A demissão de ontem de Miguel Macedo da pasta da Administração Interna, e a aprovação generalizada como foi registada essa demissão lembrou-me, por uma daquelas coincidências bizarras, o Caso Salengro cujo desfecho ocorreu precisamente há 78 anos. Roger Salengro (1890-1936) foi um longínquo homólogo de Miguel Macedo naquela mesma pasta (que em França é designada por Ministério do Interior). Político socialista, veio a ocupá-la como membro do governo da Frente Popular (composta por socialistas, radicais e comunistas) que, presidido por Léon Blum, se formou em Junho de 1936. Escassos meses depois, começou uma campanha na imprensa da direita totalitária,...
...no L’Action Française e no Gringoire acusando-o de ter desertado e de se ter deixado aprisionar em 1915, quando soldado na Primeira Guerra Mundial. Houve um desmentido técnico: uma comissão presidida pelo general Maurice Gamelin, que era então o Chefe de Estado-Maior do Exército reexaminou as actas dos Conselhos de Guerra de então e que concluiu que Salengro, que fora julgado como contumaz em 1916 quanto à acusação de deserção, fora absolvido da acusação. Houve também um desmentido político: submetido a votação, o parlamento francês pronunciou-se de forma esmagadora (427 votos em 530, ou seja 80%, uma maioria muito mais expressiva do que a que a Frente Popular possuía) pela falta de fundamento às acusações a Roger Salengro.
Todavia, tudo isso não terá chegado para desarmar a oposição nacionalista de direita. Deprimido por uma recente viuvez (1935), massacrado por episódios de rua em que era insultado, Salengro acabou por se suicidar em sua casa em 17 de Novembro de 1936, deixando duas cartas-testamento, uma pessoal, outra política. O gesto, pelo ultraje que causou na opinião pública, acabou por provocar uma enorme cambalhota política em prol da esquerda. A imagem de Roger Salengro tornou-se posteriormente intocável. O nome tornou-se recorrente na toponímia francesa (acima). E numa hipocrisia indecente, vê-se neste penúltimo cartaz a própria Frente Nacional, herdeira ideológica de todos aqueles que lhe fizeram a vida negra,..
...a querer reclamar-se da sua herança numa campanha eleitoral recente, a de 2009. Mas este é só mais um episódio de uma longa história de hipocrisias associada à figura tornada impoluta de Roger Salengro: na época do seu suicídio, ninguém terá batido o L’Humanité, o diário dos comunistas franceses, na cobertura das manifestações de pesar e de indignação do seu funeral (abaixo, parte da capa da edição de 23 de Novembro de 1936); havia-se esquecido que haviam sido os comunistas a desenterrar originalmente o caso da suposta deserção de Salengro, quando comunistas e socialistas ainda se disputavam violentamente para ver quem alcançava a supremacia na esquerda francesa, em 1923.
Tempos distintos estes, em que já damos por bem um ministro por se
demitir e onde nem sequer imaginamos o que seriam as consequências de um que se
suicidasse...
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