31 julho 2020

COMO COMBATER INCÊNDIOS COM BEBIDAS ALCOÓLICAS

31 de Julho de 1820. A meio da noite declara-se um fogo num dos armazéns do bairro de Bercy em Paris. Com o fogo a alastrar e apesar da proximidade do Sena, o facto de se estar no pino do Verão fez com que a água começasse a faltar nos engenhos. Foi nessa altura que, dado o facto que, à época, proliferarem por Bercy os armazéns, nomeadamente os de vinho, uma mente mais criativa se lembrou de recorrer ao vinho armazenado nas pipas para combater o incêndio. Quanto ao sucesso dos bombeiros e do emprego de vinho para combate a incêndios, pouco reza a história. O que se sabe é que pelo menos um hectare de prédios de habitação foi destruído pelo fogo. Muitas centenas de pessoas ficaram desalojadas. Mas quanto a queixas a respeito dos prejuízos comerciais, houve-as de 610 proprietários grossistas de vinho que naquela noite haviam contribuído compulsoriamente para a formação de um grande lago de vinho de 15 metros de diâmetro e um bom meio metro de profundidade, onde os engenhos se vieram abastecer durante o combate ao sinistro. Com as queixas, também a qualidade do vinho derramado ganhou dimensões inesperadas: uma estimativa inicial de prejuízos de três milhões, passou para os dez, para vir a ser finalmente fixada em quatorze milhões. Quase cento e cinquenta anos depois, Goscinny reaproveitou a história para Lucky Luke, situando-a no Oeste americano e usando dessa vez a cerveja em vez do vinho (acima).

30 julho 2020

O PRIMEIRO CAMPEÃO DO MUNDO DE FUTEBOL

30 de Julho de 1930. No jogo da final do primeiro campeonato mundial de Futebol, disputado em Montevideu no Uruguai, a selecção do país anfitrião bate a da Argentina por 4-2. O Uruguai era então uma selecção reputadíssima: havia-se sagrado campeão olímpica em 1924 em Paris e em 1928 em Amesterdão, neste último caso numa final onde vencera a mesma Argentina por 2-1.

CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA FOTOGRAFIA QUE PECA PELO COMPORTAMENTO DA SUA EXTREMA DIREITA

Berlim, Agosto de 1936. Esta seria uma das melhores fotografias para ilustrar Adolf Hitler e os dignitários nazis a assistir, presidindo, aos Jogos Olímpicos... não fosse a atitude como é apanhado Herman Göring no extremo direito da imagem, atrasado na saudação e displicente na facécia que se reserva para dizer a Goebbels que está a seu lado. O resultado é um instantâneo em que a segunda figura do Reich parece estar a fazer uma careta, com a mão direita atravessada à frente do nariz! Não ficava bem em qualquer regime, fica particularmente mal num que se leva tão a sério como a Alemanha nazi, e a fotografia teria feito companhia a tantas outras fotografias falhadas, não fosse 1945. Mas a fotografia contém uma ironia final: o facto de o seu ponto fraco se situar precisamente na extrema direita da imagem, parece sugerir que um regime de extrema-direita possa ser frágil... pelo comportamento da sua extrema direita.

29 julho 2020

...E PORQUE AS CONVERSAS SÃO COMO AS CEREJAS...

...vale a pena recordar que, há coisa de dois anos e meio, um dos participantes naqueles programas agora proscritos por «toxicidade», resolveu montar um gag cómico à volta do tema «mercearia», exibindo um conjunto de artigos diante de si, em pleno programa, com as cores do seu clube de futebol lá por trás. Mal sabia ele que no futuro - este mês! - o próprio presidente dos Estados Unidos conferiria ao seu gesto paródico uma outra dignidade, quando se deixou fotografar a fazer precisamente o mesmo na sua secretária da sala oval da Casa Branca, bandeira e estandartes lá atrás também. Nesta perspectiva, quando ele se consagra como um percursor visionário, esta é uma altura particularmente injusta para tirar Manuel Serrão do ar. Isso, ou então há que enviar Ricardo Costa e os seus homólogos da TVI e RTP à América, para convencerem as TVs locais a cancelarem Donald Trump, por «toxicidade»...

«ONDE É QUE TU ESTAVAS NO 25 DE ABRIL?...»

A famosa pergunta popularizada (acima) por Artista Bastos tem, para mim, um sentido mais profundo do que aquele que normalmente nos faz sorrir, que parece uma simples pergunta de velhos, entre velhos. Saber onde se estava no 25 de Abril também tem a ver com uma lição de vida sobre o sentido de timing político. Em política, nunca se pode ter razão muito antes do tempo, mas também não se pode chegar demasiado atrasado às grandes mudanças de opinião. Perguntar onde o interlocutor estava na data, como o fazia o Artista Bastos, era, para mim, sobretudo uma forma dissimulada de testar o entrevistado, seleccionar quem esperara pelo próprio dia 25 de Abril para se atrever a mudar de opinião, para identificar aqueles que ficaram então conhecidos como os oportunistas, os que haviam sido os vira-casacas de última hora.
Como aconteceu com o 25 de Abril original, também este foi precedido de intentonas (em 2010 ou em 2014) mas o 25 de Abril definidor e denunciador da sordidez e do mau gosto comentário futebolístico aconteceu, para mim, no dia 17 de Outubro de 2016, por ocasião do momento abaixo, num programa da TVI. Mas, mais significativo do que o momento, foi o que se lhe sucedeu depois: nada. Nenhum dos protagonistas daquela peixeirada foi instado a abandonar o programa pela figura que fizera, a que se seguiram muitas outras, como aliás eu chamei a atenção aqui no Herdeiro de Aécio, três meses depois. Aparecer agora, anos e anos depois de todas estas porcarias, um Ricardo Costa, ingénuo, mais os seus homólogos dos canais rivais, a invocarem uma suposta «toxicidade» como pretexto para acabar com aquela vergonha é, não apenas muito depois do 25 de Abril, é tão depois do 25 de Abril que se torna num insulto à nossa inteligência. Que se assumam e que sejam eles a chafurdar no conteúdo daquilo que emitiam...

A CONTESTAÇÃO AO REGRESSO DE LEOPOLDO III DA BÉLGICA


29 de Julho de 1950. A edição daquele dia do Diário de Lisboa conferia um destaque de primeira página à situação na Bélgica onde, após cinco anos de exílio voluntário, o rei Leopoldo III acabara de regressar, legitimado por um referendo que tivera lugar em Março daquele ano. E não fora nada bem recebido... O conteúdo da notícia do Diário de Lisboa (que se pode ler no fim do poste) revela-se, a esta distância temporal de 70 anos, mais alarmista do que esclarecedor. Como dali se pode concluir, há uma caracterização política no movimento daqueles que se opõem ao retorno do monarca ("socialistas e liberais", como o descreve o jornal), mas há sobretudo uma caracterização regional e cultural, e essa o jornal mal a aflora. Como se percebe facilmente pelo mapa abaixo, com os resultados do referendo de Março, destaca-se ali nitidamente uma mancha vermelha que se opusera ao retorno de Leopoldo III, mancha essa que se centra à volta da região francófona da Valónia. No computo global, o retorno do rei fora aprovado por 57,7% dos votantes, mas os resultados haviam sido díspares, se contados entre a comunidade flamenga (72%) e a comunidade valã (42%). O regresso do rei fora rejeitado, ainda que tangencialmente, na própria capital, Bruxelas (48%). Havia mais do que uma razão para a objecção dos valões a Leopoldo III, mas disso já eu falei num outro poste, onde aproveitei para rematar o desfecho desta história - a renúncia de Leopoldo III em seu filho em 31 de Julho, seguida da abdicação formal a 15 de Julho de 1951. Mas há uma lição que se pode extrair destes acontecimentos de há 70 anos: é que a aritmética dos resultados eleitorais tem que ser apreciada com muito atenção quando o assunto político em causa é o da viabilidade de um monarca: o retorno de Leopoldo III foi legitimado por uma maioria absoluta (57,8%). Porém essa maioria era heterogénea. Para além disso, aqueles que se opunham ao seu regresso, não gostavam mesmo nada dele. E quando isso acontece, o papel de qualquer rei perde o sentido. E quem rodeava Leopoldo III ter-lhe-á explicado isso. E é por isso que não estarei a ser propriamente visionário quando antecipo enormes dificuldades para o futuro de Filipe VI no trono espanhol: qualquer visita que o monarca espanhol faça à Catalunha tornou-se num desastre de relações públicas, protagonizado por aqueles que agora tomaram o rei como a corporização do centralismo castelhano. Como acontecia na Bélgica, um rei parcial de um país dividido, não serve para nada.

«Bruxelas, 29 – Numa atmosfera quase de revolução, o Gabinete católico da Bélgica, constituído por partidários do rei Leopoldo, decidiu ontem á noite fazer esforços para chegar a um compromisso com os adversários não comunistas do soberano – os socialistas e os liberais. Esta informação foi hoje dada de origem autorizada. Durante a sessão do Conselho de Ministros, estes concordaram em que devem recomeçar negociações entre os três grandes partidos do país. O chefe do Governo, Jean Duviesart, falando pela rádio, apelou para o «senso comum» do povo e anunciou que o rei deseja conferenciar com os representantes dos vários partidos políticos para poder com toda a imparcialidade encarar as medidas para «promover uma política de união». Mas avisou que isto só se pode conseguir «na calma e dignidade» e disse aos amotinados que os actos de sabotagem seriam energicamente punidos. Nos círculos políticos declara-se que as negociações entre católicos e os socialistas e liberais conduziram quase a um acordo na base de que Leopoldo delegaria as suas funções durante um certo período em seu filho, o príncipe Balduíno. Isso foi, porém, antes dos partidários do rei terem obtido a maioria em ambas as Casas do Parlamento, do que resultou o regresso de Leopoldo a Bruxelas. A situação em todo o país era hoje caótica. O movimento da greve geral – que partiu da zona industrial da Valónia – espalhou-se pelo país, paralisando a vida de cidade para cidade e esta manhã ameaçava envolver o grande porto de Antuérpia. Os actos de violência são ainda raros e as cenas quase revolucionárias nas ruas de Bruxelas limitaram-se a gritos subversivos. Mas o perigo aumentou durante a noite. Todas as estradas e linhas férreas que conduzem á capital estão cheias de manifestantes da região da Valónia de língua francesa, que avançam. Obedecendo ao apelo para a greve da Federação Geral do Trabalho, milhares e milhares de operários inactivos percorrem as ruas e praças de Bruxelas proferindo gritos contra o rei e procurando encontrar quem quer que se atreva a levantar a sua voz em favor do monarca. A atitude de expectativa era ainda hoje a ordem das autoridades. As forças de polícia ainda não fizeram fogo, mas o estado de espírito dos agentes da autoridade agrava-se depois de uma semana de quase contínua tensão (Reuter).»

28 julho 2020

ENTRADA EM VIGOR DA LEI VOLKSWAGEN

28 de Julho de 1960. Começando por algo completamente diferente, reconheça-se que os alemães têm uma grande vantagem moral sobre nós, portugueses, que temos a mania que nos desenrascamos a falar línguas dos outros. A verdade crua é que a língua deles, alemães, desmoraliza-nos logo nas tentativas lusas de arranhar o idioma. Senão vejamos em concreto: não há português desenrascado, nem sequer um Zezé Camarinha poliglota treinado por muitos verões algarvios, que se atreva a dar uma ideia do que é que consiste a seguinte frase: «Gesetz über die Überführung der Anteilsrechte an der Volkswagenwerk Gesellschaft mit beschränkter Haftung in private Hand». (A não ser que saiba alemão e isso é batota para este teste).

É o título oficial de uma lei. Que entrou em vigor há precisamente 60 anos, quando a Volkswagen foi privatizada e transformada numa sociedade por acções. Esta lei, costuma ser referida pela alcunha abreviada (carinhosa?) de VW-Gesetz. Explicando os seus propósitos em termos necessariamente simplificados, essa lei estabelecia que nenhum accionista podia exercer mais de 20% dos direitos de voto na empresa VW, mesmo que detivesse um valor superior de acções. Na época em que foi promulgada, o objectivo do sector público era reter a influência sobre este importante fabricante de automóveis, uma vez que no processo de privatização se concedera ao estado federado da Baixa Saxónia uma minoria de bloqueio, ou seja, um direito de veto em todas as decisões importantes da empresa, através de uma participação qualificada de 20,2% do capital da VW.

Mas o significado principal do gesto, que justifica esta evocação 60 anos depois, foi político. Numa Alemanha (Ocidental) que ressurgia, economicamente cada vez mais pujante, quinze anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a promoção dada a este aspecto social de quem detinha o capital das grandes empresas, conferia ao capitalismo da Alemanha reconstruída características híbridas entre os interesses privados e o interesse público. Pelo menos, essa era a aparência e foi a partir disso que se construiu uma reputação... Mas é uma fama sem proveito: em contraste com a VW, comprove-se que há outros construtores automóveis alemães que assumiram uma estrutura de capitais bem mais convencional, como sempre foi o caso das participações da família Quandt na BMW. Mas a fama é o que interessa. Esta VW-Gezetz aguentou-se por quase meio século mas veio a ser atacada pelas regras do capitalismo muito mais liberal da União Europeia em 2007; o contra-ataque do governo alemão demorou uma meia dúzia de anos de batalhas legais até se encontrar uma nova situação revista que fosse satisfatória para as partes.

ALBERTO FUJIMORI - UM EXÓTICO NIPÓNICO NA PRESIDÊNCIA DO PERU

28 de Julho de 1990. Nesse ano e nesse dia, o Peru ganhou destaque no noticiário internacional por causa da tomada de posse de Alberto Fujimori como presidente. Já a disputa eleitoral, por sinal de um cariz democrático não muito comum na América do Sul, se revelara interessante para os observadores internacionais, não por causa de Fujimori, mas por causa do seu mais directo rival, o escritor - mais tarde vencedor do Prémio Nobel - Mário Vargas Llosa. Mas, se era Llosa que concitava as atenções da opinião publicada, foi Fujimori, o underdog, que ganhou. Saliente-se que a história de Fujimori até nem era nada de desinteressante do ponto de vista jornalístico: filho de dois imigrantes japoneses, era o primeiro político sul-americano daquela origem a alcançar proeminência, num continente onde eles, japoneses e seus descendentes, não são muitos. E, considerada a reputação de eficácia nipónica e por um racismo daqueles menos convencionais (os japoneses são uma espécie de "brancos honorários"), esperava-se então qualquer coisa com Fujimori à frente dos destinos de um país como o Peru. Era uma ideia interessante e exótica, mas revelou-se uma desilusão: um golpe à legalidade constitucional dois anos depois, dez anos de poder que acabaram em eleições forjadas, num exílio forçado, em acusações e em julgamentos por desrespeito pelos direitos humanos e por corrupção, Alberto Fujimori ainda hoje está preso.

27 julho 2020

VERSÃO PRÁTICA DE «TÉCNICA DO GOLPE DE ESTADO», AO ESTILO CARIBENHO

27 de Julho de 1990. Ocorre um golpe de estado em Trinidad e Tobago, um discreto país caribenho exportador de petróleo, com 5.131 km2 e habitado, à época, por 1.125.000 habitantes. O curioso é a identidade dos golpistas. Não os militares que tinham a fama (e o proveito) de tais iniciativas por toda a América do Sul e Central (Caraíbas incluídas), mas antes um grupo radical islâmico denominado Jamaat al Muslimeen. O grupo era encabeçado por um antigo polícia chamado Lennox Phillips que adoptara o nome islâmico de Yasim Abu Bakr aquando da sua conversão. Mas o Jamaat al Muslimeen mostrava ser muito mais do que uma organização religiosa. Muito provavelmente financiada pela Líbia desde o seu início em 1982, a organização assumira uma postura combativa contra o tráfego e consumo de droga, adoptando os mesmos métodos de controle das ruas, modelo de gang urbano, embora capeado por um discurso moral. Por várias vezes, a polícia efectuara buscas nas suas instalações, detendo fiéis/militantes e apreendendo armamento. Operando num país onde se usufruía de uma não muito sofisticada mas indiscutível liberdade política, com eleições livres, mas liderado por uma personalidade autoritária como Yassim Abu Bakr, o Jamaat al Muslimeen apresentava-se como uma fascinante combinação entre o fascismo clássico, o gangsterismo urbano e o radicalismo islâmico. Há precisamente 30 anos reuniram-se 114 militantes armados com a intenção de promoverem um golpe de estado. 42 deles foram para o parlamento (conhecido por Red House) e ocuparam-no enquanto estava em sessão, incluindo no espólio o primeiro-ministro e alguns membros do governo que ali se encontravam, espólio esse que guardaram como reféns. Quanto aos 72 restantes membros, esses dividiram-se em dois grupos, com um deles ocupando a única estação de televisão do país, e o outro a estação de rádio pública. A partir daí, alteraram a programação em seu proveito. A escolha das prioridades dos objectivos dos golpistas (elegendo o próprio centro de poder democrático e também os meios de comunicação) faz-nos lembrar as apreciações técnicas do livro «Técnica do Golpe de Estado» do italiano Curzio Malaparte. Só que aqui parece não ter havido qualquer esforço (sucedido) para aliciar as forças militares trinitário-tobagenses. E a desproporção de meios era muito grande. Podemos acima ver Abu Bakr a aproveitar o seu quase monopólio da comunicação, lendo não só o comunicado televisivo anunciando o golpe aos compatriotas, como anunciando a sua intenção de querer negociar com os militares. Um problema é que a sua tomada da Red House não decapitara por completo o poder político. Por exemplo, tanto o presidente Emmanuel Carter, como o ministro da Segurança não se encontravam entre os reféns de Abu Bakr. Esses dirigentes políticos que haviam escapado encabeçaram a reacção ao golpe: o primeiro dos acima mencionados decretou o estado de emergência; o segundo pôde coordenar as negociações com os revoltosos. E um outro problema para os revoltosos, quiçá maior que o anterior, foi a completa falta de simpatia como a sua iniciativa fora acolhida pela população em geral: havia os relatos de pilhagens na capital (abaixo), mas essas manifestações não eram de carácter político; o resto do país permanecia calmo; aliás, o islamismo professo dos insurrectos, pelo contrário, parecia funcionar contra eles, numa população onde apenas 5% dela seguiam aquela confissão. A uma distância de 30 anos é fácil reconhecer que foi precisa uma enorme dose de ingenuidade política - para a não classificar de outro modo mais cruel... - para ter levado esta iniciativa para diante. Sobre o desfecho, resta dizer que, com o tempo a correr contra si e com promessas (mantidas) de leniência, os revoltosos se renderam passados quatro dias (a 1 de Agosto). Mas, para lá dos golpes da lista do livro de Malaparte, este deve contar-se entre os golpes de estado mais estúpidos dos tempos modernos.

A MORTE DE UM DITADOR E A PERPETUAÇÃO NO PODER DE OUTRO

Ainda 27 de Julho de 1970. Precisamente no mesmo dia em que morria Salazar, era notícia um outro ditador de longa duração: Fidel Castro. Na altura ainda o não era, mas viria a ser. Num daqueles comemorações/comícios em que a população cubana era convidada a comparecer em grande número - na notícia da France Press pode ler-se 200.000 pessoas - o ditador cubano pronuncia um dos seus característicos discursos intermináveis em que parece apresentar um acto de contrição sobre os objectivos económicos (não) alcançados por Cuba, depois de 11 anos a ocuparem o poder (1959-1970): «A nossa aprendizagem, de nós os chefes da revolução custou excessivamente caro. Pagamos agora as consequências da nossa ignorância. Valeria mais dizer ao povo que escolhesse um outro chefe ou, o que seria preferível, outros chefes.» Mas Fidel não estava a falar a sério... como se percebia pela continuação: adoptar uma tal atitude «seria hipócrita» porque substituí-lo e aos seus colaboradores mais próximos não solucionaria os problemas actuais do povo cubano. Ou seja, se, por um lado, assumia haver fracassado rotundamente, continuava por outro a considerar ser ele e apenas ele o único cubano com capacidade de saber como se solucionavam os problemas do povo cubano. Claro que Fidel não era hipócrita e se sacrificou para continuar as suas diligências para solucionar os problemas passados e vindouros do povo cubano. À época, não se sabia por quanto tempo mais, mas hoje sabe-se: foram mais 36 anos, até que em Julho de 2006 Fidel transferiu os seus poderes para o seu irmão Raul. É apenas uma coincidência curiosa lembrar a propósito, que também Salazar ocupara o poder por 36 anos (1932-1968). O que não seria curiosa coincidência seria imaginar Salazar a transferir o poder para um seu - hipotético - irmão... Sempre houve nepotismo no fascismo, mas nunca foi tão descarado como no comunismo. 

SOBRE AS CONSEQUÊNCIAS DA MORTE DE SALAZAR

27 de Julho de 1970. Morreu Salazar mas falemos antes das consequências dessa morte. Se repararem, o óbito ocorreu às 9 e 15, a notícia começou a ser difundida ao fim da manhã. Mas, por essa altura, já eu estava na praia que aquele sol da manhãzinha é que fazia bem às crianças. E como felizmente não havia telemóveis, eu e todos os que lá estavam ficámos dispensados de receber as notificações tintinantes e irritantes dos SMS com a novidade que, presumo e como hoje também é comum, também não lhes interessaria nada naquelas circunstâncias. O que é sempre bom: ser-se preservado de saber o que não nos interessa saber. Só fiquei a saber da notícia à hora de almoço. Com o acontecimento, as programações da rádio e televisão tornaram-se uma pesarosa chatice, emitindo interminavelmente música fúnebre por horas, dias a fio, num luto que, sendo oficial, não me parecia socialmente compartilhado, nem quando o era - a minha avó continuava a considerá-lo responsável por nos ter livrado da guerra - era acompanhado nas suas manifestações em excesso. Salazar era um chato, a sua morte ainda mais chata, e é responsável pela leitura de empreitada de uns três ou quatro livros da série abaixo. Nessa perspectiva, a morte de Salazar fez alguma coisa pela Cultura.

26 julho 2020

CONFORME SE ESPREME, ASSIM SAI O SUMO...

Francisco Assis deu uma entrevista ao Público (metade superiora da imagem acima). Mesmo que a entrevistadora tenha sido Maria João Avillez e por isso o teor dominante das perguntas ter sido o que foi, o Observador, ao referir-se a ela (metade inferior da mesma imagem), e apesar de a entrevista ser a mesma, conseguiu encontrar um título que estivesse ainda mais de acordo com os seus desejos: para o Observador não há superlativos suficientemente elogiosos quando o tópico é apreciar a conduta de Pedro Passos Coelho. E por aqui se percebe que a escolha de um título em citação para encabeçar uma entrevista é como o Natal: é quando um homem quiser... e o que um homem quiser.

PARABÉNS JACINDA ARDERN!

26 de Julho de 1980. Jacinda Ardern festeja hoje o seu 40º aniversário. A primeira-ministra neozelandesa tem adquirido, nestes quase três anos que leva do cargo (desde Outubro de 2017), uma projecção e simpatia mediática à escala mundial que vão muito para além da notoriedade do país de que é originária. Quando há mais do que uma biografia do mesmo político (acima), é porque houve uma delas que não foi certamente encomendada (como o foram por cá as de José Sócrates e Pedro Passos Coelho) e pode deduzir-se dessa constatação que o tema é mesmo capaz de ser editorialmente rentável. Nos tempos que correm, as razões para a verdadeira popularidade como a de Jacinda Ardern dependerão de pormenores pueris como a mudança de umas fraldas na assembleia geral da ONU ou então dar mostras de sangue-frio diante das câmaras durante um terramoto. E um outro aspecto que contribuirá ainda para aquela popularidade é a sua juventude: são muito poucos os líderes mundiais abaixo dos quarenta anos; são apenas cinco e um desses não conta porque é o líder da Coreia do Norte, que herdou o cargo. Se a política tem vindo a ser cada vez mais associada a uma actividade de velhos, é sempre refrescante assinalar a presença de quem, com a sua presença, o desmente. Parabéns, Jacinda Ardern!

25 julho 2020

A REPETIÇÃO MAIS DO QUE DISPARATADA DA METÁFORA DA BAZUCA

É patente o quanto é ridículo a repetição encadeada e acrítica por toda a comunicação social da expressão da bazuca a pretexto dos fundos europeus. É uma expressão que apenas faz sentido quando empregue de uma forma metafórica. E, por ser metafórica (as bazucas não distribuem dinheiro e o dinheiro não se distribui à bazucada...), mandaria o bom gosto que o uso da expressão fosse pontual, em jeito de alusão. Que houvesse alguns que dessem mostras de um gosto independente e se dissociassem do modismo. Mas não. Supimpamente estúpida e supimpamente estúpidos, a bazuca até já foi importada para as notícias da disputa do espólio.

O RELATÓRIO DE RÜTLI

25 de Julho de 1940. Numa reunião magna, que juntava os 650 oficiais mais graduados do exército suíço, desde os comandantes dos corpos de exército até aos de batalhão, o general Henri Guisan (acima), Comandante em Chefe, expunha os seus planos para a contingência de uma invasão alemã, agora que os exércitos ocidentais (francês, britânico, belga, holandês) haviam sido derrotados e que o país se apresentava rodeado pela Wehrmacht ou pelos seus aliados italianos. O local escolhido para a reunião, Rütli, junto ao Lago Lucerna, possuía um significado reforçado na identidade suíça, pois fora ali que, em 1291, se pronunciara o juramento que forjara o primeiro pacto entre cantões que estivera na origem da confederação helvética. Os planos de contingência anunciados pelo general Guisan naquele dia previam à retirada do dispositivo militar que defendia as fronteiras da Suíça até um reduto nacional, ocupando o centro do país em caso de invasão. Ao contrário de tantos outros planos militares, incluindo-se neste caso, os do lado alemão, precisamente para invadir a Suíça (a operação Tannembaum), os planos e as intenções do alto comando militar suíço eram para ser conhecidos: internamente para animar os próprios suíços; e externamente para refrear as intenções dos potenciais inimigos - a Alemanha e a Itália. «Enquanto na Europa houver milhões em armas e enquanto houver forças importantes capazes de nos atacar a qualquer altura, este exército tem que permanecer mobilizado». A questão da mobilização do exército suíço era primordial, já que os seus efectivos, da ordem de mais de meio milhão de homens, só era possível de manter com a convocação dos reservistas para as fileiras. Mas havia mais um pormenor: «Não prestem atenção àqueles que, por ignorância ou más intenções, espalham notícias derrotistas e dúvidas. Devemos confiar não apenas no nosso direito mas também nas nossas capacidades, que nos possibilita, se todos manifestarmos uma vontade de ferro, defendermo-nos com sucesso.» O destinatário desta passagem era o presidente do Conselho Federal, Marcel Pilet-Golaz que, precisamente um mês antes (25 de Junho) e perante o que acontecera à França cinco dias antes, fizera um discurso radiofónico de conteúdo assaz acomodatício com aquilo que se tornara a nova realidade europeia - a hegemonia alemã. Tecnicamente, Rütli é um golpe militar, ainda para mais praticado na civilizadíssima Suíça: o poder militar subleva-se contra a condução da política externa praticada pelo poder político. Acresce-se à ironia da situação que o fascista ali seria Henri Guisan, simpatizante do SVV (Federação Patriótica Suíça), enquanto Marcel Pilet-Golaz era membro do partido Liberal. Avaliando-o pelo que sabemos agora, o Relatório de Rütli não constituiu um elemento de dissuasão: mesmo depois delas, Adolf Hitler nunca abandonou a ideia de vir a controlar a Suíça. Mas estas declarações de há oitenta anos de Henri Guisan, que deixaram Berlim em fúria, terão evidenciado em que circunstâncias é que os alemães o teriam que fazer, e eles tinham muitas outras prioridades militares para além da Suíça. Como aqui não me canso de frisar, os países que conseguiram permanecer neutrais durante toda a Segunda Guerra Mundial, para o conseguir, fizeram-no sempre em circunstâncias muito nebulosas. Já agora, e porque se trata da Suíça, vale a pena relembrar o Caso Dänicker, aqui contado em 2015.

24 julho 2020

A MORTE DE PETER SELLERS

Sellers ia completar 55 anos. Desconhecido do grande público, o historial do actor incluía variadíssimos problemas pessoais e clínicos, uma reputação de pessoa mentalmente desequilibrada, dificílima de aturar profissionalmente. Mas um génio.

AINDA E SEMPRE EUROCÉPTICO

A União Europeia já é suficientemente antiga para ter criado as suas tradições. Uma delas é que as cimeiras, haja o que houver para negociar, têm de produzir um «happy end». Assim foi mais desta vez. Mas a experiência leva-nos a considerar quanto valeria a pena que António Costa moderasse o seu entusiasmo de dar o assunto por Aprovado! Vai para mais de uma dúzia de anos, o seu antecessor José Sócrates celebrizou-se com este momento televisivo deplorável, saudando efusivamente todos os que eram chiques e displicentemente todos os que o não eram. Para além da sua figura triste, o que já parece estar esquecida é a razão para tanto contentamento: a aprovação do Tratado de Lisboa. Agora: quantos se dispõem a justificar a esta distância tanta alegria? O Tratado de Lisboa tem servido para o quê? A União Europeia, que nunca o deixara de o ser, tornou-se numa estrutura cada vez mais difícil de gerir, repleta de cada vez mais fissuras, à medida que se alargava. Os 15,3 mil milhões que agora nos são brandidos à frente dos olhos, não nos devem fazer esquecer que a cimeira não ultrapassou o problema de que existem duas (senão mesmo mais) concepções dificilmente compatíveis daquilo que a União Europeia deve vir a ser. E que o outro bloco nestas negociações, o dos países ditos frugais (a vermelho), representa no mapa uma espécie de Mitteleuropa da prosperidade... com um buraco no meio, como um donut, buraco onde figura a própria Alemanha. Esta última, que é o único de todos os países da União a aspirar à hegemonia continental, é capaz de ter receado que, desta vez, se esticasse a corda, com a França e a Itália do outro lado, ela se partia. Ou então, é a antiguidade no posto que confere uma outra sabedoria a Angela Merkel. De qualquer modo, e por uma vez excepcional, posso fazer minha a expressão como Donald Trump costuma evadir as questões mais melindrosas: «We'll see what happens..».

23 julho 2020

O JULGAMENTO DE PHILIPPE PÉTAIN

23 de Julho de 1945. Começa em Paris o julgamento de Philippe Pétain, Marechal de França e antigo chefe do Estado francês de 1940 a 1944. Por muito que as massas populares se tivessem amplamente bandeado de um lado para o outro, é ainda a França vencedora a julgar a vencida, a que apostara no outro desfecho da Guerra. 

EU TENHO DUAS NOTÍCIAS... QUE EM NADA SÃO IGUAIS

Como os amores de Marco Paulo estas duas notícias mais abaixo em nada são iguais (se descontarmos o facto de serem oriundas da Lusa). Margarida Balseiro Lopes, que nem direito tem de ser citada pelo nome no destaque da primeira notícia, é parlamentar e (ainda) líder da JSD. A sua opinião e o seu voto terão certamente a devida ponderação dentro das estruturas internas. Hugo Soares não é parlamentar, não ocupa qualquer cargo de destaque nas estruturas do PSD, é um senhor que vai pela rua e lhe pespegam muitos microfones à frente para ele dizer coisas. O PSD conta com 18 «ex-líderes parlamentares» sobrevivos nas mesmas condições afastadas da de Hugo Soares, que poderiam exprimir a sua opinião. A dele é mais uma. Com acrimónia, diga-se que aquilo que ele «vê com "mágoa"» pode tratar-se no oculista da próxima esquina, depois da trincheira de microfones que ali se concentrou, mobilizada não se sabe bem por quem... E contudo, no Observador (abaixo), dão o mesmo destaque noticioso à atitude da primeira (respeitável) e à opinião do segundo (negligenciável). É tão manhoso, tão despropositado forçar deste modo a equivalência dos dois, que só se compreende no quadro da específica intrigalhada política interna que aquele pasquim não desiste de tentar fomentar...

A BOMBA QUE EXPLODIU NA SEDE DA FRELIMO - A CENSURA DE ENTÃO E A OUTRA CENSURA DEPOIS DESSA

(Ainda) 23 de Julho de 1970. A sede da Frelimo em Dar-es-Salaam, capital da Tanzânia, é alvo de um atentado bombista que é devidamente noticiado pelo Diário de Lisboa do dia seguinte (acima, à esquerda). A imprensa nacional, que tinha grande dificuldade - visado pela censura - em noticiar o que acontecia em qualquer dos três teatros de operações de África - e, neste caso, estava a acontecer, como adiante veremos - teve nesta ocasião uma inusitada carta branca para poder noticiar o atentado que visou a sede da Frelimo. A ironia do momento é que, naquela precisa altura, estava a decorrer no norte de Moçambique a Operação Nó Górdio, uma acção militar de grande envergadura das forças armadas portuguesas desencadeada precisamente contra as forças da guerrilha da Frelimo. Sobre o detalhe do andamento dessa operação (que decorreu ao longo de todo o mês de Julho até princípios de Agosto) é que não se conseguia saber quase nada pelos jornais... Mas essa é a ironia de há 50 anos. A ironia actual é precisamente a inversa: se consultarmos as cronologias das guerras de África publicadas nos volumes a esse respeito, caso dos livros Guerra Colonial (2000) ou Os anos da guerra colonial (2010), em ambos, como se constata acima (ao centro), a bomba que rebentou na sede da Frelimo desapareceu da cronologia. Nunca existiu(?). Um desaparecimento tanto menos justificável quando, na cronologia mais recente (a do centro, à direita) os autores de ambas, Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, resolveram dar destaque para esse dia 23 de Julho de 1970, a uma resolução do conselho de segurança da ONU a respeito... da África do Sul. Até cheguei a considerar possível que a explosão da dita bomba fosse afinal uma manobra de desinformação... não tivesse vindo a deparar-me com essa mesma notícia reportada num jornal ganês daquela época (o Daily Graphic - à direita). Vale a pena dizer que, o episódio, apesar de significativamente grave, não teve a importância de um atentado semelhante no ano anterior, em que uma encomenda armadilhada matara o dirigente supremo da organização, Eduardo Mondlane. A esta distância temporal terá mais significado a sua omissão em cronologias pejadas de tantos episódios de somenos, mais do que o facto de ela contar desfavoravelmente para a narrativa patriótica da organização guerrilheira. Cinquenta anos transcorridos, creio que já passou tempo suficiente para que se escreva a História daqueles três conflitos, cada um por si, mas sem os faccionalismos da propaganda da época, dos treze anos em que elas perduraram, e também sem os faccionalismos ideológicos das análises militares que se seguiram e que, comprovadamente como aqui se deduz, perduram há muito mais tempo que isso.

A AGONIA DE SALAZAR

23 de Julho de 1970. Num canto discreto, uma daquelas notícias que os leitores inteligentes daquela época haviam aprendido por experiência própria a decifrar: Salazar estava a morrer. Depois de ter desaparecido completamente do noticiário por mais de um ano, só podia ser esse o verdadeiro significado desta nova série de notícias sobre o seu «estado de saúde» «estacionário» e das «ligeiras melhoras ontem registadas». Com toda esta evolução clínica "favorável", António de Oliveira Salazar viria a morrer quatro dias depois.

22 julho 2020

UMA LISBOA REPLETA DE REFUGIADOS SEM TER PARA ONDE IR

22 de Julho de 1940. Se os livros de História de 1940 costumam referir-se atentamente às celebrações do duplo centenário então promovidas pelo Estado Novo - (1) (2) (3) - tende a faltar a essa narrativa o balanceamento de acrescentar que, por exemplo, a Exposição do Mundo Português, instalada junto ao Jerónimos, contrasta com um Tejo onde, como se pode ler acima nesta notícia do Diário de Lisboa de há 80 anos, estão surtos - e se podiam ver da exposição - um bom punhado de navios carregados de refugiados europeus sem destino. É importante vincar o contraste enorme entre o que acontecera até há bem pouco tempo, a respeito do que por cá se pensava de uma Europa longínqua que nunca nos ligara atenção alguma, alimentando os nossos congénitos complexos de inferioridade, e o que então estava a acontecer à vista de todos os lisboetas - navios carregados de milhares de refugiados que, como se pode ler acima, «vivem em precárias circunstâncias». A fotografia é do Thysville, um dos navios mencionados, um navio belga partido de Antuérpia em Maio e que, supostamente e depois da rendição belga aos alemães, devia ter sido entregue a estes últimos, mas que, em finais de Julho de 1940, ainda se encontra metaforicamente encalhado no porto de Lisboa com as suas centenas de passageiros a bordo a passar dificuldades, sem que soubessem o que fazer. À nossa porta, havia quem estivesse muito pior do que nós!

TRIVIALIDADES E CROQUETES, INTELECTUALIDADES E CULATRAS...

Veja-se como o texto de opinião de Paula Teixeira da Cruz começa bem, denso, com uma citação de Siddharta de Hermann Hesse - autor que eu confesso nunca ter lido. Em contrapartida, outras coisas que li permitem-me responder à sua pergunta do penúltimo parágrafo do seu texto: a Peste Negra NÃO contribuiu para a Guerra dos 100 anos. Se as cronologias de outros livros estiverem certas, a Guerra dos Cem Anos começou em 1337 e a eclosão da Peste Negra na Europa só teve lugar em 1347, uma década depois. A ter tido alguma influência na guerra, a peste, ao contrário do que a Paula sugere, terá contribuído até para a cessação das operações militares, especialmente depois da vitória inglesa em Crécy em 1346. Se ao outro o deliciava o cheiro matinal do napalm, a mim o que me entusiasma é a leitura fresca de uma asneirada de calibre numa crónica pretensiosa de um matutino.

AS TRAFICANTES...

Terça-feira, 22 de Julho de 1980. Numa página interior do jornal aparece uma daquelas notícias que o tempo tornará depois incomensuravelmente irónicas. Na Guiné-Bissau, sete estrangeiros, entre os quais duas cooperantes portuguesas, são expulsos do país por tráfego e consumo de droga: cannabis, importada do Senegal, conforme se pode ler no detalhe da notícia. Fora a apreensão de uma dessas encomendas que levara a polícia local à descoberta em Bissau de um grupo internacional - além das portuguesas, havia uma canadiana, um italiano, um francês, um americano e um polaco - o «meio», como a notícia o designa. E como rematava, acusador, o comunicado oficial: «o "meio" visava não só fomentar a toxicomania, mas também os demais vícios que a ela sempre se associam». Mal saberia quem escreveu isto, uma verdadeira diatribe contra um grupo restrito de apreciadores de um prosaico charro, que a Guiné-Bissau viria a ser conhecida, uns 25 anos depois, como o narco-estado africano por excelência, o sítio por onde transitam convenientemente os carregamentos de cocaína da América do Sul para a Europa...

O CASO DA SEMANA

Há cinquenta anos, todos os Sábados, desde que principiara o primeiro período de emissão da RTP, pelas 13H00, logo depois dos desenhos animados do Tintin ou dos Beatles ou do Linus, Luís Filipe Costa dispunha de quinze minutos para nos apresentar o seu caso da semana. E conseguia normalmente captar-me a atenção infantil. Lembro-me de um programa em que, pela primeira vez, ouvi falar substantivamente dos computadores na TV, de cartões perfurados, do que eles podiam ou não podiam fazer, da destruição do mito - em 1970 muito difundido - de que os computadores eram inteligentes. O segredo de Luís Filipe Costa, descobri muito depois, era conseguir fazer algo de interessante sem muitos temas elegíveis e pouco tempo disponível. Aqui fica uma evocação que suponho diferente de todas as outras que agora se farão por causa da sua morte.

21 julho 2020

A CONCLUSÃO DA BARRAGEM DE ASSUÃO

21 de Julho de 1970. Data em que foi concluída a construção da barragem de Assuão no rio Nilo. Trata-se de uma obra de engenharia respeitável - a construção das infraestruturas durou dez  anos, o enchimento total da albufeira demorará ainda mais outros seis - mas é sobretudo um símbolo político do Egipto moderno. Com esta conclusão, o Egipto, que Heródoto considerara uma «dádiva do Nilo», terá subvertido as suas relações de poder com o seu rio. O financiamento para a sua construção, que o Egipto de Nasser solicitou tanto ao Ocidente quanto ao Leste, acabou sendo concedido pelos soviéticos, o que foi causa e consequência de um período histórico em que, também por causa do conflito com Israel, o Egipto se reposicionou em relação àqueles que haviam sido até aí os seus alinhamentos internacionais tradicionais. Por estranho que pareça, esta data da conclusão dos trabalhos, acabou por passar desapercebida no meio de outras cerimónias a que o regime preferiu dar mais relevo, como sejam a do início dos trabalhos em 1960, ou a da visita ao empreendimento feita pelo líder soviético Nikita Khrushchev em 1964. E contudo, havia algo de estranhamente premonitório nesta conclusão técnica da obra há precisamente cinquenta anos: escondido no futuro, anunciava-se para muito breve - dali por escassos dois meses, a 28 de Setembro - a morte inesperada de Gamal Abdel Nasser, aquele que transformara Assuão na obra imponente do seu regime, qual faraó tardio do século XX. Em 16 de Janeiro de 1971, a barragem de Assuão foi oficialmente inaugurada, por Anwar Sadat, sucessor de Nasser e por Nikolai Podgorny, em representação dos capitais russos que a haviam financiado, mas faltava ali alguém...

20 julho 2020

A ASTRONÁUTICA JÁ FOI «CONQUISTADA» PELO JORNALISMO

Se nos cabeçalhos esta missão a Marte é árabe, nos detalhes é que se fica a saber que a sonda foi construída nos Estados Unidos em parceria com universidades locais (Colorado), que o lançamento teve lugar a partir do centro espacial de Tanegashima, no sul do Japão, e que o foguetão que a lançou para o espaço era também de concepção inteiramente japonesa (H-IIA). Ninguém duvidará que tenha havido um empenhado esforço dos cientistas dos Emirados Árabes, especialmente do Mohammed bin Rashid Space Centre no Dubai, mas não se estará a revelar um grande segredo quando se disser que há muita gente do meio da astronáutica que tem uma visão um pouco condescendente para com este projecto, classificando-o como um dos mais conseguidos... entre os que os petrodólares conseguem comprar. É possível que seja excessivo e provavelmente não será simpático escrevê-lo nesta ocasião, mas chamar também a atenção para esse detalhe controverso, é que é a diferença entre o jornalismo e uma mera «press release» da entidade que está a promover o acontecimento...

...O CONSELHEIRO DE SEGURANÇA NACIONAL AMERICANO VEIO À EUROPA

Há precisamente uma semana publiquei no Herdeiro de Aécio um poste dando conta da visita de três dias do Conselheiro de Segurança Nacional americano à Europa. Um texto em que apontava para que «aguard(áss)emos circunspectos os resultados» das negociações, alertando para a circunstância que, se nada de substancialmente positivo tivesse resultado, mais difícil seria encontrar a "não-notícia". Já aguardámos uma semana completa pelos resultados das diligências de Robert O'Brien pelo velhos continente e, apesar da pesquisa sobre o seu trabalho ter sido esforçada, os resultados são parcos: há um comunicado seu em que ele se congratula pela decisão britânica de rejeitar o equipamento chinês para a sua rede 5G, o tópico que até é realmente o cavalo de batalha da diplomacia americana nos dias que correm, mas o americano não conseguiu arrancar mais nenhum compromisso que se visse a esse respeito, de um qualquer outro aliado europeu. Por outro lado, é reconhecido que, mais do que uma questão de redes, os britânicos têm razões muito próprias para estarem lixados com os chineses. Para além da conveniente coincidência, o que sobrará, depois de muito vasculhada a coluna das notícias a respeito daquilo que O'Brien terá estado a fazer durante três dias, foi a aturar os franceses a queixarem-se dos turcos, depois de um incidente naval envolvendo as marinhas de guerra dos dois países no Mediterrâneo, ao largo das costas da Líbia no mês passado. Esclareça-se que normalmente este género de incidentes são sanados bilateralmente entre países crescidos mas que, neste caso, os franceses terão feito questão expressa de chatear deliberadamente os americanos com ele, conhecido como é o favoritismo de Donald Trump a favor de Erdogan. Numa perspectiva de Quai d'Orsay, não servirá para muita coisa, mas, convocando-o para intermediar num assunto em que qualquer das duas partes tem o intermediário (USA) em muito fraco conceito, chateia-os - aos americanos, claro, não aos turcos - e a diplomacia francesa retira um prazer mesquinho em obrigar O'Brien a mostrar-lhes a sua «muita simpatia». Quanto ao resto... E assim se foi Robert O'Brien, de regresso aos Estados Unidos, sem que nada tivesse acontecido, acompanhado da nossa suspeita de que o plano A das chancelarias europeias a respeito de relações atlânticas é que em Novembro a Casa Branca deve mudar de ocupante; e de que o plano B (Trump por mais 4 anos!) é melhor nem o contemplar...

19 julho 2020

A ABERTURA DOS JOGOS OLÍMPICOS DE MOSCOVO

19 de Julho de 1980. A transmissão das cerimónias de abertura dos Jogos Olímpicos de Moscovo em 1980 apanhou-me de cama, doente. Vi-as deitado. Antecipadamente, os jornais haviam publicado o horário das transmissões televisivas (abaixo). Para os leitores mais novos, convém explicar que nessa época nem sempre as transmissões podiam ser recebidas a cores, no caso em que os programas eram oriundos de países que não possuíam sistemas de televisão idênticos ao nosso - como era o caso da União Soviética. Assim, a cerimónia inaugural dos Jogos foi vista a preto e branco em Portugal, o que retirou decerto algum impacto ao que se pôde ver, como acima, aliás, se percebe perfeitamente. O que os jornais não haviam preparado devidamente os telespectadores era para o problema dos quadros informativos estarem redigidos no alfabeto cirílico, os que os tornava incompreensíveis aos ocidentais (mais abaixo).

OS MARECHAIS DE HITLER

19 de Julho de 1940. Numa cerimónia que se pretendia magnificente mas simultaneamente selecta, e em que a inspiração napoleónica era indisfarçável, Adolf Hitler promovia doze dos oficiais generais que mais se haviam distinguido na Campanha de França ao posto de Marechal de Campo. Na fotografia acima vêmo-lo, acompanhado de Hermann Göring, que na mesma ocasião foi promovido à categoria inédita de Marechal do Reich, posando com os nove novos Marechais do Exército: (da esquerda para a direita) Wilhelm Keitel (1882-1946), Gerd von Rundstedt (1875-1953), Fedor von Bock (1880-1945), Adolf Hitler (1889-1945), Hermann Göring (1893-1946), Walther von Brauchitsch (1881-1948), Wilhelm von Leeb (1876-1956), Wilhelm List (1880-1971), Günther von Kluge (1882-1944), Erwin von Witzleben (1881-1944) e Walther von Reichenau (1884-1942) (explicaram-me que esta ordem era a da antiguidade dos novos marechais no posto precedente, o de coronel-general). Numa outra fotografia (menos conhecida) aparecem os três novos Marechais da Força Aérea: (na mesma ordem) Erhard Milch (1892-1972), Hugo Sperrle (1885-1953), Hitler e Göring uma vez mais e Albert Kesselring (1885-1960) (Sperrle e Kesselring haviam "saltado" o posto de coronel-general).

18 julho 2020

«IN THE SUMMERTIME»

No Verão de 1970 era este o hit musical, adequado à temporada. As patilhas do vocalista dos Mungo Jerry, exuberantes, em formato sideburn, é que deviam fazer calor in the summertime...

A APROVAÇÃO DA INFALIBILIDADE PAPAL

18 de Julho de 1870. No Concílio do Vaticano, que então se realizava em Roma (gravura acima), a assembleia de prelados e teólogos que o compunha aprovou o dogma da infalibilidade do papa. Numa eleição preparatória, que tivera lugar a 13 de Julho, em que existiram três possibilidades de voto (sim, não e sim, mas condicional) a opção favorável vencera claramente com 75% dos votos (451-88-62) o que fizera com que os adeptos da adopção do dogma avançassem directamente para uma aprovação (ou rejeição...). A votação teve então lugar há precisamente 150 anos e, simbólico de como costumam ser tortuosos os desígnios do Senhor e dos seus servos, todos aqueles que se haviam oposto e haviam mostrado reservas à aprovação da infalibilidade papal parecem ter desaparecido da sala de votações: foi aprovada com 433 votos favoráveis e apenas 2 contrários. Mais de 160 membros não estiveram presentes naquele momento histórico. O papa que convocara o Concílio que o tornara infalível - o dogma aplicava-se retroactivamente... - foi Pio IX (Giovanni Mastai-Ferretti).

17 julho 2020

O BOEING 474

Ele há episódios tão desastrados de tão repetidos, que o melhor é fazer o mesmo copy&paste que os jornalistas fizeram para deixar aos leitores a possibilidade de reflectir, no fim da imagem abaixo, sobre «a voz que faz a diferença», os «fact-checks» e «a qualidade dos especiais deles». Assine agora.

O INÍCIO DA CONFERÊNCIA DE POTSDAM

17 de Julho de 1945. Começava em Berlim a conferência que reunia os Três Grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial. A questão de como se conseguiu organizar uma conferência de tal amplitude num local onde, ainda três meses antes, se travavam combates encarniçados, foi uma daquelas realizações do socialismo a que os nossos próprios comunistas domésticos, apesar do seu internacionalismo submisso, nunca souberam dar o devido valor. Aqui neste blogue já contei uma parte dessa história colateral dos grandes acontecimentos que fazem a transição do fim da Segunda Guerra Mundial para a Guerra-Fria.

16 julho 2020

TRUMP ADOPTA A SOLUÇÃO CHINESA

Os jornais publicam com a maior descontracção a notícia conjunta de que ontem se terão registado mais 70 mil casos de infectados nos Estados Unidos e um na China! Um na China?! Mesmo sendo proverbial a estupidez de Donald Trump, ele parece conseguir, nesta circunstância, ser menos ingénuo do que a comunicação social de todo o Mundo, quando aparenta ter descoberto finalmente que a melhor maneira de verdadeiramente se combater a eclosão desta pandemia é através da manipulação da informação - em Pequim decidiu-se que se erradicara o covid-19 em toda a China e bruscamente deixou de haver infectados entre os seus 1.400 milhões habitantes; os que há, vieram «do exterior». Trump diz não gostar da China mas isso não é a mesma coisa do que não gostar dos métodos socialistas dos chineses. Apresentando-se o combate à pandemia como estando descontrolado por aquelas paragens, afigurar-se-á razoável desconfiar que a ideia que estará por detrás desta decisão para que o governo americano passe a ser ele a colectar os dados nos Estados Unidos, só poderá ser a de tentar erradicar assim, à chinesa, o ritmo das infecções. A covid-19 não é um problema, mas três: a) de saúde pública; b) político; c) de informação. Conectam-se mas não se trata da mesma coisa. E aqui trata-se de resolver o segundo à custa do terceiro que o primeiro é a última coisa que interessará a Donald Trump.

O «MARACANAÇO»

O Brasil organizara o Campeonato Mundial de Futebol de 1950 para o vencer. Construíra-se o maior estádio do Mundo, o Maracanã no Rio de Janeiro, com uma lotação oficial de 155.250 espectadores, para que ele fosse o palco de tal consagração. E, desde o início da competição, a 24 de Junho, tudo parecia estar a correr de feição para os anfitriões, que sempre se haviam considerado uma nação de bons de bola. Bem para o Brasil e mal para alguns dos seus rivais mais exuberantes, como a Itália, que se sagrara bicampeã Mundial em 1934 e 1938, ou a Inglaterra, que, porque inventara o jogo, se julgava dona dele; uma e outra selecções já tinham ido para casa, eliminadas, passear a sua (falta de) categoria. Em contrapartida, a selecção brasileira ia acumulando goleadas. Por uma vez, a fase final para apuramento do campeão foi organizada em esquema de campeonato, em que todos os quatro semifinalistas se encontravam entre si. O Brasil despachara a Suécia por 7-1 e a Espanha por 6-1. Em contraste, o Uruguai, que neste último jogo era a única equipa em condições de roubar o título aos brasileiros, empatara com a Espanha 2-2 e vencera tangencialmente a Suécia por 3-2. Mas, para o fazer, precisava imperativamente de ganhar o jogo; em caso de empate, o Brasil sagrar-se-ia campeão. Com tudo a favorecer, no Rio de Janeiro, por todo o Brasil, era a festa antecipada. Com aquela habilidade bem brasileira de dar um jeitinho e apesar da lotação oficial, os dados oficiais dão uma presença de 199.854 pessoas no estádio do Maracanã nesse dia 16 de Julho de 1950 - há precisamente 70 anos. E depois, foi o jogo, a bola é redonda e jogam onze de cada lado. O Uruguai não deixou o Brasil partir para a goleada, embora os brasileiros ainda tivessem marcado um golo, mas já na segunda parte. Depois, em menos de 15 minutos, os uruguaios deram a volta ao resultado, à frente dos 200 mil brasileiros que tinham lá ido para ver uma coisa completamente diferente.

O 75º ANIVERSÁRIO DO ENSAIO DO PRIMEIRO ENGENHO NUCLEAR EM ALAMOGORDO

16 de Julho de 1945. Pelas 05H30 da madrugada locais, em Alamogordo no Novo México, tem lugar o ensaio do primeiro engenho nuclear. Ao teste deu-se o nome de código de Trindade (Trinity) e foi um sucesso: o dispositivo detonou como antecipado, tendo a potência da explosão alcançado um efeito equivalente ao de 19 mil toneladas de um explosivo convencional (como o TNT). A partir daí todas as detonações nucleares passaram a ser avaliadas tendo como referência essa escala do efeito destruidor do TNT. Assistiram ao ensaio cerca de 260 pessoas entre cientistas e militares que estavam colocados a não menos de 9 km do local da explosão. Sentiram-se os efeitos desta a mais de 150 km dali e a nuvem em forma de cogumelo (desconhecida até então) atingiu a altitude de 12 km, mas as autoridades haviam forjado de antemão uma explicação associada à detonação por acidente de um enorme paiol de munições. Por outro lado, o local fora também escolhido por causa da ausência de população - a densidade populacional média do estado do Novo México era, à época, de apenas 1,6 habitantes por km². O presidente Harry Truman estava então na Europa, em Berlim, quando foi informado do sucesso do teste. Os Estados Unidos dispunham de mais dois engenhos do género, embora distintos no processo de funcionamento.