de direita. Deprimido por uma recente viuvez (1935), massacrado por episódios de rua em que era insultado, Salengro acabou por se suicidar em sua casa em 17 de Novembro de 1936, deixando duas cartas-testamento, uma pessoal, outra política. O gesto, pelo ultraje que causou na opinião pública, acabou por provocar uma enorme cambalhota política em prol da esquerda. A imagem de Roger Salengro tornou-se posteriormente intocável. O nome tornou-se recorrente na toponímia francesa (acima). E numa hipocrisia indecente, vê-se neste penúltimo cartaz a própria Frente Nacional, herdeira ideológica de todos aqueles que lhe fizeram a vida negra,..
...a querer reclamar-se da sua herança numa campanha eleitoral recente, a de 2009. Mas este é só mais um episódio de uma longa história de hipocrisias associada à figura tornada impoluta de Roger Salengro: na época do seu suicídio, ninguém terá batido o L’Humanité, o diário dos comunistas franceses, na cobertura das manifestações de pesar e de indignação do seu funeral (abaixo, parte da capa da edição de 23 de Novembro de 1936); havia-se esquecido que haviam sido os comunistas a desenterrar originalmente o caso da suposta deserção de Salengro, quando comunistas e socialistas ainda se disputavam violentamente para ver quem alcançava a supremacia na esquerda francesa, em 1923.
Tempos distintos estes, em que já damos por bem um ministro por se demitir e onde nem sequer imaginamos o que seriam as consequências de um que se suicidasse...