31 março 2011

VICTOR VICTORIA (real)

Victor Victoria é o título de uma conhecida comédia musical de 1982. O filme tem por protagonistas Julie Andrews, James Garner e Robert Preston. A acção decorre em Paris em 1934, mas o realizador (Blake Edwards) não se aproveita desse facto para as poucas cenas exteriores que o filme contém (o filme veio até a ser adaptado para peça musical).
A razão principal para que a acção se situe em Paris está no argumento: uma cantora talentosa desempregada vê-se catapultada para a fama fazendo-se passar por um cantor homossexual que canta números musicais como se fosse um travesti... Julie Andrews até nem faz um papel muito convincente personificando um homem, embora o filme valha como musical.
O que é indispensável para a credibilidade do filme é a existência de um meio artístico exótico, semi-clandestino mas tolerante à homossexualidade e a outras peculiaridades, onde artistas marginais pudessem ser aceites e distinguirem-se. E isso, como todos os outros vícios, são sofisticações da Velha Europa, intoleráveis nos puritanos Estados Unidos da América.
As fotografias que ilustram este poste – da autoria de Brassaï – são típicas desse meio parisiense dessa época. Seleccionei uma de uma prostituta de gabarito médio, outra de um cabaret para lésbicas chamado Le Monocle, uma terceira de clientes de uma casa de ópio e um baile de carnaval com drag queens que se realizava num salão chamado Magic-City.
No vídeo abaixo, num trecho musical de Victor Victoria, Robert Preston interpreta para um auditório desse meio uma canção com um título mais cúmplice do que propriamente equívoco – Gay Paree. Porém, e como seria de esperar, as fotografias mostraram-nos como a realidade da época era muito mais baça e escusa do que aquela que nos é transmitida pelo filme...

30 março 2011

QUINZE SEGUNDOS QUE ARRASAM UMA REPUTAÇÃO...

A REVERÊNCIA AO PRÍNCIPE DE GALES

Ainda a propósito da visita de Carlos de Windsor a Portugal, vem a propósito evocar uma outra visita sua realizada há 30 anos atrás aos Estados Unidos. A recebê-lo na Base Aérea de Andrews (próximo de Washington D.C.) estava Leonore Annenberg, a Chefe do Protocolo¹, recém-nomeada (há apenas três meses) para o cargo pela Administração Reagan. Apesar desse estatuto ser recente, Leonore estava muito compenetrada e segura do que as regras de etiqueta impunham fazer naquelas circunstâncias, e assim cumprimentou o convidado ao mesmo tempo que lhe fazia uma reverência como se pode ver na fotografia abaixo².

O marido de Leonore, Walter, fora o Embaixador dos Estados Unidos em Londres de 1969 a 1974. Da etiqueta em vigor na Corte de Saint James percebi ela! Os Annenberg eram multimilionários e contribuintes substanciais para as campanhas dos candidatos republicanos à presidência que lhes agradeciam com nomeações para estes cargos mais ou menos honorários. A contrapartida desse estatuto é que, atacando-os e dada a sua proximidade com o titular da Casa Branca (abaixo), também se estava a atacar o Presidente. A reverência de Leonore Annenberg foi muito parodiada, considerada uma subserviência à velha potência colonial de 1776… Leonore mostrou compreender a situação e foi suficientemente flexível para que, na ocasião seguinte em que encontrou o Príncipe, escassos meses depois, não repetisse a reverência para evitar polémicas. Mas o que Leonore já não teve paciência foi para o atitude do staff da Casa Branca que, por ocasião do funeral do Presidente egípcio Anwar Sadat que envolveu a presença de Reagan e de mais três ex-presidentes norte-americanos (abaixo – Carter, Leonore, Nixon e Ford), usurpou as suas competências invocando a delicadeza da situação política internacional. Leonore demitiu-se: não havia chegado a completar um ano no cargo… ¹ O cargo faz parte do Departamento de Estado e o seu titular possui um estatuto equivalente ao de um Embaixador. ² Para esclarecimento dos leitores convém fazer aqui a distinção entre a reverência e a vénia, esta última implica a inclinação do tronco sem que as pernas se dobrem (na reverência o tronco mantém-se direito, apenas as pernas dobram) e a reverência e a genuflexão, em que no primeiro caso os joelhos não chegam a tocar o chão.

29 março 2011

CONSIDERAÇÕES REPUBLICANAS SOBRE A CORTESIA E O MÉRITO

Podem-se reconhecer as preocupações do Diário de Notícias em mostrar um equilíbrio salomónico na concepção da primeira página da edição de hoje (acima). Como anfitriões, numa das fotografias está Cavaco Silva e na outra José Sócrates. Como convidados, numa das fotografias está Carlos de Windsor e na outra Lula da Silva. Refira-se que, tecnicamente e ao contrário dos anfitriões, nenhum dos convidados é. Nem Chefe de Estado, nem Chefe de Governo. Mas enquanto Lula já o foi, o que nos merece a deferência cortês de o ter sido, Carlos apenas o será quando o for e se o chegar a ser, o que nos merece a deferência cortês de ser filho da sua mãe...

SOROR JOANA INÊS DE LA CRUZ

Entre as grandes figuras de cultura do Século XVII de origem ibero-americana, vale a pena contar os aspectos exóticos de Soror Joana Inês de La Cruz (1648-1695). Joana foi uma das filhas de uma relação entre um militar de origem basca destacada no México e de uma crioula – note-se que na América espanhola a classificação de crioulo se refere a alguém de ascendência exclusiva ou predominantemente europeia nascida localmente.

Por muito que eles tenham vindo a ser embelezados posteriormente, os relatos da sua infância parecem demonstrar que Joana era aquilo que actualmente se designa por uma criança sobredotada. E Joana nascera numa família (materna) que lhe podia propiciar os meios para satisfazer a sua curiosidade intelectual – terá aprendido por si a ler usando os livros da biblioteca do avô, adereço que naquele tempo não estava ao alcance de todos.

Por ter nascido numa sociedade colonial como a do México, a condição de ilegítima de Joana não se reflectiu num rebaixamento do seu estatuto social como teria acontecido certamente em Espanha. Foi aceite na Corte do Vice-Rei onde impressionou a ponto de se tornar dama de companhia da Vice-Rainha. Forçada a ser autodidacta (os estudos superiores estavam vedados às mulheres), veio a tomar votos na Ordem das Jerónimas.

Era difícil que Joana descobrisse uma alma gémea naqueles meios, que também não lhe impunham casamento: sua mãe tivera seis filhos de duas ligações sem se casar, uma das suas irmãs também. As condições em que a Ordem a autorizava estudar, escrever e receber visitas eram praticamente as mundanas. Possuía empregadas ao seu serviço. E Joana aceitava encomendas, daí o carácter heterogéneo das suas obras literárias.

Tendo sido excelente em tudo o que fazia, a vida de Soror Joana teve o ingrato resultado de nunca se poder tornar marcante porque a sua figura terá sido demasiado precoce para o tempo em que viveu. Simbólica e significativamente, o retrato pelo qual é mais frequentemente conhecida (acima) só foi pintado 50 anos depois da sua morte. Os mexicanos prestam-lhe a homenagem de a ter a ilustrar uma das suas notas de banco.

28 março 2011

VENEZA 1968

A fotografia foi colhida em 1968, na Praça de São Marcos em Veneza que é provavelmente o ou um dos locais mais turísticos do Mundo e por essa vez os protagonistas da fotografia foram outros que não (pela ordem habitual) a basílica, os outros turistas e os pombos que enxameiam a famosa Praça. São duas figuras anónimas mas indispensáveis para que a actividade possa prosseguir: um violinista à direita e um empregado de café do lado esquerdo, os dois trabalhando nas esplanadas dos cafés da Praça.

O que se consegue ler no olhar do primeiro, encavalitado, parece ser um alheamento ao que o rodeia que não corresponderá propriamente a uma concentração equivalente na peça que estará a tocar. Paradoxalmente, o próprio intérprete parece prestar tanta atenção à música ambiente quanto a cliente sentada de óculos escuros. No café do lado, o empregado levanta uma bandeja de uma mesa dedicando ao fotógrafo um olhar enfadadíssimo. Quantas vezes em férias não nos teremos cruzado já com eles?

27 março 2011

POESIA… COMO A ÁGUA CASTELLO

Ao referir-me a duas liberdades no poste anterior, esqueci-me da liberdade mais livre de todas… a liberdade poética! E não tardou quem, livremente, na caixa de comentários me classificasse de… poeta com cinco pontos de exclamação!!!!! Foi muita generosidade de quem assim o fez, que nos dias que correm, além da poesia, temos a prosa poética, a poesia prósica e a prosa prósica alcunhada de poesia. Enfim, suponho que, com tal liberdade, a poesia combina com tudo, como acontecia com a Água Castello nos instantes finais deste antigo anúncio televisivo abaixo:

AS LIBERDADES

A liberdade que mais se gosta de evocar é a idílica, a destituída de responsabilidades, como a desta gaivota que voa pelo porto de Nova Iorque numa manhã de nevoeiro, hora prevista para a chegada de D. Sebastião. Mas por detrás da gaivota vemos uma Liberdade mais concreta e responsável, ali erigida em estátua pelos homens. E é essa Liberdade mais sólida e mais exigente que nos torna a todos responsáveis pelas nossas opções colectivas passadas, por esta situação a que o nosso país chegou e pela forma como a iremos ultrapassar… A fotografia é de Edi Weitz.

26 março 2011

PODEM NÃO VOTAR NA MANUELA MAS VOTEM NO IRMÃO DELA

Eu não me chamo Jorge Sampaio, por isso espero que este meu apelo tenha mais sucesso do que aqueles que ele fazia - e ainda faz com os mesmos resultados... Sportinguistas: Votem Dias Ferreira! Não desperdicem esta magnífica oportunidade de dar visibilidade a Paulo Futre como o mais animado Director Desportivo em Portugal. Coloquem os interesses nacionais à frente dos do vosso clube: Animem o País! Como o próprio Futre vos pede numa passagem do vídeo abaixo (ao 1:25): - Sócio! Por favor... Peço-lhes por favor... Senão paro, não é?! Estou superconcentradíssimo!!!

COMO O DESPEITO ALHEIO NOS PODE CONSOLAR TANTO...

É nossa sina esquecermo-nos depressa dos nossos sucessos. Mas há quem não esqueça. É por isso reconfortante lermos as notícias sobre Portugal tal qual elas são apresentadas num jornal canadiano (Toronto Sun) com um artigo que começa assim: O país que ocupa a cadeira do Conselho de Segurança da ONU que o Canadá cobiçava está à beira do colapso político e económico – uma ironia que não passou desapercebida apesar da participação canadiana nos raids de bombardeamento da Líbia. É verdade que o Toronto Sun não passa de um tablóide mas nestes tempos críticos não podemos ser esquisitos sobre quem se dispõe a nos levantar assim a moral…
Adenda: A ironia terminal desta história é que no dia seguinte a Portugal, foi o Canadá que entrou por sua vez numa crise política com impacto financeiro no seguimento da aprovação de um voto de desconfiança ao governo minoritário conservador no Parlamento Federal em Otava...

25 março 2011

SINAIS DE TENSÃO NA CDU?...

Não pode ser por causa do frenesim político que vivemos que podemos deixar escapar outros momentos inéditos que se vivem na política portuguesa. Segundo se lê nos jornais, por um lado os comunistas pretendem que as próximas eleições se realizem nos princípios de Junho; por seu lado os ecologistas verdes (acima) propõem que elas tenham lugar a 19 de Junho, o que se considera já meados de Junho. Parece viver-se uma divergência raríssima na tradicional harmonia que une os dois membros da Coligação Democrática Unitária. Será que esta última sobreviverá a um tal teste à sua coesão?...

EDUARDO CHIBÁS, O CUBANO PADROEIRO DOS COMENTADORES POLÍTICOS

Ainda um pouco na continuidade da referência que fiz num poste de há uns dias ao filme Network e à personagem Howard Beale, o jornalista comentador das análises políticas radicais que prometera suicidar-se em directo, creio que vale a pena falar de Eduardo Chibás, o político e comentador cubano que terá, com toda a probabilidade, servido de inspiração ao argumentista daquele filme, Paddy Chayefsky.
Eduardo Chibás nasceu em Santiago de Cuba em 1907 e pertencia a uma destacada família cubana: há um website da família incluindo a sua biografia, a do pai e do irmão. Veio a dedicar-se à política. Fundou em 1947 um partido, o Partido do Povo Cubano, mais conhecido como Partido Ortodoxo, o grande rival do Partido Autêntico. E tornou-se uma das revelações precoces como comunicador através de um programa de rádio.

Eddy Chibás dispunha de uma hora semanal, todos os Domingos às oito da noite – ou seja, uma hora mais cedo do que Marcelo Rebelo de Sousa tem hoje na TVI… E, como acontecia com Medina Carreira no recém-cancelado programa da SIC Notícias, mas de forma mais concreta, o prato forte do programa eram as denúncias de corrupção. Até que um dia (5 de Agosto de 1951), Chibás levou o espectáculo longe demais…

Por não ter podido fornecer as provas que substanciassem a acusação de corrupção que fizera contra Aureliano Sánchez, o então Ministro da Educação, Chibás atentou contra a própria vida em directo no programa – mas com tanto azar que era um jingle comercial que estava no ar no preciso momento em que disparou o tiro, que afinal não foi ouvido pelo auditório… Gravemente ferido, permaneceu 11 dias em coma antes de vir a falecer.

Alguns anos depois, com a vitória da Revolução cubana em 1959, Eduardo Chibás veio a ser beatificado pelo regime: Fidel Castro fora originalmente um militante ortodoxo. Contudo, Chibás será sempre alguém mais fácil de reverenciar do que de emular… Já se imaginou quantos comentadores/actores políticos teriam tido de se suicidar depois de terem proferido acusações em público que depois não conseguiram substanciar?…

24 março 2011

- CADA VEZ MAIS PORREIRO, PÁ! PORREIRO!

Na ressaca dos acontecimentos de ontem, descobre-se que talvez José Sócrates não tenha conquistado nem Manhattan, nem sequer Berlim, apenas a atenção cortês de Fräulein Merkel, unsere kanzlerin (a nossa chancelerina, acima), e isso certamente devido ao charme pessoal dele. Talvez não seja apropriado devido à seriedade da situação que atravessamos – quem não tem dinheiro não tem opiniões – mas, a propósito da promoção da nossa imagem junto dos nossos novos governantes nestes dias difíceis, acho pertinente incluir um videoclip antigo dos Heróis do Mar profeticamente intitulado O Inventor. E, para não deixar cair as grandes frases históricas num injusto esquecimento, relembre-se que isto está cada vez mais: – Porreiro, pá! Porreiro!

DO YOU KNOW...?

Como consta da letra inicial da música insuportavelmente açucarada de Diana Ross (Do You Know Where You're Going To?), apetece perguntar a José Sócrates nas circunstâncias actuais se ele sabe para onde vai, se está a gostar das coisas que recentemente a vida lhe trouxe, para onde é que ele vai, enfim, se nos pode dizer mais qualquer alguma coisinha…¹

Não gosto de usar o blogue para análise política, mas parece-me haver um conjunto de verdades políticas evidentes que não vejo serem expostas com a ênfase que merecem. Que a decisão para a constituição de um governo minoritário depois das eleições de Setembro de 2009 é da responsabilidade de José Sócrates. Ainda recentemente, na entrevista dada a Ana Lourenço na semana passada, Sócrates deixou escapar como não teria tolerado interferências políticas do seu parceiro minoritário. Ora nunca foi assim que se arranjaram parceiros…

Que um governo que só dispõe de uma maioria relativa no parlamento tem uma maioria absoluta de deputados que lhe fazem oposição. Compete à habilidade política de quem governa impedir que as oposições se coordenem para bloquear a acção governamental. E que aí, com a distribuição de lugares do parlamento saído das eleições de 2009, o PS poderia conseguir maiorias absolutas alternativas à do PSD (PS + PSD), associando-se quer ao CDS (PS + CDS), quer aos dois partidos à sua esquerda (PS + BE + PCP).

Que, atendendo à evolução das taxas de financiamento da dívida, o governo não se tem mostrado competente para resolver os problemas financeiros nacionais. A propaganda pró-governamental pode concentrar-se (e fê-lo) na falta de credibilidade da alternativa PSD mas está a iludir a essência da questão. Tenho José Sócrates – e o seu discurso de ontem comprová-lo-á – na conta de pessoa extremamente combativa mas impõe-se a conclusão que a responsabilidade da crise que ontem se iniciou lhe pertence completamente.

¹ Do you know where you're going to?
Do you like the things that life is showing you
Where are you going to? Do you know...?

23 março 2011

DEZOITO MILHÕES E MEIO DE PAPELUCHOS

Parece-me que há qualquer coisa de perverso nos critérios editoriais do jornalismo moderno. Houve as centenas de milhares de pessoas concentradas na Praça Tahrir, no Cairo, a mereceram as primeiras páginas e a cobertura noticiosa dedicada de centenas de correspondentes estrangeiros destacados para o Egipto durante dias. Mas o resultado do referendo para as alterações à Constituição que ali teve lugar a 19 de Março passado não passou do fundo dos noticiários. Por curiosidade, compareceram ao acto um pouco mais de dezoito milhões e meio dos quarenta e cinco milhões de eleitores (afluência de 41%) e houve catorze milhões (77%) que se pronunciaram a favor das alterações propostas… e ainda não se inventou uma maneira das eleições produzirem imagens espectaculares!

O MARATONISTA

Este é um poste críptico à boa maneira dos textos subentendidos do tempo em que havia censura a sério. Na fotografia, a nossa atenção centra-se naquele corredor que levanta os dois braços no ar de forma exibicionista e a alusão é, evidentemente, a José Sócrates, que fez das suas fotografias a praticar jogging um acto recorrente de promoção pessoal. Mais o tempo passa, quase tudo parece apontar para que o maratonista tropece hoje no Parlamento e se venha a estatelar no chão… É para se tornar a levantar?...

22 março 2011

AS VÁRIAS CLASSES DOS COMBOIOS DE PASSAGEIROS SOVIÉTICOS

Mais do que à própria Revolução de 1917, os comboios na Rússia estiveram fortemente associados à fase que se seguiu, a da implantação e consolidação do poder soviético. Quem se lembrar dos filmes dos tempos da Guerra Civil (como Dr. Jivago) recorda-os discretos mas omnipresentes e fundamentais para o desfecho. Nesse contexto, não parece surpreendente que aquelas locomotivas mais aguerridas tivessem sido baptizadas com o nome de José Estaline (acima) numa época em que quase tudo recebia o seu nome…
O que será surpreendente é como, muito depois do fim do estalinismo, as locomotivas ainda continuaram a manter a sua estrela vermelha frontal dos velhos tempos. E havia um outro pormenor ferroviário que abalava profundamente as convicções socialistas dos muitos jovens militantes comunistas estrangeiros que visitavam a pátria do socialismo: num país cujo objectivo confesso era aboli-las visando a implantação do dito comunismo, podia-se escolher entre três ou quatro classes quando se pretendia viajar de comboio…
Pondo de lado a ideologia, a explicação para este desvio capitalista tem a sua lógica. Considerada a extensão do país a maioria das viagens são longas, demoram dias (o famoso Trans-Siberiano demora oito dias a percorrer os mais de 9.000 km entre Moscovo e Vladivostok) e as carruagens cama tornam-se por isso fundamentais. As opções à escolha são as de viajar em compartimento com dois (1ª Classe) ou quatro beliches (2ª Classe) ou ainda em espaço aberto com (3ª Classe) ou sem beliche para dormir (4ª Classe).
Claro que para os jovens militantes comunistas vindos do Ocidente capitalista que, depois da Segunda Guerra Mundial, até compactara as classes do transporte ferroviário de três para duas, abolindo a popular Terceira dos bancos de pau, esta complexidade sofisticada era, para além de mais uma grande conquista do socialismo, algo difícil de entender. Mas para espíritos abertos que conseguiam entender o propósito de proceder a uma invasão de blindados em Berlim, Budapeste ou Praga, a aparente contradição nunca foi nada demais...

21 março 2011

TRÊS BERLINENSES

São três fotografias de três mulheres berlinenses, separadas entre si por 38 anos. Na de 1945, a mulher jovem disputa com ar decidido a posse da sua bicicleta com o soldado soviético que a quer roubar. Na de 1961, a de meia-idade acena resignadamente, juntamente com o marido, para alguém que terá ficado do outro lado do muro.
Finalmente na de 1983, a velhota testa concentradamente a elasticidade das cuecas em saldo. No seu olhar vê-se que ela também podia ter andado a esconder a sua bicicleta dos russos e ter família e amigos que estavam do outro lado. Hoje que o Muro caiu, já ninguém, a começar pelos berlinenses, se lembrará desses tempos…

20 março 2011

A RESOLUÇÃO 1973

Que não fiquem quaisquer dúvidas como as fotografias da Praça Tahrir no Cairo (acima) são muito mais espectaculares que as da enorme Mesa Redonda do Conselho de Segurança da ONU em Nova Iorque (abaixo). Mas quem quer passar por analista destes assuntos tem de saber distinguir os sítios onde as coisas acontecem e os sítios onde parece que as coisas acontecem – o que não tem nada a ver com a espectacularidade das imagens e os considerandos sobre as revoluções e vontades populares que aparecem no balanço…
Na Mesa Redonda, representantes de 15 países aprovaram – com 10 votos favoráveis e 5 abstenções – a Resolução 1973 que estabeleceu uma base legal para a intervenção militar de alguns deles na Líbia. Como seria de esperar, enquanto se abstinham no voto, Rússia, China e Índia demarcavam-se pela porta das traseiras, lamentando a intervenção. Menos expectável, mas significativo do que vale a União Europeia em política externa, foi a abstenção da Alemanha, desalinhada dos votos dos seus aliados europeus…
É previsível que a intervenção aérea entretanto desencadeada – e sobretudo publicitada! – pela aviação francesa tenderá a neutralizar a superioridade militar que as forças governamentais líbias tinham vindo a exercer no terreno para grande desapontamento dos enviados especiais. O futuro do Coronel Gaddafi e do seu regime parece, a partir de agora e com este apoio aos rebeldes, mais comprometido do que nunca, mas o desejo de liberdade e as movimentações das massas árabes para a obter nada têm a ver com isso…

FOI VOCÊ QUE PEDIU UM PORTO FERREIRA?... (3)


O slogan publicitário é antigo e foi bem conseguido, tornando-se imediatamente reconhecível, associando uma marca de vinho do porto à distinção e à selectividade: – Foi você que pediu um Porto Ferreira? É o slogan ideal para ser parafraseado por causa de um evento recente com arremedos de também ter sido tão distinto e selecto que, dos presentes, até parece que não há quem não se ufane por lá ter estado: – Foi você que jantou com Pedro Passos Coelho?...

19 março 2011

A NOSSA «LUTA» CONTRA A CORRUPÇÃO

A forma discretíssima como (não) foi explorada a notícia da condenação do actual presidente da Académica a 4 anos e 7 meses de pena suspensa por corrupção (acima), torna-se eloquente quanto à percepção pela comunicação social de como a corrupção é aceite benignamente pela sociedade em geral, se o condenado não possuir notoriedade e anticorpos. Neste, como em muitos outros casos, creio que a culpa do estado geral das coisas é nossa, colectiva, e não do governo ou da oposição – são as Virtudes da Democracia!

18 março 2011

O REGRESSO DA PRAIA

Se já aqui havia publicado uma fotografia de Henri Cartier-Bresson sobre o lazer do povo no período entre as Guerras (1937), regresso hoje ao mesmo tema, mas agora com uma fotografia de Hugues Erre cerca de 35 anos passados. Está-se num fim de tarde de Verão e muitos dos que passaram um excelente dia de praia preparam-se agora para uma sessão gratuita de sauna dentro de um carro que esteve todo o dia ao Sol… A juntar a esse desconforto costuma haver sempre a preocupação (baldada) do dono da viatura em evitar que o carro se encha de areia, conforme se depreende pela reacção da passageira. E para que a cozedura dos infelizes se processe a um ritmo conveniente está prometido um engarrafamento, simbolizado pelas luzes de stop acesas do carro que está 20 metros mais adiante…

17 março 2011

UMA PEQUENA TEORIA DA CONSPIRAÇÃO... OU NÃO

É sempre mais apetecível que as conspirações sejam grandes, tenebrosas e envolvam os poderosos deste Mundo, alguns dos quais nunca antes ouvíramos falar. Mas dessas, são raras as que aguentam depois o teste dos factos. Mais frequentes e comezinhas, sem aspecto de tanta gravidade, são aquelas que costumamos designar por histórias mal contadas. Aí, encontramos versões que vão mudando, e é muito mais pertinente perguntarmo-nos se não houve intenções deliberadas nas versões inicialmente postas a circular…

O exemplo é um episódio do quotidiano do Porto, acontecido no passado dia 23 de Fevereiro: um assaltante foi surpreendido em pleno assalto numas instalações de um Multibanco, foi barrado por transeuntes, e ali ficou mais de uma hora, sequestrando com uma arma branca a assaltada, uma mulher de cerca de 40 anos. O furo jornalístico da notícia foi o de expor o método como o assaltante veio a ser dominado: um agente, disfarçado de enfermeiro do INEM, foi admitido no interior para tratar da refém e dominou-o (acima).

Acessoriamente às boas notícias com a resolução do sequestro, informava-se que a vítima apresentava "alguns ferimentos ligeiros" junto a uma orelha mas que ficara internada no Hospital. Quanto ao assaltante, o Tribunal decidira que ficasse em prisão preventiva. No dia seguinte, já passado o momento alto da notícia, ficava-se a saber que a vítima afinal fora esfaqueada 11 vezes e que fora submetida a uma intervenção cirúrgica. Uma semana depois, e apesar da vigilância, soube-se que o assaltante se suicidara na prisão

Está a correr um inquérito a esta última ocorrência. Será que ainda haverá algum órgão de informação interessado nas conclusões?... É bem possível que afinal nada haja a esconder mas, lembrando-nos do desfecho do sequestro da agência de Campolide em Agosto de 2008 (um sequestrador morto, outro ferido), para aquelas regras não escritas que regem na rua a relação entre polícias e ladrões, com tudo isto ter-se-á reforçado a que estabelece que sequestros com esta violência são desaconselháveis para os sequestradores…

O RECORD DO PROFESSOR SPLASH

Entre notícias seríssimas provenientes do Japão ou da Líbia, chega-nos uma da Noruega em que nos informam que Darren Taylor, por alcunha o Professor Splash, acabou de bater pela 13ª vez o seu Record do Guiness ao saltar de uma prancha situada a 10,98 metros de altura para uma piscina com apenas 30,5 centímetros de profundidade.
Como se observa, ao chegar à piscina o Professor Splash chapou instantaneamente mais de 500 litros de água borda fora! Ora qualquer leitor de Astérix sabe que o verdadeiro Record dessa modalidade pertence desde há mais de 2000 anos a Obélix que, sem precisar de balanço sequer, conseguiu despejar uma piscina inteira numas termas romanas…

16 março 2011

SICÍLIA 1943

Sicília, Verão de 1943. Um soldado enfermeiro da 3ª Divisão de Infantaria norte-americana prepara-se para realizar uma transfusão de sangue (ou soro?) a um camarada seu recentemente ferido, estendido numa maca. A presença de cinco civis em redor da cena mostra que a fotografia foi tirada numa zona segura, já recuada da frente de combate. Os pés descalços das três mulheres sentadas à porta indiciam a pobreza daquela aldeia siciliana. E a presença de uma moça jovem entre elas faz supor que os soldados norte-americanos gozavam de uma boa reputação de serem disciplinados e respeitadores. Mas a figura central da fotografia é a mais velha delas, que dedica ao soldado ferido um olhar como o de uma Madonna contemplando Jesus…

PARABÉNS A ANA LOURENÇO

Ela não tem uma corte de admiradores intelectuais que continuamente a felicitem – em meu entender excessivamente – pela argúcia como conduz as suas entrevistas, como acontece com Constança Cunha e Sá na TVI. Nem certamente receberá um ordenado mensal – em meu entender hiper-inflacionado – semelhante àquele que Judite Sousa estaria a receber na RTP. Eppur si muove, Ana Lourenço está de parabéns pela excelente entrevista a José Sócrates que ontem à noite conduziu na SIC.

Sempre calma, sem pose de quem está a colocar as perguntas mais inteligentes que se podem conceber, sem interrupções abruptas a destempo, mas sem deixar que o entrevistado deixasse que lhe dissesse as afirmações moduladas sempre proferidas com toda a sinceridade... e que normalmente não têm substância. Quanto a saber se o entrevistado esteve à altura da entrevistadora, deixo ao leitor a ligação para se informar. Apenas lhe digo que me pareceu que a palavra mais repetida foi confiança - sinal que é um produto escasso...

15 março 2011

BANDEIRAS DE UM MARXISMO APURADO

Ainda a respeito de um cartaz do poste anterior, mostrando as bandeiras com os pais reverenciados do comunismo, Marx, Engels, Lenine e Estaline (acima), vale a pena compará-las com a paródia abaixo de um marxismo muito mais apurado. Só que, como alguém escreveu, aqui tratar-se-á mais de uma corrente grouchista do marxismo

PELA FRENTE DE UM GRANDE HOMEM ESTÁ SEMPRE UMA GRANDE MULHER

O que é costume dizer-se é que, por detrás de um Grande Homem, está sempre uma Grande Mulher. Contudo, na fotografia abaixo, a Grande Mulher (Raísa) aparece adiante e não atrás do Grande Homem (Mikhail Gorbachev). Aliás, é ela que ainda acena enquanto o marido já está a pôr o chapéu e a preparar-se para entrar no avião. Como em muitos outros aspectos da vida política tardia deste último Secretário-Geral do PCUS¹, também esta fotografia parece ser uma subversão das tradições herdadas, tradições essas (abaixo) para as quais, qualquer bom comunista sempre tivera que mostrar uma devoção religiosa
Mikhail Gorbachev conseguiu romper aquele entendimento tácito entre a Informação do Leste e do Ocidente que impedia a divulgação daqueles pormenores de personalidade que tornassem simpáticos os dirigentes soviéticos aos ocidentais mas que, ao mesmo tempo, pudessem ser tidos a Leste como sinais de uma certa cedência ideológica (veja-se este poste). E Raísa adaptou-se com gosto (e proveito) àquela lógica norte-americana de dar um destaque informativo desmesurado aos cônjuges dos reais protagonistas. Apareceu um novo campo de disputa – o da fotogenia – na rivalidade global da Guerra-Fria
Pela primeira vez, no meio das costumeiras proclamações de amizade pessoal (já em 1973 Nixon convidara Brejnev para a sua própria casa…), os soviéticos iam à luta e não se saíam nada mal do confronto, como se observa pela fotografia acima. Conhece-se o resto da história. O sucesso dos Gorbachev no estrangeiro não foi acompanhado de um sucesso doméstico equivalente. As políticas de reforma (Perestroika) lançadas pelo dirigente soviético vieram a revelar-se um fiasco e os próprios fundamentos do império soviético começaram a vacilar acabando com a implosão da União Soviética em 1991.
Tendo contribuído para o fim da Guerra-Fria, Mikhail Gorbachev não é um dos Grandes Homens consensuais do nosso tempo, como um Nelson Mandela, por exemplo. Uma ampla maioria dos russos e os comunistas ortodoxos filo-russos de além fronteiras detestá-lo-ão, porque ele encarna o desmoronamento do império e a exposição das suas insuficiências. Vale a pena rematar que foi Raísa, por uma última vez, a responsável pela criação de umas tréguas na hostilidade da opinião pública russa para com o marido quando faleceu prematuramente com leucemia em Setembro de 1999, aos 67 anos (acima).

¹ A afirmação não está totalmente correcta. Durante o famoso Golpe de Agosto de 1991 que pretendeu derrubar Gorbachev, por cinco dias o cargo foi ainda ocupado por Vladimir Ivashko, para depois ser extinto.

14 março 2011

O FIASCO INFORMATIVO NA LÍBIA


Há que reconhecer como a cobertura noticiosa que se está a dar à Guerra Civil que se declarou na Líbia está a ter uma perspectiva de farsa por detrás da tragédia. A revolta dita popular pareceu surgir com o balanço dos acontecimentos da Tunísia e do Egipto e apareceram logo os patetas que, pelo princípio da semelhança, se apressaram a considerá-la imparável, sem se aperceberem sequer que a força é o factor essencial no derrube dos regimes autocráticos e que os militares que a detêm na Líbia sempre se mantiveram ao lado de Gaddafi.

Os enviados especiais das televisões foram despachados para Tripoli, capital da Líbia, cruzando-se com os refugiados estrangeiros que fugiam do país e ali ficaram a aguardar a reportagem do derrube com as imagens da população a celebrar nas ruas… Afinal, o resultado está a revelar-se um fiasco! Gaddafi tem um poder militar muito superior aos opositores, não tem vergonha de o empregar e está a escorraçá-los dos seus redutos. E as reportagens que de lá vêm (abaixo), em vez do bom povo a derrubar o ditador mau, mostram mau povo a apoiá-lo…
A questão líbia está longe de estar encerrada mas certamente não terminará daquela maneira lírica que os repórteres caqui como a Cândida Pinto previsivelmente antecipariam ter ido para lá cobrir…

13 março 2011

DEDICADO AOS ENTUSIASTAS DA MANIFESTAÇÃO DOS «À RASCA»

Não me apercebi que ontem tivesse havido algum discurso durante a manifestação dos à rasca. Se calhar houve, mas não foi transmitido por quem dedicou várias horas à cobertura do evento e, por outro lado, não descubro vestígios dele (ou deles) entre os blogues daqueles que se mostram mais entusiasmados com os acontecimentos. Em sua substituição deixem-me apresentar-vos este outro discurso que, tenho a certeza, não destoaria se tivesse sido lido ontem aos manifestantes à rasca:
Não preciso de lhes dizer como as coisas estão más.
Todos a gente sabe que as coisas estão más.
Está-se numa recessão.
Toda a gente está desempregada ou com medo de perder os seus empregos.
O dólar agora compra coisas que comprávamos por dez centavos.
Os bancos abrem falência, os comerciantes guardam uma arma por detrás do balcão.
Os criminosos passeiam-se à vontade pela rua
E não aparece ninguém que saiba o que fazer nem um fim à vista para isto tudo.
Sabemos que o ar que respiramos não é adequado, a comida que comemos também não
E que nos sentamos diante da TV enquanto o jornalista do ecrã nos informa que hoje houve quinze homicídios e ainda mais sessenta e três crimes violentos.
Como se isso fosse a coisa mais natural do Mundo.
Todos a gente sabe que as coisas estão más, pior que más.
É uma loucura, como se tudo por todo o lado fosse enlouquecer.
E é por isso que já não saímos, ficamos em casa e formatamos o Mundo em que vivemos cada vez mais à nossa pequena dimensão.
E o máximo que conseguimos reagir é quando dizemos:
Por favor, pelo menos deixem-nos sozinhos nas nossas salas de estar
Deixem-me ter a minha torradeira, a minha televisão, os pneus radiais do meu carro e eu deixo-me ficar calado.
Deixem-nos em Paz!
Bom, eu não tenho intenção de os deixar em Paz. Eu quero que vocês fiquem furiosos. Eu não quero que vocês protestem. Nem que vocês se revoltem. Nem que escrevam aos vossos deputados, porque até lhes poderia dizer o que deviam escrever.
Eu não faço a mínima ideia do que fazer a respeito da recessão. Da inflação. Dos russos. Do crime nas ruas.
O que eu sei é que, antes disso, é preciso que se enfureçam. Têm de dizer:
Sou um SER HUMANO, PORRA!!! A minha vida é VALIOSA!!!
Assim… quero que vocês se levantem. Quero que se levantem das vossas cadeiras. Quero que se levantem neste preciso instante. E que se dirijam para a janela, abram-na e pondo a cabeça bem cá fora gritem:
ESTOU FURIOSO COM´O CARAÇAS E NÃO VOU ATURAR MAIS ISTO!
Só depois é que iremos descobrir as soluções para a recessão e a inflação e a crise do petróleo.
Mas primeiro levantem-se das vossas cadeiras, abram a janela, ponham a cabeça cá fora e gritem, digam-no:
ESTOU FURIOSO COM´O CARAÇAS E NÃO VOU ATURAR MAIS ISTO!

Embora o teor do discurso se enquadre perfeitamente no tom de lamento contra tudo e todos e sem uma matriz ideológica precisa como me pareceu que acontecia com os manifestantes de ontem, o texto não poderia ser utilizado porque pertence a uma cena famosa do filme Network (1976), cujo argumento é uma sátira corrosiva à promiscuidade que se pode estabelecer entre informação e espectáculo em televisão. Que foi o que aconteceu ontem à tarde na cobertura informativa daquela manifestação…