30 abril 2014

PELO RIGOR, PELA VERDADE

A edição de imagem permite-nos prodígios como o de cima: retocar a primeira página do Diário Económico de hoje para lhe dar um conteúdo mais rigoroso, mais verdadeiro. Onde no original aparece Pedro Passos Coelho em pose descontraída e de bandeirinha ao peito, passa a ver-se Oli Rehn numa pose de visionário que perscruta o futuro. É perceptível por tudo o que tem vindo a escrever que a decisão pela saída dita limpa se deverá muito mais ao comissário europeu das Finanças do que ao primeiro-ministro português ao contrário do que pretende sugerir a capa original daquele jornal (abaixo). Quer como membro da Comissão Europeia, quer como finlandês, Oli Rehn não esteve duplamente na disposição de adiantar os meios financeiros para que a saída de Portugal pudesse ser outra coisa senão aquilo que é: limpa. Por que isso já é sabido de há muito e por que isso retirou qualquer hipótese de escolha a Pedro Passos Coelho, bem se pode acrescentar que a notícia não é propriamente uma novidade. Mas, por se estar a falar de higiene e limpeza, dediquei-me ao exercício suplementar de mudar a cor da própria palavra limpa de um laranja subtilmente pepêdista para um azul suave (combinando o amarelo das estrelas) que me parece ser menos partidário e mais comunitário. Aprecie-se como o efeito combinado das mudanças altera o aspecto da página.

29 abril 2014

A DESCOBERTA E A COLONIZAÇÃO DA MADEIRA


Como se vê acima pelo filme da descolagem da Apollo XV em Agosto de 1971, todas as missões lunares norte-americanas quando estiveram na Lua deixaram vestígios que hoje permanecem facilmente observáveis. Se daqui para amanhã, por uma qualquer razão (que eu não imagino simpática), se perdesse a memória daqueles voos, uma outra civilização poderia encontrar na superfície lunar as provas inequívocas de que a nossa já ali havia estado. Mas aquelas provas têm um significado muito diferente daquele que representaria a colonização da Lua, algo que tem vindo a acontecer repetidas vezes desde muito antes de 1971, mas apenas em obras de ficção – como acontecia com a série televisiva Espaço: 1999.

Se faço esta distinção prévia entre os dois tipos de presença, o ocasional e o continuado (neste caso da conquista da Lua), é para melhor enquadrar uma notícia que a TVI24 reproduz que aponta para a hipótese de que terá havido outros navegadores que terão precedido os do infante D. Henrique na ilha da Madeira. A hipótese baseia-se num estudo efectuado por cientistas espanhóis ao DNA dos ratos madeirenses em que estes se vêm a revelar geneticamente mais proximamente aparentados com as espécies norte-europeias do que com as ibéricas. Em complemento, um processo de datação (que a notícia não específica) atribui aos ossos que terão servido de base aos estudos uma antiguidade entre os Séculos X/XI.
Como esse período corresponde ao apogeu da expansão viking, aí temos um belo pretexto para ilustrarmos a notícia com um ratinho ornado de um capacete com chifres e cumpre-se a missão jornalística de informar! De facto, os dados da notícia não são novos e a oportunidade desta notícia e a sua origem não me parecem de todo inocentes. Os primeiros resultados sobre este assunto do parentesco do DNA dos ratos já foram publicados há dois anos e o seu âmbito foi muito mais alargado: incluiu regiões de todo o Atlântico Norte e organizações de diversos países. Os trabalhos de origem portuguesa foram objecto de uma notícia no Expresso há seis meses, com conclusões semelhantes para os ratos da Madeira… mas também dos Açores.
Nenhum historiador moderno cauteloso defenderá que os portugueses foram os descobridores originais da Madeira e dos Açores. Há muitos outros candidatos ao feito, a começar pelos fenícios na Antiguidade. Quanto muito dir-se-á que as ilhas estavam desertas quando os portugueses lá se instalaram no Século XV. E a importância histórica do facto é que foram os portugueses a ali se instalarem de forma continuada. Mas o que é bizarro em todo este episódio é a preocupação espanhola com a ancestralidade dos ratos madeirenses (mas só desses...). Será que a disputa sobre a soberania das Selvagens não terá alguma coisa a ver com esta beliscadela semi-subtil à legitimidade dos direitos portugueses sobre a Madeira?
Para quem ainda não tivesse dado por isso, é engraçado este cenário que faz com que os vikings possam ter aportado às ilhas atlânticas portuguesas muito anos antes de Portugal ter existido sequer. Mas, como as viagens dos astronautas norte-americanos, também as dos vikings não passam hoje de uma curiosidade científica. Quanto às possíveis intenções espanholas, nada se pode garantir como é costume nestes casos, mas claro, também não é difícil prever que os jornalistas da TVI24 que passaram esta história da agência EFE adiante devem ignorar tudo ou quase tudo do que aqui ficou explicado: nitidamente a apanhar bonés… Ou deveria especificar a pretexto do tema: foram apanhados na ratoeira?

A TÊMPERA DE UMA MULHER CORAJOSA


Apreciem o vídeo acima, onde uma senhora se equipa para tomar lugar num biplano. O avião descola mas o voo termina, abrupta e surpreendentemente, e de uma forma que até parece deliberada, chocando com uma casa de madeira, contra a qual se desfaz. As últimas imagens do filme são dos tripulantes acenando felicíssimos, enquanto os pedaços do avião ardem por detrás. Por muito que se veja a cena em repetição para lhe compreender o propósito, fica-nos a sensação que a demonstração foi apenas estupida, mas há que reconhecer que mulheres daquela têmpera são admiráveis e saem muito bem na televisão. Com este vídeo presto simbolicamente a minha homenagem à atitude de Raquel Varela, mesmo depois de completamente esmagada na controvérsia que a opõe a António Araújo a respeito da sua última obra. Se se tratasse de um homem e fosse de direita claro que estaríamos perante um exemplo acabado de marialvismo; sendo mulher e de esquerda, não, é só estúpida mas sem etiquetas...

E editorialmente, não nos chateiem mais com exemplos como o de Margarida Rebelo Pinto. Tem a virtude de não ter pretensões com o que escreve…

SERÁ POSSÍVEL CONSTRUIR UMA IMAGEM POSITIVA A QUALQUER GOVERNANTE?

Os predicados da acção governativa dependerão muito mais dos objectivos dos aparelhos encarregados de os promover do que dos méritos intrínsecos daquela acção. Veja-se como subitamente as notícias dos sucessos governamentais deixaram de ser sobre abstracções desinteressantes (como o sucesso das operações de colocação da dívida) e passaram a incidir sobre assuntos que interessam verdadeiramente às pessoas: a reposição do dinheiro retirado em excesso a algumas pensões de viuvez no próximo mês ou a reposição – embora prevista para as calendas… – de todos os cortes entretanto efectuados aos funcionários públicos. Que eu saiba, os protagonistas pela comunicação governamental continuam os mesmos…

28 abril 2014

CARICATURAS DE REGIME

Assim como Rafael Bordalo Pinheiro foi o responsável pela caricatura simbólica do período final da monarquia constitucional com a sua Grande Porca (acima), Herman José sê-lo-á pela equivalente deste regime (embora com a ajuda involuntária de Baptista Bastos), enquanto houver quem, com eles, compartilhar a preocupação de se saber onde é que se estava no 25 de Abril

A CARREIRA LITERÁRIA DE BENJAMIN DISRAELI

Certo noite da década de 1830, numa festa de um salão londrino, William Lamb, Lorde Melbourne (1779-1848), então ainda secretário do Interior mas em vias de se tornar, dentro em pouco (1834) primeiro-ministro britânico, terá sido apresentado a um jovem romancista prometedor de ascendência judaica, que o terá impressionado pela atitude de uma ironia permanente, também por se exprimir de uma forma simultaneamente eloquente embora empregasse uma linguagem a que o autor parecia procurar dar deliberadamente um exotismo oriental. Contudo a passagem mais famosa do diálogo então travado terá acontecido quando o político, da sua experiência madura de cinquentão terá perguntado condescendentemente ao seu interlocutor o que pretendia vir a ser: – Primeiro-Ministro, my lord – terá sido a resposta do atrevido, quase insolente, Benjamin Disraeli (1804-1881). E, como costuma acontecer nestas histórias premonitórias que parecem sempre bonitas demais para terem realmente acontecido, Benjamin Disraeli veio efectivamente a tornar-se primeiro-ministro 34 anos depois de Lorde Melbourne, embora pelo partido rival (tory) do do seu interlocutor (whig).

O que tornou o episódio plausível para a posterioridade é que o jovem – ainda não teria 30 anos - Disraeli já compreendera que era preferível que troçassem dele a passar despercebido. Era uma lição velha de 24 séculos: da Atenas do Século V a.C. ficara a lenda de Alcibíades que mandara cortar o rabo ao cão para que, à falta de outro assunto, se continuasse a falar de si. Na Londres do Século XIX, o jovem Disraeli cultivava a sua imagem bizarra, envergando coletes de veludo e cintilante de jóias (falsas), mas ao mesmo tempo pleno de distinção e de um autodomínio tipicamente britânico, para melhor vender as suas novelas, a sua fonte de rendimentos. Estava ciente que um intelectual, para ser reconhecido como tal, tem de se dedicar a essa actividade tão pouco intelectual de se promover. E essa publicidade (no sentido que a palavra possui na língua inglesa), mesmo nas suas conotações negativas, tornou-se fundamental para lhe criar uma personalidade quando Disraeli começou a sua carreira política como deputado a partir de 1837. Essa carreira política havia posteriormente de o levar a ocupar a pasta das Finanças e ao nº11 de Downing Street (1866-1868), a liderar a oposição nos seis anos que se seguiram (1868-1874) e a ocupar finalmente o nº 10 daquela mesma rua, a residência oficial do primeiro-ministro, durante a meia dúzia de anos que se seguiram, precisamente aqueles onde se assistiu ao apogeu do poder do Reino Unido enquanto potência mundial.

Actualmente, aquando das referências à importância histórica de Benjamin Disraeli os seus primórdios como autor literário são tratados (se o chegam a ser) casualmente, como se se tratassem de um fait-divers da sua preenchida vida. Uma síntese do valor a atribuir à sua importância literária nas letras inglesas ficar-se-á por um meio caminho, que considera simultaneamente exagerado qualificar Disraeli como um escritor de primeira categoria mas também não pode sustentar que a obra de Disraeli mereça ir para uma espécie de caixote do lixo dos autores dispensáveis dessa primeira metade do Século XIX. Ao escolher os temas das suas obras – as mais bem-sucedidas foram Coningsby (1844) e Sybil (1845) – Disraeli demonstrou sempre uma intuição muito eficaz daquilo que constituiriam os interesses – ainda que superficiais – da sociedade que o rodeava, a ponto de lhes despertar a atenção para que lhe comprassem os livros. Foram best-sellers, ainda hoje são legíveis (por quem se disponha a isso), mas o seu estatuto não passará daí. Mas deram-lhe a visibilidade – hoje dir-se-ia mediática – para se destacar publicamente e facilitar a sua ascensão desde backbencher.

27 abril 2014

SKY ONE – SEM LEGENDAS


Este era o clip que há cerca de uns 25 anos ilustrava a promoção que a cadeia Sky fazia a si própria. Era o tempo do cavaquismo original, da nossa entrada na CEE, da chegada da televisão por satélite às nossas casas e o quotidiano de nos habituarmos a televisões onde se falavam outras línguas… mas sem legendas.

ZERO

Muito mais instrutivo do que o título que a entrevistadora (Ana Sá Lopes) escolheu para a entrevista que fez a Vasco Pulido Valente acerca da forma como este terá vivido o dia 25 de Abril de 1974 (e os dias que se seguiram), será o exercício de comparar as declarações que ele ali lhe prestou com a visão que Maria Filomena Mónica dá desse dia e desses mesmos acontecimentos no seu livro Bilhete de Identidade (pp. 315-319). Ambos concordam ter passado o dia com o outro (Fui acordado de manhã e depois fui com a Maria Filomena Mónica para a rua. Fomos ao Largo do Carmo, andámos por ali. – ele – A 25, pelas dez horas da manhã, (o Vasco) chegou a minha casa. Dirigimo-nos para o Largo do Carmo. – ela). Ela mais superficial e evocativa do tempo ou do que vestia (…estava uma manhã cinzenta e com nortada. Lembro-me de ter saído de casa com uma camisa branca sob um casaco verde.), ele mais chão nesse tipo de memórias avulsas (...fui almoçar a um restaurante pegado ao elevador da Glória). Mas verificam-se algumas contradições evidentes nas duas histórias: Ela queria ir à PIDE, mas eu disse que era melhor não irmos. (…) Aquilo devia ter sido um ponto estratégico se o Movimento das Forças Armadas tivesse sido conduzido por alguém com alguma inteligência.... Maria Filomena Mónica ter-se-á marimbado para a hipotética inteligência estratégica do companheiro e tê-lo-á arrastado: Ao princípio da tarde, fomos até à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso. (…) reinava a paz dos sepulcros.

Mas o mais estranho que terá escapado a Maria Filomena Mónica foi o verdadeiro prodígio da electrónica realizado naquela tarde histórica de Abril, quando Vasco Pulido Valente voltou ...para o carro e consegui(u) ouvir – porque se ouvia nas telefonias dos carros – a banda de rádio da GNR. (…) O comandante a dizer: «É melhor acabarmos com isto senão isto ainda vai dar uma chatice.» Vasco Pulido Valente considera esta última frase inesquecível. Eu considero – para além da coincidência do Vasco ter apanhado a parte mais sumarenta do diálogo – todo o processo da escuta tecnicamente brilhante. Basta pensarmos como Garcia dos Santos teria andado no quartel da Pontinha a montar um sistema de intercepção de comunicações para aquele dia, quando o Vasco Pulido Valente lhe poderia ter resolvido boa parte do problema só com o rádio do carro… Para além da verosimilhança, a versão daqueles dias escrita por Maria Filomena Mónica tem a vantagem de ser, não só mais desenvolvida, mas também intelectualmente mais modesta (Os dias que se seguiram foram passados na companhia do Vasco, tão surpreendido quanto eu com o que se estava a passar) e de ser ilustrada com uma fotografia (tirada pela Micuxa Galvão Teles) de uma honestidade simbólica: nela se vêem os dois a zero, coscuvilheiros, com Vasco Pulido Valente apropriada e simbolicamente nos bicos de pés atrás da multidão, a tentarem ainda assim perceber o que se estaria a passar.

26 abril 2014

O FUNERAL DE WINSTON CHURCHILL

30 de Janeiro de 1965. A fotografia (que pode ser ampliada clicando sobre ela) mostra-nos as personalidades presentes nas cerimónias do funeral de Estado de Winston Churchill, falecido aos 90 anos. A presença ali da rainha Isabel II (1) é uma ruptura do protocolo da corte britânica (protocolo esse que, como já foi explicado aqui neste blogue, só passou a ter importância a partir da época vitoriana – 1837-1901). Segundo constava, nunca um antecessor de Isabel II havia estado presente nas cerimónias fúnebres de um seu súbdito comum (i.e., que não fosse nobre), por muito que tivessem sido os contributos do defunto em vida para a glória do monarca. Mas Winston Churchill, que nunca quisera ser nobilitado em vida (honra que o obrigaria a transferir-se da Câmara dos Comuns para a dos Lordes, por isso para longe da acção política), era motivo mais do que suficiente para esta clamorosa excepção protocolar.

Duas notas adicionais para dois estrangeiros que se destacam na paisagem da cerimónia. Kwame Krumah (2), então já presidente do Gana e facilmente identificável pela sua indumentária da gala típica(e desafiadora)mente africana (estava-se a meio de um inverno europeu...). Primeiro dirigente de um país africano negro a alcançar a independência (1957), ainda não sabia que estava a cerca de um ano de ser deposto do poder num golpe militar (Fevereiro de 1966). E Charles de Gaulle (3), presidente de França e facilmente identificável pelo seu quépi no alto do seu 1,94 metros. O início da sua relação com o defunto remetia para os dias difíceis do Verão de 1940, os mais angustiantes da Segunda Guerra e de uma relação que, aliada e de estima, nunca fora desprovida de incidentes. Amigos, amigos, negócios à parte: ainda dois antes, de Gaulle vetara a admissão do Reino Unido à CEE e tornaria a fazê-lo dois anos depois.

25 abril 2014

25 DE ABRIL SEMPRE!


Já foi tempo em que era moda citá-lo de Marx, mas agora será mais fino fazê-lo de Žižek, embora o princípio permaneça inalterado: aquilo que primeiro foi tragédia repete-se depois em farsa, e foi preciso que isso acontecesse com o slogan 25 de Abril Sempre! para que cumprisse o seu ciclo determinístico histórico e eu passasse a acarinhá-lo de outro modo.

A LONGEVIDADE E POPULARIDADE DE UM CERTO ROQUE SANTEIRO


Numa das últimas entrevistas concedidas pelo recém falecido actor José Wilker (1947-2014) ele fez uma interessante menção à forma como se apercebeu da popularidade em Portugal da novela que ele protagonizava como Roque Santeiro: Um dia eu estava no hotel e tocou o telefone bem cedo: «Aqui é da parte do primeiro-ministro de Portugal. Gostaria de saber como vai acabar a novela». Na verdade, noutras ocasiões Wilker havia já contado esta mesma história embora com um detalhe superior, especificando que foi o próprio primeiro-ministro a falar directamente consigo e tornando o pedido muito mais cuidadoso, deferente até. Vale a pena agora adivinhar quem era o primeiro-ministro português na altura em que a RTP transmitiu Roque Santeiro, o autor desta iniciativa de um certo plebeismo chineleiro. Só para ajudar o leitor, refira-se que à época ele se anunciava como um apolítico que ocupava pontualmente um cargo político e que actualmente, depois de essa pretensão de ser apolítico se ter tornado ridícula, ocupa outro cargo político, 27 anos depois.

DEDICADO AO MEU AMIGO ARTUR


Mario Mata: De férias p'ró Algarve

24 abril 2014

UMA CERTA IDEIA DE PORTUGAL¹

Ainda na continuidade de algumas ideias para postes que me ocorreram a pretexto do 25 de Abril (uma série que que baptizei por as mansardas que Abril abriu), adiciono esta que tem por personagem central António de Spínola (1910-1996), exibindo-lhe em primeiro lugar o pensamento (Portugal e o Futuro) e depois a sua consagração nas capas das revistas internacionais de Maio de 1974 logo a seguir ao golpe. Mas somando um e a outra, a devoção pessoal que o próprio suscitava entre os seus seguidores e ainda a certeza messiânica de se ter uma certa ideia do seu país, o julgamento da História é implacável na distinção do quanto é diferente ter tido isso tudo e ter conseguido resultados. Pode concluir-se do trajecto de Spínola depois de 1974 que ser-se general e ter uma ambição política equivalente não chegou para se ser um outro de Gaulle.
¹ Alusão a uma passagem célebre das Memórias de Charles de Gaulle: Il est tout à fait vrai - je dirais que c'est ma raison d'être - que depuis toujours, et aujourd'hui, je me fais de la France, en effet, une certaine idée… (É realmente verdade - posso dizer que é mesmo a minha razão de ser - que desde sempre, até agora, sempre tive da França, efectivamente, uma certa ideia...)

TSF: «VÃO DAR BANHO AO CÃO!»


Já foi há mais de dez anos que Lili Caneças irrompeu por um programa televisivo de Herman José mostrando-se agastada com a forma como ali era repetidamente tratada. Aparentemente a coisa teve algum impacto no rating de audiências de um programa que por aqueles dias se arrastaria penosamente, com o povão, mais uma vez e não pela última vez, saturado do Herman. Uma revisão atenta da cena contudo, é demonstrativa de como a cena foi consertada, com a câmara a seguir Lili Caneças logo desde a sua entrada em cena, confirmando, para lá de qualquer dúvida, que o realizador e o operador a conheciam de antemão. As discussões que depois pudessem existir sobre a veracidade da cena são, por um lado, elogios implícitos à capacidade dramática da amadora Lili Caneças, e por outro, demonstrações de até aonde pode ir a obtusidade daqueles que não se disponham a ver o que é óbvio. Haverá hoje quem esteja ainda convencido que Vale e Azevedo foi um excelente presidente para o Benfica. Mas o que é importante destacar neste caso é como o episódio nos educou no cepticismo para outras encenações do mesmo género.
A notícia do dia – sobretudo para a TSF – é que os seus estúdios foram ocupados esta manhã, por volta das 8H30, por um grupo de mais de 50 pessoas que, empunhando livros, entre os quais a Constituição da República Portuguesa, exigindo que se cumprisse o Direito à Liberdade de Expressão, dando voz às minorias. Expressões que identificam o grupo como um grupo de homens e mulheres de várias idades que garante não ter qualquer filiação partidária fazem-me lembrar, veterano que gosta de se lembrar do PREC, aquelas manifestações rigorosamente apartidárias dessa época que eram convocadas por comissões de trabalhadores, de moradores e outras organizações populares de base... Mas, curiosa mesmo, é a escolha da hora por parte destes ocupantes que, como os conspiradores dos golpes de Estado (esta minha associação deve ter a ver com a proximidade do 25 de Abril), gostam de se concentrar assim pela fresquinha da manhã, fenómeno que não terá decerto nada a ver com as recentes contratações de peso da concorrência para programas àquela mesma hora ­– estou-me a lembrar, por exemplo, da de Ricardo Araújo Pereira para a Rádio Comercial. Agora mais a sério, oh estrategas do marketing da TSF: e se fossem dar banho ao cão?...
Adenda: Só seis horas depois de ter tido lugar é que a TSF veio a noticiar a sua "ocupação" com as aspas que devia ter tido desde o princípio. Entretanto, pude ler no facebook comentários levando o incidente a sério que imagino o quanto envergonharão agora quem os escreveu. A leitura daqueles disparates faz-me lembrar o episódio da transmissão da Guerra dos Mundos na CBS norte-americana em 1938 que alegadamente terá provocado um pânico que levou centenas de milhares a fugir - embora nunca se explique para onde... Costuma ser referido como um exemplo do poder mediático. Mas considero-o mais um exemplo da infinitividade da Estupidez Colectiva que, como se vê pelos exemplos acima, é muito fácil de reencenar.

23 abril 2014

A GARGALHADA DO BORDA D´ÁGUA

O episódio já tem quase um ano, a sua avaliação estará expurgada daquele imediatismo e é por isso que o julgo merecedor de vir a ser considerado um dos episódios mais significativos do estilo de actuação deste governo, mesmo apesar da legislatura ainda não ter terminado. O preâmbulo explica-se sucintamente: alguns dias antes, num discurso no parlamento, o ministro das Finanças Vítor Gaspar justificara, naquele seu estilo discursivo inolvidável, a quebra preocupante na rúbrica de investimento em 2013 pela afectação adversa das condições meteorológicas no primeiro trimestre do ano que afectaram a actividade da construção.

Quando a comissão parlamentar se reuniu posteriormente com o ministro da Economia Álvaro Santos Pereira, o deputado comunista Bruno Dias preparou uma blague a pretexto daquelas declarações, empunhando um tradicional almanaque do Borda d´Água. Mas, como se vê nas imagens abaixo, o visado rapidamente roubou a cena ao autor da facécia, desatando a rir-se dela e implicitamente do seu colega de governo, sinal de uma descompostura governamental que tem sido recorrente desde aí. Estava-se a três semanas - embora então não se soubesse - da demissão de Gaspar e da remodelação em que Santos Pereira também abandonou o governo.

OS «CRIMES» DO «INSPECTOR» VARATOJO

Figura mediática (sobretudo televisiva) de antes do 25 de Abril, a imagem de Artur Varatojo (1926-2006) estava indissociavelmente ligada à criminologia e à literatura policial. Foi por isso com alguma surpresa que, nas semanas que se seguiram ao 25 de Abril, os leitores dos jornais o viram a ele (entre muitos outros), a desmentir em anúncios pagos (abaixo) que alguma vez tivesse pertencido ou estado ligado à PIDE. Houve quem atribuísse essas preocupações ao epíteto forjado de inspector que adoptara por causa da sua imagem.
Porém, uma possível explicação alternativa, mais séria e mais elaborada, para o que parecia a defesa contra uma sanha persecutória contra o Varatojo podemos encontrá-la na capa de uma revista que foi publicada dois meses e meio depois do 25 de Abril e onde se empilham casualmente fichas de funcionários da PIDE e ali encontramos uma de um homónimo (assinalada a branco) do nosso amável investigador policial. Eram tempos de Liberdade mas onde era impróprio usurpar títulos de inspector e possuir-se um apelido inconveniente…
Este é um texto que, conjuntamente com o do Caçador de Pides mais abaixo e glosando mais uma vez José Carlos Ary dos Santos, poderá constituir uma série a que, pela imaginação e por isso orientadas para o céu, se pode dar o título de, em vez de portas, as mansardas que Abril abriu

22 abril 2014

«DIGGING IN THE DIRT»


Foram doze avaliações da troika sob o suspense que numa delas as circunstâncias provocassem um apelo inesperado como o do refrão do vídeo acima – This time you've gone too far

Mas não… – Digging in the dirt, wherever it leads us.

Something in me, dark and sticky
All the time it's getting strong
No way of dealing with this feeling
Can't go on like this too long

This time you've gone too far
This time you've gone too far
This time you've gone too far
I told you, I told you, I told you, I told you
This time you've gone too far
This time you've gone too far
This time you've gone too far
I told you, I told you, I told you, I told you

Don't talk back
Just drive the car
Shut your mouth
I know what you are
Don't say nothing
Keep your hands on the wheel
Don't turn around
This is for real

Digging in the dirt
Stay with me, I need support
I'm digging in the dirt
To find the places I got hurt
Open up the places I got hurt

The more I look, the more I find
As I close on in, I get so blind
I feel it in my head, I feel it in my toes
I feel it in my sex, that's the place it goes

This time you've gone too far
This time you've gone too far
This time you've gone too far
I told you, I told you, I told you, I told you
This time you've gone too far
This time you've gone too far
This time you've gone too far
I told you, I told you, I told you, I told you

Don't talk back
Just drive the car
Shut your mouth
I know what you are
Don't say nothing
Keep your hands on the wheel
Don't turn around
This is for real

I'm digging in the dirt
Stay with me I need support
I'm digging in the dirt
To find the places I got hurt
Open up the places I got hurt
I'm digging in the dirt
Stay with me I need support
I'm digging in the dirt
To find the places I got hurt
To open up the places I got hurt

Digging in the dirt
To find the places we got hurt
Digging in the dirt
To find the places we got hurt
Digging in the dirt
To find the places we got hurt

OS EXÉRCITOS INVISIVEIS E UMA VISÃO ONCOLÓGICA DA GUERRILHA, DA SUBVERSÃO E DO SEU COMBATE

Desde que o descobri faz já alguns anos como jovem falcão defendendo a política externa da administração Bush numa coluna do LA Times que Max Boot (1969- ) se descapotou e se aburguesou, apresentando-se com o ar respeitável da fotografia acima por ocasião da edição da sua mais recente obra Invisible Armies, cuja edição paperback (mesmo assim a um preço puxado: 24,78 € na FNAC), data já deste ano. Tendo por tema a história da guerrilha trata-se de um excelente livro que consegue aquele equilíbrio de não poder ser desdenhado pelos académicos mais presunçosos embora ainda seja de leitura acessível para os leigos. É um progresso em relação a um livro reputado, relativamente recente e sobre (quase) o mesmo tema, como Les Guerres Irrégulières: XXe – XXIe Siècles de Gérard Chaliand (2008).
 
O que não se pode ser esquecido enquanto se lê a obra é que Max Boot é, em primeiro lugar, norte-americano e, em segundo lugar, republicano hard-liner. E isso obriga-nos a rectificar continuamente os temperos à medida que se lê o livro, e recordando constantemente aquilo que lá não aparece, porque ao autor não lhe interessa nada (literalmente). Começando por um exemplo deste último aspecto, para aqueles que tiverem curiosidade em saber o que aparece no livro sobre as três guerras que Portugal travou em África, note-se que no índice remissivo a palavra Guiné-Bissau aparece apontada duas vezes, Moçambique três e Angola quatro; em contrapartida, só a expressão Al Qaeda no Iraque (há uma outra contagem especifica para a palavra Al-Qaeda propriamente dita...) tem uma dúzia de menções. E quanto ao primeiro aspecto, chegam a ser divertidos os contorcionismos de Max Boot para, enquanto narra a Guerra do Vietname, (não ter de) explicar porque, dispondo do contributo dos melhores teóricos (como David Galula, de quem aqui já falei) e dos melhores artífices (com provas dadas nas Filipinas como Edward Lansdale - desse ainda aqui não falei...) da contra-subversão de todo o Mundo, o envolvimento dos Estados Unidos na questão vietnamita (1954-1975), evoluiu como se viu e teve o desfecho que se sabe.
Contudo, mais do que um episódio ou um punhado de outros três de um império colonial de uma potência mediana como a nossa, torna-se indiscutível o valor do quanto a organização do livro nos ajuda a pensar o fenómeno do aparecimento das guerras subversivas e da forma de as contrariar. Sendo um livro que se pretende de uma abrangência histórica, torna-se evidente com a sua leitura quanto o critério escolhido para seleccionar uns episódios em detrimento de outros (é o caso dos três que nos dizem mais directamente respeito) pode ser contestável. Mas também há que reconhecer que seria sempre assim, qualquer que fosse o critério escolhido. Nos 130 comentários que o livro já recolheu na página da Amazon, há lá objecções a omissões e inclusões de episódios históricos de guerrilha para todos os gostos. Mas os comentários que me deixaram pensativos foram aqueles (poucos) que questionaram a definição e o âmbito do tema que Max Boot se propôs abordar.
 
A nossa tendência para as classificações tende por vezes a forçá-las a assumir formas que o desenvolvimento dos conhecimentos mostra depois não serem as mais adequadas. Lembro-me que já aqui neste blogue falei à época do caso da reclassificação de Plutão que, de planeta mais longínquo do Sol foi rebaixado a planeta-anão mais próximo do Sol. Mas, para que o paralelo com estes casos das guerras subversivas seja mais evidente, é preferível utilizar o exemplo do Cancro, doença de todos conhecida, contra a qual se costuma dizer que se trava uma batalha. Na verdade não se travará uma, mas inúmeras batalhas em dispersíssimos campos de combate, contra adversários que, por razões práticas e científicas, passaram a ser normalmente identificados pela localização do tumor original: mama, próstata, pulmão, colo-rectal, etc. As taxas de sucesso dos tratamentos de cada caso podem variar (apenas dois exemplos) dos 84% a cinco anos no caso do linfoma de Hodgkin (um tipo de cancro do sistema linfático) aos terríveis 6% (no mesmo período) no caso do carcinoma do pâncreas. Uma definição do que pode constituir uma vitória nestas variadas frentes de combate depende assim (e muito) das circunstâncias.
Como um tratamento contra um cancro, a história de uma subversão dependerá do local onde teve lugar, do estado geral da sociedade nesse momento, do momento em que foi identificada pelos poderes, de inúmeros outros factores cuja transposição não será tão imediata como estas mencionadas. Por outro lado e para citar apenas alguns exemplos de guerras subversivas apresentadas em Invisible Armies, os britânicos bem podem apresentar a sua retirada da Malásia como um sucesso, mas como é que isso pode ser comparável com o que aconteceu na Argélia com os franceses, se estes não tinham a intenção de descolonizar? A vitória britânica na Malásia só pode ser apresentada como tal porque as expectativas do que os britânicos poderiam obter politicamente da situação eram, desde o princípio, mínimas: uma saída digna. Se os franceses a isso se dispusessem teria, pelo menos, havido uma outra Guerra da Argélia. Será também importante destrinçar quando quem tenta travar a subversão é a potência colonial, e os objectivos a que esta poderá aspirar, ou é uma superpotência voluntariosa (como os Estados Unidos no Vietname ou a União Soviética no Afeganistão), e os objectivos específicos – mas mais flexíveis – delas. Será indispensável considerar também o poder estratégico da potência envolvida, que é quase tão importante quanto a intensidade da subversão. Portugal, embora praticamente omitido no livro, seria um peso pluma nessa classificação. Em suma, assemelhando-se ao que no parágrafo acima descrevi a respeito dos variados cancros, por detrás de uma mesma designação genérica de guerrilha e de subversão, haverá decerto especificidades na classificação (e teria havido certamente especificidades nos tratamentos possíveis) que teria sido preferível incluir nas análises comparativas produzidas pelo livro de Max Boot. E um livro tão sistemático padece disso.

21 abril 2014

MANUEL SÉRGIO, O PSN E UMAS LIÇÕES DE DEMOCRACIA

Num artigo hoje publicado em A Bola, Manuel Sérgio começou tipicamente por evocar quando há mais de quarenta anos encetou uma análise epistemológica do desporto que o levou, desenhando ainda tremulamente as palavras, pela consciência dos seus limites, ao seio das ciências hermenêutica-humanas. Na continuação percebe-se o quanto o imodesto autor daquelas frases de estilo tão personalizado acredita que Jorge Jesus lhe deverá pelo seu sucesso do momento… Mas, mais do que escrever daquela forma rebuscada e quase ininteligível, o que é interessante em Manuel Sérgio Vieira e Cunha, mais conhecido pelos dois primeiros nomes (...como José Sócrates), é que ele fala de forma convicta e tal qual como escreve. Quando se apresentou como cabeça de lista no círculo de Lisboa pelo Partido da Solidariedade Nacional (PSN) às eleições legislativas de 1991, a sua aparição televisiva nos tempos de antena do PSN (ainda só havia a RTP) tornou-se num inesperado fenómeno de popularidade comunicativa.

Mesmo no universo dos pequenos partidos, o partido era recente (1990), não parecia possuir quaisquer financiamentos especiais, a sofisticação do marketing promocional era mesmo risível (aprecie-se acima a imagem do candidato e o símbolo do partido), não gozava da simpatia mediática de um PSR de Francisco Louçã, nem dos pergaminhos históricos na política portuguesa de um MRPP de Garcia Pereira, mas os tempos de antena do PSN (onde quase só Manuel Sérgio aparecia e onde ele praticamente monologava) eram um verdadeiro sucesso. Havia quem dissesse maledicentemente que nem o próprio percebia o que dizia, mas era daquelas figuras a que se atribui o epíteto de comunicador, de onde o espectador sai embalado (...à semelhança do que viria a acontecer e ainda hoje acontece com Marcelo Rebelo de Sousa) e não tem dúvidas em elogiar a beleza do discurso, embora possa não ter compreendido nada do conteúdo.

No dia das eleições, o PSN e Manuel Sérgio receberam 96.000 votos, mais 50% do que o academismo brilhante do PSR e Francisco Louçã (64.000), mais 100% do que o militantismo arrogante do MRPP e Garcia Pereira (48.000) e, sobretudo, por causa do seu brilhantismo discursante (que os politólogos – que ainda não se chamavam assim – reputavam de penetrar muito eficazmente na classe dos reformados), Manuel Sérgio tornou-se o único deputado eleito naquelas eleições por uma dessas pequenas formações políticas. Mas, ao contrário da de Acácio Barreiros (1976-79), que pelos seus méritos transformara a existência do deputado da UDP num adereço bem-quisto da casa da Democracia portuguesa, o desempenho como parlamentar de Manuel Sérgio, malgrado os requintes na prosa e na oratória foi olvidável, pelo menos assim o consideraram os seus eleitores: nas eleições seguintes, em 1995, o PSN recebeu menos de 13.000 votos.

As duas lições de democracia de todo este episódio é que, numa primeira fase, os políticos que têm um discurso de que o povo realmente gosta (caso de Manuel Sérgio) não são propriamente aqueles que os jornalistas acham que o povo deve gostar (caso de Francisco Louçã); e numa segunda fase, esse mesmo povo também parece saber avaliar quanto esse mesmo discurso de grandes méritos estéticos e que tanto o seduzira à primeira vista se revela afinal inconsequente... Atendendo a que o artigo de Manuel Sérgio hoje publicado em A Bola é o 25º de uma série, os jornalistas é que parecem ser um pouco mais lerdos do que o povo nesta última avaliação.

JESUS RENOVA

Como já se deve ter apercebido quem visitar regularmente este blogue, onde estiverem aqueles sentimentos mais expressivos das massas populares… eu esforço-me para estar do outro lado. A Humanidade é frequentemente muito ridícula e não gosta que lho recordem mas há quem adore recordá-lo. A propósito da sua volubilidade, esta imagem onde a cara de Jorge Jesus é caridosamente impressa em cada uma das folhas de um rolo de papel higiénico¹ apareceu pela internet há cerca de um ano e considero este o momento perfeito para o recordar… tornando a realçar que Jorge Jesus ganha mais do que qualquer banqueiro, mas que a felicidade de um povo, mesmo nas vascas da penúria, parece não ter preço.

...VIVA O BENFICA!...

Quando há uma meia dúzia de canais de televisão, incluindo os três exclusivamente dedicados à informação, que transmitem durante horas a fio rigorosamente as mesmas imagens de uma celebração e se compreende, para mais, como essa chachada unânime não foi mais do que a expressão televisiva de um fenómeno informativo global à escala nacional, é evidente que se descobre que houve outros assuntos interessantes que ficaram para trás, como noticiar a morte de Rubin Hurricane Carter (1937-2014).

Não se tratará de um grande cabeçalho mas é uma notícia interessante e diferente. Mais do que um boxeur, ele transformou-se no protagonista de uma história de uma injustiça numa América que se preocupava em ser racialmente justa (a dos 70s e 80s). Bob Dylan dedicou-lhe uma canção (1975, acima) e Denzel Washington veio a personificá-lo no filme The Hurricane (1999, abaixo). Mas... Viva o Benfica!... e as celebrações do seu 33º título, quando todos nos recordamos tão bem das do 32º, do 31º, do 30º…

20 abril 2014

OUTROS HERÓIS DE ABRIL – O CAÇADOR DE PIDES

Na ressaca dos dias imediatos ao 25 de Abril de 1974, o Rossio e as outras mais frequentadas da baixa da Lisboa tornaram-se locais de um amplo trabalho de mobilização das massas populares. Ficaram famosos alguns trabalhos de cobertura fotográfica dessa mobilização com a identificação e prisão de agentes da PIDE ainda em liberdade em sequências que chegaram a ser publicadas em reputados órgãos de informação internacional (acima). Contudo, os 40 anos que entretanto decorreram podem permitir-nos vê-las, às fotografias, com uma atenção que o fervor revolucionário daquela época não possibilitava: dediquemo-nos ao militar assinalado (qual barão desarmado de Camões...) que, na última fotografia da série acima, arrasta para longe da fúria popular o pide ensanguentado.

A sua cara está apontada directamente para a objectiva e a sua expressão é indiscutivelmente triunfal, embora a exuberância do bigode, que não tardaria a banalizar-se num exército que passara a estar sempre, sempre ao lado do povo, nos comece a dar os primeiros sinais de suspeita, por não ter podido crescer até àquela exuberância anti-regulamentar nos escassos dias então decorridos depois do 25 de Abril... Melhor: o lídimo representante do MFA envergava uma das vulgares fardas de trabalho (designada por nº 2, salvo erro) onde coexistia uma barreta de condecorações com uma (condecoração) propriamente dita (o que nunca se faz) e esta era, nada mais, nada menos, do que uma cruz de guerra, que se atribui por feitos em combate. Isso não impedia que esse heroísmo redobrado coexistisse com uma notória falta de aprumo (uma camisa desbarrigada, um porta-chaves demasiado à vista), talvez explicável pelos dois números que faltariam ao blusão para que ele assentasse devidamente ao nosso herói. Nas suas platinas nem galões nem divisas, sugerindo que, apesar do ar de quem lidera o destacamento, se estava perante um soldado básico, um condutor de homens inato, mas modesto...
Naquele ano de 1974, a Páscoa fora recente, calhara a 14 de Abril, o Carnaval fora por isso em finais de Fevereiro mas, em finais de Abril parecia ainda haver quem se divertisse mascarado em pleno Rossio e – bónus suplementar para o folião – sem que ninguém desse ou se incomodasse com isso… Suspeito que faltaria ao criador original (José Carlos Ary dos Santos) a capacidade de saber rir deste caminho aonde o poderia levar a ironia dos seus próprios versos, mas creio que esta também foi mais uma das portas que Abril abriu

19 abril 2014

PORTUGAL E ESTE GOVERNO SOBRE O QUAL JACQUES TATI BEM PODERIA TER FEITO UM FILME

Anda um gajo a preparar-se a sério para causar a impressão que sou um estadista, vêm-me estes gajos e fodem-me isto tudo… – poderá lamentar-se com toda a propriedade Pedro Passos Coelho depois de toda a aplicação dada à entrevista transmitida esta semana pela SIC, robustecendo-lhe a imagem. Que os leitores me desculpem o menosprezo, porventura injustificado, mas o humor em Portugal parece andar fácil, considerando a inecessidade de imaginar situações cómicas. Quando se publica uma notícia de jornal, em que o ministro da Economia - Pires de Lima: ideia de taxa sobre produtos nocivos 'é ficção' - desmente descaradamente a um Sábado aquilo que tem vindo a ser dito ao longo da semana pelos seus colegas das Finanças e da Saúde, o fenómeno parece assemelhar-se informativamente a uma daquelas pequenas cenas aparentemente banais e sóbrias mas desesperadamente absurdas dos filmes de Jacques Tati.

Os trocadilhos humorísticos a propósito da dita notícia do jornal podem acumular-se, fáceis: não é apenas a ideia da taxa sobre os produtos nocivos - para citar Pires de Lima - que será ficção, a existência de uma equipa governativa em Portugal (mesmo que não necessariamente nociva…) é outra ficção. E a liderança e a responsabilização política dos membros dessa inexistente equipa não nociva (recorde-se todo o episódio do documento das pensões…) é uma terceira ficção. Enquanto isso, imagina-se o tempo dedicado pelos assessores governamentais à entrevista relevando Pedro Passos Coelho, a aspectos não ficcionais (foto inicial) como a escolha do local para a realizar, à iluminação, à gravata a envergar pelo primeiro-ministro e ao ensaio das respostas a dar às previsíveis perguntas de José Gomes Ferreira. Ora Tati provou-nos que, em certas circunstâncias, para se ser ridículo basta que os outros nos saibam olhar com olhos de ver.

18 abril 2014

«RUSSIANS»

Ao mesmo tempo que a situação se parece agravar no Leste da Ucrânia parece recrudescer no conteúdo de muitas notícias cobrindo a situação um maniqueísmo reminiscente de um certo passado em que nos queriam fazer crer que as intenções dos nossos eram absolutamente puras e as dos nossos adversários totalmente maldosas. É chamando a atenção para o não retorno a essa fórmula simplista e fraudulenta daquele passado, que aqui se publica um mapa soviético mostrando a progressividade dos danos provocados por uma explosão nuclear (explicando em russo aquilo que estamos habituados a ler em inglês…) acompanhado do vídeo Russians de Sting, cujo refrão, maduro dos seus vinte e nove anos, nos diz ponderadamente que se espera que os russos também amem as suas crianças.

17 abril 2014

O CAROÇO DO PÊSSEGO DE TUXEDO

A história intitula-se A Chama Verde do Conquistador (La Flamme Verte du Conquistador no original, Hermann & Greg – 1974), o herói é Bernard Prince e passa-se num país da América Latina não designado (bem poderá ser uma Colômbia de antes da prosperidade da cocaína) onde se chocam nas gerações de uma mesma família de origem europeia duas concepções de alcançar a prosperidade: a do café que ali atraíra os europeus no Século XIX e XX ou as esmeraldas que os atraíra originalmente no Século XVI e XVII. Mas a personagem central dos acontecimentos é um vilão de impecáveis ascendências ameríndias denominado Tuxedo, a que o smoking que enverga como fato de trabalho confere um ar falsamente burlesco. E há a cena que quero realçar (abaixo), quase cinematográfica, na forma como, sem a subtileza que pretende demonstrar e com os seus dentes cariados, ele ataca gulosamente o coração de um pêssego e o cospe, ao caroço, prometendo um destino fatal aos seus arqui-inimigos e heróis do leitor da história.

VOTO EM BRANCO

Agora que se aproximam outras, convém recordar que nas últimas eleições europeias (2009), houve 164.900 eleitores (4,63%) que votaram em branco. Fossem esses votos computados como se de uma lista alternativa se tratasse e, neste país de inconseguimentos, teria havido uma ineleição de um eurodeputado. Nunca me pareceu uma anomalia que isso acontecesse: basta pensar nas dezenas de júris de concursos que se recusaram a atribuir um primeiro prémio pela falta de categoria dos concorrentes. O pormenor dessa ineleição virtual porém, apesar de significativo, perdeu-se no barulho da noite eleitoral informativa, apesar de possuirmos provavelmente uma das maiores densidades desses especialistas bizarros que dão pelo nome de politólogos, uma espécie de paineleiros futebolísticos transpostos para a política. Os comentários a essa manifestação surda de desagrado com a oferta política apresentada a essas eleições restringiram-se a um ou dois nerds dos números, e fizeram-no no meio daqueles espectáculos televisivos de luz e de cor (abaixo) em que o importante parece ser sobretudo captar os ambientes.
Este blogue já é suficientemente veterano para poder mostrar no seu arquivo os comentários a uma interrupção brusca da intervenção de Pacheco Pereira na SIC Notícias para se mostrar durante uma meia dúzia de minutos confrangedores uma sala vazia envolta numa semi-penumbra onde hipoteticamente iria falar José Sócrates (o PS saiu derrotado dessas eleições), ou então um reaparecimento memorável de José Luís Arnaut (PSD) à frente das câmaras em que conseguiu encaixar três vezes a mesma frase como resposta a três perguntas diferentes. Lembro ainda, e tenho pena de não ter conseguido guardar, outros momentos épicos dessa noite eleitoral, como aquele em que o cabeça da lista vencedora Paulo Rangel (PSD), a insistências irrecusáveis das sempre insuportavelmente efusivas jotas, teve que ensaiar uns contristados passos de dança à frente das câmaras ao som de uns encorajadores e quem não salta… Olé! Olé!... Não o podendo mostrar, aquilo que posso descrever é que Rangel a dançar, gorduchinho e de braços curtos e encolhidos como o conhecemos, não é propriamente um Fred Astaire…
 Na verdade, a informação que tanto gosta de se lamentar pelos condicionalismos que lhes impõem antes dos actos eleitorais, parece-me responsável pela parcialidade do tratamento dos resultados depois desses actos, nomeadamente quando o assunto envolve os votos em branco, aqueles que não produzem espectáculo. Tome-se um outro exemplo, ainda mais flagrante, o das eleições presidenciais de 2011. Aí, ainda houve mais eleitores a votar em branco: 191.300 (4,26%). Mas esse protesto discreto foi mediaticamente ofuscado pelo da votação no candidato palhaço José Manuel Coelho que até recebeu uma votação ligeiramente inferior: 189.100 votos. Confirme-se abaixo o tratamento marginal concedido aos votos em branco na 1ª página de um jornal do dia seguinte. Durante décadas, não ir votar, inutilizar voluntária ou involuntariamente o voto¹ ou votar em branco teve a mesma consequência prática. Só recentemente pessoas com responsabilidade na formação do regime se pronunciaram por reformas nos métodos eleitorais, casos de Jorge Miranda ou de Freitas do Amaral, contemplando nomeadamente a questão dos votos em branco. Percebe-se o que os assusta. Mas creio que já vêm tarde de mais: o aparelho mediático já está tão focalizado no espectáculo que se tornou num adversário de quem procure promover a dignidade desse método de protesto cívico. Mais do que pelo valor do voto, pela sua repercussão, há que reconhecer que a melhor forma de dar visibilidade ao desagrado com as opções eleitorais disponíveis já não é votar em branco: é votar no candidato que prometa partir a loiça toda
¹ Nas eleições europeias de 2009 houve quase 70.000 votos nulos, mais do que em qualquer das eleições europeias desde 1989, o que indicia que muitas das anulações nos boletins foram deliberadas.

16 abril 2014

OUTRAS MEMÓRIAS DE GRÃ-CRUZES DA ORDEM DA LIBERDADE

Para comparação com o que se escrevia no jornal da LUAR em pleno Verão Quente de 1975, apreciemos a primeira edição do Jornal Novo aparecida por esses mesmos tempos de PREC, uma semana antes da realização das eleições para a Constituinte (17 de Abril de 1975). Um dos cabeçalhos anunciava a libertação da capital do Camboja sem prenunciar os campos de extermínio de Pol Pot, consequência dessa libertação… Mas a nossa atenção deve centrar-se naquilo que era então possível prever e no editorial de apresentação do jornal, escrito pelo director Artur Portela Filho:

Lutar é criar

Porque cremos que a via socializante é a via mais eficaz, e mais rápida, para a construção de uma sociedade livre, justa e próspera, «Jornal Novo» é um jornal de vocação socialista. Não sendo partidário, «Jornal Novo» toma partido. Apoiando a construção da sociedade livre, justa e próspera que o socialismo pode ser. Apoiando as correntes que lutam por essa liberdade, por essa justiça, por essa prosperidade.
Sem negar a condição de portugueses, e de democratas, a quantos, simplesmente portugueses, e convictamente democratas, não pensam o mesmo que nós pensamos. No critério de que a reconstrução nacional, não sendo uma tarefa nem só militar nem só civil, é grande demais para um só partido. Mesmo que seja criado só para isso.
Para «Jornal Novo» lutar não é destruir, é criar. Para «Jornal Novo», informar não é bloquear, é esclarecer. Para «Jornal Novo», o rigor, a verdade, a crítica, são a própria condição do avanço seguro, e definitivo, da revolução democrática.
«Jornal Novo» não impõe a sua opinião aos leitores porque respeita a sua inteligência, a sua exigência, a sua vontade, dando-lhes, da realidade, uma visão tão completa, tão factual, tão jornalisticamente profissional quanto possível.
«Jornal Novo» toma posições, não impõe posições. «Jornal Novo» dialoga, não monologa. «Jornal Novo» não é uma hostilidade, quer ser uma afirmação. Jornalismo de acção, de intervenção, de esclarecimento, «Jornal Novo» recusa a violência, o sectarismo, a segregação. Sabemos por que lutamos e, também, contra o que lutamos, mas também sabemos que a melhor forma de luta é a participação serena e competente, na construção do nosso futuro.
Temos uma ideologia mas também temos uma profissão. E só podemos ser ideologicamente coerentes se formos competentes.
«Jornal Novo» não vem para ensinar nada a uma profissão ilustre e honrada. Vem ocupar, tranquilamente, um espaço. O espaço criado pela expectativa, pela exigência, pela impaciência crescente de consideráveis zonas de público leitor. Solidarizamo-nos com os nossos colegas, jornais e jornalistas, no que há de justo na sua luta. Mas não podemos de deixar de tentar responder, também nós, a quantos, e são cada vez mais, reclamam uma imprensa livre, e crítica, e profissional.
Este jornal é o que são os seus trabalhadores. Pela força da Lei de Imprensa e pela força do Estatuto Editorial que hoje publicamos. Mas será também o que forem os seus leitores. Na sua condição de leitores e, se quiserem, na sua condição de co-proprietários deste jornal.
Somos e queremos continuar a ser um jornal independente.
«Jornal Novo» é uma ideia maior do que a ideia de um jornal. É a ideia de uma sociedade transformada na lei, na justiça, na verdade, na convivência. Ideia que, sendo maior que a ideia de um jornal, não dispensa essa coisa tão rápida, tão efémera, tão frágil, mas tão incisiva, tão profunda, tão forte, que é um jornal.
Surgimos para aqueles que exigem mais do jornalismo. E por eles. Esperamos uma resposta. Não apenas a sua leitura. Mas a sua amizade, a sua crítica, a sua solidariedade. A solidariedade da sua crítica.
Pela defesa, pela afirmação, pela criatividade da Revolução Portuguesa.

Percebe-se quanto o que foi escrito está datado: era impossível à época ser-se outra coisa senão socialista ou social-democrata ou socializante ou social-qualquer-outra-coisa. Mas está lá todo um outro conjunto – a começar pelo pluralismo e pela tolerância – de elementos que constituem os verdadeiros alicerces da verdadeira Democracia e da verdadeira Liberdade. Como a LUAR o havia sido para as organizações políticas revolucionárias no pós-25 de Abril, também o Jornal Novo foi um fogo-fátuo do nosso jornalismo, desaparecido quatro anos depois, em 1979. Aceito que, pelo facto de apenas ter encabeçado um jornal onde se lutou por Ela durante o PREC (abaixo a edição de 5 de Agosto de 1975 contra a reintrodução de uma nova Comissão de Censura), Artur Portela Filho não mereça uma qualquer comenda da Ordem da Liberdade. Mas também teria sido muito mais decente se Jorge Sampaio – que, por coincidência, pode ler-se mais acima, foi um dos entrevistados da 1º edição do Jornal Novo – não as tivesse distribuído a eito, enquanto presidente, por aqueles que, como Palma Inácio e outros, nesses mesmos tempos se notabilizaram por ter lutado contra Ela.