31 março 2021

QUANDO «SOPRAR NO BALÃO» ERA UMA NOVIDADE EXÓTICA DOS AMERICANOS

A 31 de Março de 1946 esta notícia do Diário de Lisboa dava conta da adopção de um novo aparelho para testar os níveis de alcoolemia dos condutores no estado do Michigan. Quem escrevera a notícia escolhera para o aparelho o nome de «ebriómetro», mas visivelmente o nome não pegou.

30 março 2021

TINTIN E O CANAL DO SUEZ

Em toda esta questão do entupimento do Canal do Suez por quase uma semana, em que, como de costume, houve um empolamento disparatamente alarmista das suas consequências (veja-se este exemplo: «o bloqueio do Canal do Suez em números impressionantes»), deparei-me com a omissão (demasiado repetitiva para ser casual) do facto de que o Canal do Suez esteve encerrado durante oito anos (1967-1975) sem que, por esse facto, o crescimento da economia mundial tivesse sido substancialmente afectado. Na realidade, depois do desfecho da Guerra dos Seis Dias (Junho de 1967), o Canal do Suez passou a ser a fronteira de facto entre as posições militares conquistadas pelos israelitas (incluindo a península do Sinai) e as posições militares egípcias. Por causa disso, a navegação foi interrompida. Seis anos depois, a mesma zona do Canal tornou a ser palco de batalhas entre egípcios e israelitas, durante a Guerra do Yom Kippur em Outubro de 1973. E foi aliás no seguimento desta última guerra que se deu o choque petrolífero, provocado pelo embargo ao fornecimento de petróleo por parte dos produtores árabes àqueles países que haviam apoiado Israel no conflito, a começar pelos Estados Unidos. Isso sim, o embargo e o consequente aumento dos preços do petróleo é que veio perturbar significativamente os ritmos de crescimento das economias ocidentais. A reabertura do Canal do Suez, depois de desminado, teve lugar em Junho de 1975. Contudo, assim como o encerramento não contribuíra para a desaceleração do ritmo do crescimento económico das economias desenvolvidas do Ocidente, também esta reabertura não contribuiu para a recuperação do ritmo do crescimento económico mundial, que haviam entrado em crise por causa do aumento brusco dos preços do petróleo. Tudo isto podia e devia ter sido contado pela comunicação social, pelo menos em complemento ao alarmismo de apregoarem que estavam 400 navios à espera de passagem ou então que 600 mil barris de petróleo atravessavam o canal todos os dias (qualquer superpetroleiro transporta muito mais do que isso e esses não cabem no Canal, tendo de seguir pela rota do Cabo...). Mas vale a pena terminar mais esta prova de mediocridade da nossa comunicação social, enfatizando a banalidade como era aceite o encerramento do Canal do Suez, na alteração da primeira página da aventura de Tintin, Os Charutos do Faraó. Repare-se que na versão publicada em 1970 (acima, ao centro, e que foi aquela com que conheci pela primeira vez a história), o mapa da viagem de Tintin é diferente das versões anterior (1955) e posterior (1987), muito embora o discurso de Tintin não se altere, continuando a referir-se aos portos asiáticos que iriam escalar. Ou seja, enquanto o esteve, o encerramento do Canal do Suez era apenas um pormenor a merecer um retoque numa história juvenil.

A COBERTURA EM DIRECTO DO ATENTADO CONTRA RONALD REAGAN

30 de Março de 1981. Foi neste dia de há quarenta anos que um anónimo de 25 anos com perturbações mentais realizou um atentado contra Ronald Reagan, o presidente dos Estados Unidos de então. Reagan ficou ferido com gravidade, para além de mais três pessoas que o rodeavam. A ocasião em que o atentado ocorreu era pública, mas de um interesse menor, não havia uma grande audiência a seguir as imagens em directo, mas elas adquiriram um significado extraordinário depois do que aconteceu: tratava-se do primeiro atentado contra um presidente americano a ser coberto ao vivo! Ainda hoje as imagens não editadas se mostram plenas de significado, para quem as quiser ver e analisar para além do momento do disparo dos seis tiros. Depois deles, tudo acontece sem qualquer coreografia, ao som de vozes naturalmente alteradas, comece-se o destaque pelo agente que passa o tempo todo de pistola-metralhadora Uzi empunhada para enfrentar a ameaça... do que já acontecera - o presidente fora alvejado e, por sinal, já fora transportado imediatamente para o hospital mais próximo. Os outros feridos que esperassem. Aliás, o que sobrava em armamento naqueles minutos imediatos, faltava em material de primeiros socorros: a certa altura (aos 2:10) vê-se alguém pedir em voz alta se alguém tinha um lenço (handkerchief) para pensar um dos feridos no chão. E, ao contrário dos filmes, nem tudo corre bem nestas ocasiões: a porta de trás do carro da polícia onde os seis(!) indivíduos que seguram o autor do atentado o querem colocar recusa-se a abrir (2:30), e ele tem que ser transportado noutro carro da polícia. Em contraste, constate-se o profissionalismo das equipas de emergência: dois minutos e meio depois dos tiros já lá estava uma primeira ambulância! Mas, enquanto se organizam as evacuações, o cow-boy da cena é mesmo o senhor de fato e da Uzi que continua a berrar ordens (a que ninguém parece prestar atenção...), sem se aperceber da inutilidade naquelas circunstâncias do instrumento que continua a empunhar, e que me parece ser o representante de uma certa América que se consola sozinha e sem discernimento com o poder simbólico que atribui às armas

29 março 2021

TENENTE WILLIAM CALLEY Jr: O CULPADO CUJA CULPA NÃO SATISFEZ NINGUÉM

29 de Março de 1971. Na conclusão do julgamento militar, e depois do júri ter conferenciado por 79 horas, o tenente William Caley Jr. é considerado culpado pela chacina de My Lai, aldeia do Vietname do Sul onde, a 16 de Março de 1968, se registara um massacre de civis perpetrado pelo pelotão que comandava. É uma decisão intermédia mas que não satisfará as duas partes que se disputam politicamente a propósito da questão vietnamita: os que são a favor dela indignam-se com a a conclusão do júri (seis oficiais, dos quais cinco haviam prestado serviço no Vietname), que acarreta obrigatoriamente uma severidade na sentença (execução ou prisão perpétua, como se lê acima), que pensam excessiva; mas os que estão contra a guerra no Vietname, vêm na severidade dessa sentença um expediente para cortar cerce a intenção de encontrar responsáveis de patente mais elevada, daí a pergunta colocada pela revista TIME na sua edição seguinte: quem compartilha as culpas?... Naturalmente, o futuro acabou por vir a responder à pergunta da TIME: ninguém. Mais ninguém virá a ser condenado pelo que acontecera em My Lai. E, como já aqui escrevera, mesmo Caley acabou cumprindo apenas uma pena de três anos e meio de prisão domiciliar.

28 março 2021

«I'M MAD AS HELL AND I'M NOT GONNA TAKE THIS ANYMORE!»

Recorde-se que há precisamente um ano, Sábado 28 de Março de 2020, a SIC Notícias transmitia estas imagens acima, dando conta do engarrafamento que se formara nos acessos para a ponte sobre o Tejo, com o intuito confesso de estimular o ultraje dos seus espectadores que haviam cumprido as recomendações e ficado em casa. Eram tempos em que, naquela estação e cavalgando a onda da indignação, o pivot Rodrigo Guedes de Carvalho se projectava interpretando um número histriónico à Howard Beale (do filme Network), onde rematava proclamando reprovador: «Tenham Noção!» Achei tudo aquilo uma parvoíce, por isso não sei quanto tempo se manteve aquela fantochada em cartaz.
Um ano depois, agora que passámos (mais de) um ano a ter a noção recomendada pelo Rodrigo Guedes de Carvalho, a adquirir mesmo imensas outras noções, como a de «achatar a curva» ou «manter o Rt abaixo de 1», parece-me que a disposição dos auditórios televisivos estará ainda mais disposta a aceitar comportamentos histriónicos dos pivots televisivos. Só que agora noutro sentido. Confesso-me cansado da hipocondria do presidente da República, que já teve imensa piada noutras circunstâncias, mas que agora se está a revelar um empecilho (acima). E também me confesso cansado do encadeado de boas notícias que são (propositadamente?) desvalorizadas pela comunicação social (não vão os auditórios começar com ideias?).
Em suma, e dado que Rodrigo Guedes de Carvalho mostrou gostar tanto destes números de pivot indignado, não será oportunidade para que a SIC comece a trabalhar para outro aumento das audiências, deixar-se de filmar destes engarrafamentos para filmar polícias a multar quem come gomas na rua e pôr agora o seu homem a proclamar, como o outro jornalista do filme: «Estou chateado como o caralho e não vou aturar muito mais tempo esta merda!»?

27 março 2021

O RELATÓRIO DA ONU SOBRE A DÍVIDA DO BLOCO LESTE... E OS «HIPOTECADOS» DO OCIDENTE

Com alguma chancela de independência, por ter sido elaborado pela ONU, o relatório acima dava conta do progressivo endividamento dos países comunistas do Leste junto das instituições financeiras capitalistas do Ocidente. A notícia que o Diário de Lisboa de há quarenta anos publicava havia sido empurrada lá para o interior do jornal (página 12) e preservara o fraseado técnico e estéril da redacção original. Mesmo assim percebia-se que o montante da «dívida para com o Ocidente» era grande, 67 mil milhões de dólares, embora não se enfatizasse que a dívida crescera 10 mil milhões e 11,7% em apenas um ano (de 1979 para 1980) e que um terço daquela dívida era da Polónia, onde, naquele mesmo dia, o sindicato Solidariedade convocara uma greve geral - uma greve geral a sério. Sobretudo, evitava-se extrair a conclusão que algumas das sociedades ditas socialistas, mais a sua «insistência» no «desenvolvimento social», só se sustentavam devido aos capitais (e aos capitalistas) do Ocidente - como eu já aqui recordara, de resto.
Mas essa conclusão não era o final da história, nem o culminar do desplante, para quem lesse aquela edição do Diário de Lisboa. Quem folheasse a página das dívidas dos países comunistas para a página imediatamente adjacente ir-se-ia deparar com esta interessante crónica engajada de um jornalista eurocéptico da ANOP, que, numa altura em que se debatia e discutia a adesão de Portugal à CEE (os comunistas eram obviamente contra) baptizava aquela organização «clube de hipotecados»(!). Até hoje apetece dizer, tal era a incongruência: um «clube de hipotecados» tão próspero, que até lhes sobravam umas coroas para emprestar aos outros, do outro lado da «Cortina de Ferro»!

A FORÇA DA CLASSE OPERÁRIA

Para quem gostar de evocar efemérides, assinale-se que hoje se completa o 40º aniversário da primeira demonstração da central sindical Solidariedade contra o governo comunista da Polónia. Apesar de ter sido denominada suavemente por greve de advertência, a greve parcial de quatro horas (das oito da manhã ao meio dia, como se pode ler acima) teve um sucesso retumbante, com uma adesão estimada entre os 12 a 14 milhões de grevistas. Fazendo uma proporção com o que isso poderia representar em Portugal, seria uma adesão equivalente a quase 4 milhões de trabalhadores, o que seria muito mais do que aquilo que o PCP e o seu braço sindical, a CGTP, se atreveriam à época a reivindicar em situação equivalente dentro de portas. Não seria só pelas óbvias razões ideológicas mas também por prosaicas razões aritméticas que a situação laboral na Polónia era - e permanecerá - um assunto tabu para os comunistas portugueses.

O GOLPE DE ESTADO NA JUGOSLÁVIA

Depois de dois dias antes ter assinado a sua adesão ao Pacto Tripartido e de se ter alinhado com a Alemanha, o governo da Jugoslávia é derrubado por um golpe de Estado, protagonizado por militares de pendor pró-britânico (relembremos que o aliado tradicional da Sérvia, a Rússia, nesses tempos ainda era aliado da Alemanha...). O país torna a esgaçar-se, dividido entre duas condutas possíveis para se conduzir entre os meandros cada vez mais complexos da situação política balcânica. Prova de que os grandes feitos da História dependem sempre e muito das circunstâncias, até mesmo Salazar, se estivesse em Belgrado, não teria conseguido preservar a neutralidade jugoslava.

26 março 2021

AINDA AS VACINAS, A UNIÃO EUROPEIA E O PLURALISMO DE OPINIÕES DE QUE PODEMOS DISPOR PARA AVALIAR A SITUAÇÃO

É mais uma vez motivo de reflexão quanto à equidade como dispomos da informação, o facto de o antigo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, ter prestado declarações públicas onde criticava a actuação da sucessora e da sua Comissão quanto ao seu desempenho a respeito da vacinação contra a covid, e a ressonância das suas opiniões foi, entre nós, quase nula: até à altura em que escrevo, um dia depois, só o Jornal Económico (entre a imprensa escrita) o havia noticiado (abaixo). É, no mínimo, estranho. Não apenas o fenómeno de, no caso, quase ninguém parecer interessado nas opiniões daquele que foi o antecessor imediato de Ursula von der Leyen, como também é muito interessante constatar-se que, afinal, existem críticas severas à conduta da Comissão actual por causa do assunto da vacinação. Há divergências de opinião naquela burocracia interna da União Europeia! Para mais quando vindas da parte de quem conhece os mecanismos internos do Berlaymont com propriedade, como será o caso indiscutível de Juncker. Mais do que isso, e como se sublinha abaixo, quando a conversa descamba para o pedido da cabeça da actual presidente da Comissão, o luxemburguês é célere em desculpá-la com um assumido princípio corporativo de desculpabilização dos burocratas: «Não são falhas da Comissão. Essas são falhas dos Estados membros no total...»
Apesar das minhas simpatias por ter tido a sua opinião descaradamente abafada, é-me impossível concordar com esta última opinião de Jean-Claude Juncker. Se bem me recordo, já em Outubro do ano passado, a Comissão Europeia apresentou a sua «estratégia de vacinação para a pandemia» em que - e aí os cabeçalhos da notícia apareciam em todos os jornais... - se garantiam «vacinas a todos os Estados membros». Permitam-me recordar alguns títulos que foram publicados naquela altura e que eram inequívocos em reclamar todos os louros para Bruxelas: 

Os resultados de tanta magnificência concretizam-se nos resultados exibidos pelo gráfico acima... São tão flagrantes que creio que o gráfico nem quase precisa ser explicado... - as quatro linhas de baixo são as dos quatro maiores países da União Europeia. As duas de cima são as do Reino Unido e dos Estados Unidos. E não viria a despropósito, a atender ao tom dos títulos que lemos mais acima escrever desta vez: Grande Fiasco! Bruxelas só está a fazer merda!?

A ASSINATURA DO TRATADO DE ASSUNÇÃO

26 de Março de 1991. Os presidentes da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai assinam em Assunção, no Paraguai, um tratado que constituirá as bases para a constituição de um Mercado Comum entre os quatro países signatários que ganhará a designação de Mercosul. Foi o primeiro gesto em prol da formação de um bloco económico constituído pelos países da América do Sul. Trinta anos passados, e tendo como referência o exemplo europeu, o processo de consolidação sul americano tem avançado bem mais devagar.

A REDESCOLONIZAÇÃO DE ALGUNS DESCOLONIZADOS?

26 de Março de 1971. Há 50 anos o xeque Mujibur Rahman (1920-1975) proclamava a independência do Bangladesh. A data tornou-se o dia nacional do país mas, à época, a declaração foi mais simbólica do que prática. Ao contrário de tantas outras cerimónias idênticas mas pacíficas a que o Mundo assistira depois da Segunda Guerra Mundial, o novo país permanecia ocupado por tropas paquistanesas e assim iria continuar pelos nove meses seguintes até à sua rendição perante uma ofensiva indiana que se desencadeou em Dezembro de 1971. Para além de se ter tratado da terceira guerra entre a Índia e o Paquistão nos primeiros 25 anos da existência dos dois países e do conflito arrastar consigo um delicado problema geoestratégico, com os Estados Unidos e a China a apoiar o Paquistão e a União Soviética a apoiar a Índia, a terceira perturbadora novidade na ordem mundial é que poderia estar a passar-se para uma nova fase de descolonizações, em que o alvo já não eram as tradicionais potências coloniais europeias, antes os antigos povos que haviam sido colonizados (os paquistaneses haviam-se tornado independentes do Reino Unido em 1947) e onde agora apareciam regiões a queixaram-se de outras discriminações também de cariz colonial. Era precisamente esse o teor das queixas dos bengalis em relação aos paquistaneses e havia ali um potencial de rectificação de fronteiras e de novos países (recorde-se o caso do Biafra 1967-70) que terá tornado os países recém-independentes do Terceiro Mundo muito mais moderados quanto aos discursos anti-coloniais que adoptavam.

25 março 2021

A TERCEIRA FASE DA OFENSIVA DA COMISSÃO EUROPEIA CONTRA A ASTRAZENECA

Depois do aqui escrevi no dia 14 deste mês, a ofensiva da Comissão Europeia contra a farmacêutica AstraZeneca parece ter entrado numa terceira fase. Agora trata-se de denunciar o paradeiro do que a farmacêutica faz aos seus stocks. Para o Correio da Manhã (acima) não restam dúvidas: esconde-os, nomeadamente 29 milhões de doses descobertas armazenadas em Itália. Recorde-se que numa primeira fase, em Janeiro, quando se começaram a registar os primeiros atrasos nas entregas, e começaram a surgir as acusações recíprocas, de Bruxelas veio a iniciativa de tornar público o contrato de fornecimento. Depois percebeu-se que o gesto era apenas para impressionar - as passagens principais do contrato estavam sanitizadas, ou seja, obscurecidas, para que não se soubessem os detalhes do negócio. Em contrapartida, e por outros canais (provavelmente a própria farmacêutica), veio-se a saber que a Comissão conseguira um preço canhão por vacina, cerca de metade do preço acordado com os Estados Unidos; o problema eram as sanções por incumprimento: a farmacêutica conseguira que o contrato apenas lhes exigisse os seus «melhores esforços» para os corrigir, enquanto americanos e britânicos incluíram sanções severas. Bruxelas perdeu esse primeiro round e o programa de vacinação começou-se a atrasar.
Seguiram-se uma segunda fase levantando dúvidas sobre a fiabilidade da vacina nomeadamente uma questão de coágulos que a vacina causava. Sucediam-se as notícias, sempre épicas na gravidade, mas raramente enquadradas: esqueciam-se de esclarecer que os riscos eram ínfimos (na ordem de 1 caso para mais 300.000 vacinações) e, que, para além disso e nessa exiguidade, a taxa de ocorrências com a vacina da AstraZeneca não se distinguia da da Pfizer. Em suma, a percepção das opiniões públicas dos países europeus em relação à vacina da AstraZeneca evoluiu da forma negativa que o gráfico acima mostra. Bruxelas estragou a reputação comercial do produto mas foi vítima do seu próprio «sucesso». Como os governos nacionais dos países europeus andam a reboque da percepção das suas opiniões públicas, estes começaram a suspender a vacinação com receio que a vacina viesse a ser maciçamente rejeitada - e o programa de vacinação, já atrasado, atrasou-se ainda mais. Depois da pausa, quase todos os países recomeçaram a vacinação.

Depois deste segundo fiasco, chegamos então a esta terceira fase em que se bisbilhota o que a AstraZeneca anda a fazer às vacinas. (Aproveito para confessar que, lá por os nossos governantes em Bruxelas se estarem a revelar uns incompetentes em tudo isto, não nutro qualquer simpatia pelos espertalhões da AstraZeneca) Para o Correio da Manhã mais acima não há dúvidas: a AstraZeneca está a esconder 29 milhões de vacinas! Talvez seja isso, mas, já que Bruxelas pede explicações, e porque estou cansado destas tentativas para me formatarem a opinião, eu estou interessado na explicação que a companhia possa dar para que elas lá estejam, o que eles pretendiam fazer com elas, mas também gostaria de ouvir uma explicação abrangente de como funciona a logística e a distribuição daquela empresa (porque sei que há vacinas que têm de ser preservadas a temperaturas extremamente baixas, casos da Pfizer -70º e da Moderna -20º), para avaliar se a explicação que me derem é plausível...

O «GÉMEO» DE ALÉM ATLÂNTICO DE JOÃO TEIXEIRA LOPES

Numa daquelas notícias perfeitamente inúteis sobre uma «primeira vez», fui informado em Flash que o Senado americano confirmou a nomeação do primeiro funcionário transgénero para a administração federal, uma senhora chamada Rachel Levine (acima, à esquerda), que até há dez anos se chamou Richard. O facto não passaria de mais uma daquelas notícias amorfas, sem qualquer interesse doméstico, não se desse a coincidência da nomeada ser extremamente parecida com o bloquista João Teixeira Lopes. Ponham uma cabeleira alourada a este último e a semelhança é flagrante! Não que eu esteja a sugerir ao nosso sósia português uma iniciativa em prol de uma causa que é, reconhecidamente, do agrado da formação onde milita, a dos transgéneros (o T do LGBT). Mas prosseguindo no domínio do noticioso supérfluo e para quem já se tiver esquecido dele, João Teixeira Lopes é um antigo deputado do Bloco de Esquerda com algumas notáveis aparições televisivas, como esta que abaixo recordo. Adenda: Sobre a aparição televisiva, e porque sugiram dúvidas, deixem-me dar a opinião que é Teixeira Lopes quem arma a «peixeirada», mas a «cavalgadura» é mesmo Strecht Ribeiro.

A JUGOSLÁVIA ADERE AO PACTO TRIPARTIDO

25 de Março de 1941. Depois de fortemente pressionado, tanto por Berlim como por Londres, o governo jugoslavo lá se decidiu a aderir ao Pacto Tripartido. A cerimónia de assinatura realizou-se em Viena e contou com a presença do próprio Adolf Hitler. Parecia a decisão final - mas não era! - do jogo de alianças em que Belgrado se vira envolvida, contra vontade própria.

24 março 2021

A AVALIAÇÃO DOS RESULTADOS DA OPERAÇÃO LAM SON 719

24 de Março de 1971. Depois de mês e meio de combates encarniçados, que haviam vindo a ser noticiados numa redacção progressivamente mais sóbria à medida que o tempo passava, tornava-se tempo de ter que se assumir o fracasso da Operação Lam Son 719, na qual se haviam depositado tantas esperanças que comprovasse o sucesso da vietnamização. As duas notícias acima, da edição do Diário de Lisboa de há cinquenta anos, são, cada uma, interessante(s) à sua maneira. A notícia da esquerda é explícita quanto às consequência negativas que o desfecho terá para o regime de Saigão (Vietname do Sul), mas o conteúdo do texto perpetua a menorização como os sul-vietnamitas se comportavam e eram tratados. As culpas pelo fracasso da Operação Lam Son 719 eram, naturalmente, assacadas aos Estados Unidos que eram responsabilizados pelo seu deficiente planeamento e concepção. Perpassa por ali uma certa inconsciência de que, se os sul vietnamitas não se responsabilizarem pela sobrevivência do seu próprio país, não serão os norte-americanos a disponibilizarem-se a sustentá-lo para sempre, só para não fazerem má figura. Mas, por ora, nos Estados Unidos (notícia da direita), o presidente (Richard Nixon) ainda não queria fazer má figura e criticava «a imprensa e a televisão» pela forma como procedera à cobertura dos acontecimentos, críticas que suscitavam a reacção do New York Times em destaque. Exemplo típico do ditado português que diz que numa casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão...

23 março 2021

O (OUTRO) CASO DE TANCOS

23 de Março de 1971. Com a discrição que a censura impunha (no fundo da última página do Diário de Lisboa), a imprensa publicava a nota supra da PIDE (já então rebaptizada de DGS - Direcção Geral de Segurança):

«Por grave suspeita de ter destruído e danificado aeronaves da Base Aérea de Tancos, é procurado por todas as autoridades do país Ângelo Manuel Rodrigues de Sousa, nascido a 19 de Agosto de 1948, cuja última morada conhecida foi em Espinho, e de que se publicam duas fotografias recentes.Prestava serviço naquela unidade como cabo piloto miliciano, mas usa várias identidades e intitula-se, falsamente, oficial da Força Aérea regressado do Ultramar. Qualquer indicação útil que possa conduzir à captura deste indivíduo deve ser feita às autoridades civis ou militares, ou comunicada à Direcção Geral de Segurança.»

A nota não explica, mas tratara-se de uma acção de sabotagem que destruíra 6 helicópteros e 6 aviões militares ligeiros de transporte. Os autores pertenciam ao PCP. Mas, dessa vez, e a ao contrário desta história mais recente dos paióis, nesse outro caso de Tancos mais antigo, ninguém roubara nada...

A REENTRADA CONTROLADA DA ESTAÇÃO ESPACIAL MIR

23 de Março de 2001. Numa manobra publicitada pela agência espacial russa, a veterana estação espacial Mir (dos bons tempos velhos tempos soviéticos), foi deliberadamente manobrada para reentrar nas altas camadas da atmosfera e aí se desintegrar devido ao atrito. O local escolhido para isso acontecer foi numa órbita em que a nave sobrevoasse o Oceano Pacífico (mapa acima), para que quaisquer pedaços que pudessem escapar à incineração completa tivessem menos possibilidades de causar desastres pessoais no solo. A fase final do processo pôde ser observado nas ilhas Fidji (vídeo abaixo). Foi um excelente golpe publicitário dos russos junto do público em geral, e estes marcaram pontos no meio profissional, quando se comparou o processo com o que acontecera em Julho de 1979, com o atabalhoamento como os norte-americanos haviam gerido a destruição da estação espacial Skylab.

22 março 2021

O QUE FAZER COM UM OFICIAL CUBANO CAPTURADO EM COMBATE NA GUINÉ?

22 de Março de 1971. Pedro Rodriguez Peralta era um oficial cubano que fora capturado em Novembro de 1969 numa operação na Guiné. Tornara-se um activo de propaganda do regime português e um embaraço para o regime cubano. Estranhamente, considerada a natureza totalitária mas antagónica dos dois regimes, até havia relações diplomáticas entre Lisboa e Havana, mas o lado português nunca fez tenção de "esticar a corda" a pretexto desta descarada interferência "internacionalista" dos cubanos em assuntos que Lisboa considerava exclusivamente seus. A pessoa do capitão Peralta, que fora capturada seriamente ferido e que fora depois disso tratado e recuperado, representaria, depois de esgotada a sua utilidade propagandística, um fardo. Que fazer com ele? Fora acusado na Guiné da «prática de de crimes contra a segurança do Estado». Mas esse género de acusações, típicas de todos os "subversivos", deveria cair sob a alçada da investigação da PIDE e do julgamento de um Tribunal Criminal. Fora nesse sentido que se pronunciara o Tribunal Militar de Lisboa, que se julgara incompetente para o julgar, já que o réu era militar, mas militar cubano. Agora o processo do capitão Peralta andava de Herodes para Pilatos, um jogo onde se percebiam dois silêncios ribombantes: o do poder político português, que, por detrás das cortinas, não dava directivas ao poder judicial quanto ao que fazer, e o poder em Cuba, que nada fazia para proteger o seu cidadão que fora capturado em circunstâncias manhosas, mas em que cumpria ordens do seu governo. Pedro Peralta só veio a ser libertado em Setembro de 1974, por ocasião do acordo de troca de prisioneiros entre o governo português e o da nova Guiné-Bissau independente. Só a partir daí é que o governo cubano passou a andar com o antigo prisioneiro ao colo, para se redimir dos cinco anos em que fingira que não o conhecia de lado algum.

21 março 2021

UM ARTIGO SOBRE UM LIVRO SOBRE UM GAJO

Sendo o assunto Vasco Pulido Valente, era imperativo que, na fotografia que enfeita o artigo, a decoração por detrás dele fossem livros. Vasco Pulido Valente é mais antigo que o Ferrão da Rua Sésamo e, como ele, é impossível apresentá-lo sem o seu adereço - no caso do Ferrão (outro intelectual caprichoso) era o seu barril... Mas vamos por ordem, em primeiro lugar para o autor do artigo, Leonídio Paulo Ferreira, de que me recordo numa tentativa de absolver Donald Trump, a propósito da sua intenção de comprar a Gronelândia à Dinamarca, invocando precedentes históricos de 200 anos, que eram irrelevantes por causa disso mesmo: por terem duzentos anos e por haver nesse outro exemplo um vendedor interessado em vender e um comprador interessado em comprar! Não abona em favor. Em segundo lugar para o autor do livro, João Céu e Silva, de que me lembro de ter lido um livro, 1975 - O Ano do Furacão Revolucionário, que, apesar do título ribombante, classifiquei de mediano, e que me levou à decisão de descartar vir a ler quaisquer outras obras do mesmo autor por serem irrelevantes, nomeadamente por algumas gaffes imperdoáveis, como a de dar a nacionalidade húngara a Milan Kundera... e depois partir para considerações sobre a produção literária europeia desse ano de 1975! Confundir o checo com um húngaro?... Também não abona em favor. O terceiro lugar, last but not least, vai para Vasco Pulido Valente,  o objecto do livro a respeito do qual se escreve o artigo e também o aldrabão que várias vezes avulsas aqui denunciei a aldrabar os leitores - (1) (2) (3) (4) - e que, supremo desplante(!), em título é qualificado por exigente. O homem que se inventou a ouvir os discursos de Hitler no rádio, discursos que Hitler nunca proferiu, ia lá inventar que Cunhal pensou em mandou matar Soares!... É um trio de merda, mas confesso que o que me mais me fascina no processo é a indulgência intelectual que sustenta a admiração dos dois primeiros pelo terceiro.

EM MATEMÁTICAS LIBERAIS: 2 - 1 = 2

A esta história já eu a vinha a seguir desde a sua primeira fase, quando da apresentação de uma primeira candidatura da Iniciativa Liberal à autarquia lisboeta, encabeçada por Miguel Quintas, mas onde era dado destaque notório à segunda candidata da lista, antiga apoiante de Santana Lopes, militante recém desvinculada do Aliança, e, sobretudo e atributo que não se dispensa na sua apresentação, advogada da Madonna - embora com uma «apresentação» diferente, numa nova «embalagem». Passado dias, o candidato a primeiro candidato Miguel Quintas deixou de ser candidato. O que, a acreditar no discurso de um partido como a Iniciativa Liberal, que pugna pela meritocracia e que por isso certamente teria hierarquizado a sua lista pelos méritos dos seus candidatos, nem chegaria a constituir problema: todos os restantes candidatos avançariam um lugar e teríamos a «advogada da Madonna» a encabeçar a lista. (seria um galo para o Pedro Santana Lopes, que se andou a oferecer para concorrer por todo o país, mas paciência...) Mas não foi assim. Soube-se esta semana, depois de algum tempo de hesitação, que Bruno Horta Soares é o novo candidato a primeiro candidato com a candidata a segunda candidata, Ana Pedrosa-Augusto, a «advogada da Madonna», a manter-se na mesma colocação. É caso para dizer que me confunde a lógica dos méritos das candidaturas liberais.

A NOVA POLÍTICA ECONÓMICA RUSSA

21 de Março de 1921. Promulgação (por decreto) da Nova Política Económica (новая экономическая политика) na Rússia. O conjunto de medidas económicas centralistas, dirigistas e extremamente rígidas que os bolcheviques haviam imposto desde a sua tomada do poder em Novembro de 1917 serão, de alguma forma, revertidas. Tiveram nomeadamente que aceitar a reintrodução do comércio livre - acima é a fotografia do mercado livre de Sukharevsky em Moscovo, na década de 1920 - e a adopção de uma moeda estável e credível para suster a hiperinflação - abaixo, uma nota de um chervonets emitida em 1922. Os resultados da liberalização da economia foram indiscutivelmente positivos, nomeadamente a produção agrícola que, apesar de tudo, demorou ainda seis anos (1927), até atingir os níveis que atingira em 1913, o último ano de paz antes da Primeira Guerra Mundial, da Revolução e da Guerra Civil. No entretanto, o grande responsável por esta inflexão táctica e pragmática da revolução socialista, Vladimir Lenine, morrerá em Janeiro de 1924. O assunto irá servir de pomo de discórdia circunstancial entre os herdeiros que disputarão a sua herança. Staline, o vencedor da contenda, foi primeiro pela Nova Política Económica contra Trotsky que a criticava e, posteriormente, tornou-se seu crítico contra Kamenev e Zinoviev que a defendiam. E em Outubro de 1928, já com Staline a dirigir a Rússia e com a adopção do primeiro Plano Quinquenal, tudo o que a Nova Política Económica quisera estimular foi descartado. Só quando o comunismo colapsou em 1989 é que alguns nostálgicos se deram - tarde demais - ao exercício de imaginar o que é que poderia ter sido o comunismo na Rússia se...

20 março 2021

O AVIÃO QUE SINTETIZA O CICLO DA PRESIDÊNCIA DE DONALD TRUMP

O Boeing 757 preto, com o seu nome escarrapachado, foi, desde o princípio da sua campanha presidencial, uma das imagens mais marcantes de Donald Trump. Davam-lhe um cunho distinto como candidato, com aliás é destacado acima, pelo video descaradamente favorável do Wall Street Journal. É de toda a justiça ir à procura desse mesmo avião agora que se fechou o ciclo da presidência de Donald Trump. E, neste caso, é apenas natural que seja a CNN a mostrar o lado oculto de Trump, indo descobrir esse mesmo Boeing 757 estacionado e esquecido num aeroporto anónimo, com um motor desmontado e sem certezas que algum dia voltará a voar. Parece-me uma boa metáfora das voltas e reviravoltas da carreira do dono.

UMA CERTA FORMA CASTELHANA DE CONCEBER A «LIBERDADE» DE EXPRESSÃO

20 de Março de 1931. Começava em Madrid o julgamento dos principais signatários de um manifesto republicano que fora apresentado três meses antes. No banco dos réus liam-se alguns nomes sonantes que, ironicamente, viremos a encontrar nos lugares mais destacados da República que viria a ser proclamada dali por escassas três semanas, em 14 de Abril de 1931. Destaquem-se os casos de Niceto Alcalá-Zamora, primeiro primeiro-ministro (1931-1931) e primeiro presidente (1931-1936) ou então o de Francisco Largo Caballero, primeiro-ministro de 1936 a 1937. Mas o objectivo desta evocação não é apenas o de evidenciar a fragilidade de julgamentos como este, politicamente motivado, e que se esvaziam mal o poder político muda. O objectivo é antes o de realçar aquela condição tão castelhana de lidar com as opinião dissidentes, com o poder político a usar-se do aparelho judicial para as sancionar, uma característica que se perpetua hoje como há noventa anos, lembremo-nos dos casos actuais dos independentistas catalães presos, ou, mais recentemente, de um rapper anti-monárquico preso por causa das letras das suas músicas. Quando penso nisso, mais vontade me dá de festejar o 1º de Dezembro...

«TEARS IN HEAVEN»

20 de Março de 1991. Nesse dia Conor Clapton, de quatro anos e meio, filho do guitarrista Eric Clapton, morre num acidente trágico, ao cair acidentalmente do 53º andar do apartamento de Nova Iorque onde então morava. Teria sido apenas mais uma de tantas tragédias pessoais que envolveram as estrelas da música, não se desse o caso do episódio ter inspirado Eric Clapton a compor uma das mais inspiradas baladas dos finais do século XX: «Tears in Heaven»

19 março 2021

AS CERTIDÕES DE ÓBITO DE UM CANGALHEIRO IDIOTA

João Marques de Almeida é o terror do Observador. Há coisas que escreve que têm ressonâncias que ele próprio nem se aperceberá, como a «aliança entre o centro direito e o povo português», na melhor recuperação do vocabulário do gonçalvismo mais a sua aliança Povo-MFA. Coitado do João Marques de Almeida: pensou que estava a ser original. Mas o pior é que ele tende a matar tudo o que põe a vista em cima. Desta vez é o centro reformista que morreu em 2015. João Marques de Almeida notabiliza-se por estar sempre a emitir certidões de óbito. Como aquela que emitiu às ambições presidenciais de Marcelo Rebelo de Sousa. Ou ao Bloco de Esquerda. Ou à geringonça. Ou então, em política internacional, à carreira de Angela Merkel, que tem vindo a ser repetidamente assassinada (à facada?) pelo presciente colunista do Observador. Já me perguntaram porque tanto embirro com este cretino. A minha resposta é sugerir que coloquem essa pergunta mas ao Observador: que segredo pode justificar que eles mantenham o cretino há sete anos a escrever nas suas páginas. Não sou eu que insisto em gozar com os disparates da pessoa; são eles que insistem em publicá-los...

OS DEPARTAMENTOS FRANCESES DO ULTRAMAR (DOM)

A 19 de Março de 1946 foi promulgada em França a Lei nº 46-451 que transformou as suas antigas colónias de Guadalupe e Martinica (nas Caraíbas), Guiana (na América do Sul) e Reunião (no Oceano Índico) em Departamentos do Ultramar (DOM - Départements d'outre-mer). Ter-se-á tratado de uma manobra inteligente e de antecipação à ameaça potencial representada pelo Capítulo XI da recém aprovada Carta das Nações Unidas, o capítulo que tratava dos territórios não autónomos. Com o gesto de equiparar estas antigas colónias aos departamentos metropolitanos, ao mesmo tempo que deixava todo o resto do império colonial com os seus estatutos distintos para que a ONU se entretivesse a descolonizá-lo, a França definiu assim as suas fronteiras mínimas, mesmo que estas, no caso de Reunião, se situem quase do outro lado do Mundo em pleno Oceano Índico. A história da descolonização da França está repleta de incidentes e guerras coloniais, desde o caso vietnamita até ao emblemático caso da Argélia mas o sucesso desta medida precoce, tão discreta quanto (injustamente) pouco apreciada, pode avaliar-se pelo facto de nenhuma daquelas antigas quatro colónias estar hoje abrangida pela famigerada lista da ONU dos territórios pendentes de serem descolonizados. Reconheça-se porém que o colonialismo, nestes 75 anos, já deu tantas voltas que há territórios que a ONU quer descolonizar mesmo quando referendos realizados parecem indicar que as populações que os habitam preferem manter o status quo...

A CORRUPÇÃO NA POLÍCIA JUDICIÁRIA

19 de Março de 1971. O que esta notícia de há cinquenta anos tem de notável é que, naqueles tempos, a censura costumava cortá-las. A exposição de episódios de corrupção em organismos de autoridade do Estado era desencorajada e mesmo censurada. Aqui, estou em crer que, porque já se tratava da fase final do julgamento, a leitura da sentença, e porque os réus já haviam sido punidos disciplinarmente pela própria instituição («...três ex-agentes da P.J....»), a notícia da condenação pôde ser publicada. Tratava-se de um verdadeiro gang de agentes policiais que se aproveitava da sua posição para extorquir dinheiro aos investigados e aos seus familiares. As sentenças são severas: dezasseis anos de prisão maior para dois deles e dezassete anos para o terceiro. Mas a verdadeira surpresa está guardada para o último parágrafo da notícia: a espada da lei fora severa mas assestara sobre... o nada. Qualquer um dos três réus fora julgado à revelia e, por isso, era muito improvável que viesse a cumprir a sentença - sem que a notícia o dissesse às claras, deduzia-se que funcionara o omnipresente princípio corporativo e os réus haviam sido previamente avisados para que se escapassem antecipadamente à alçada da lei. Através da internet, consegue-se descobrir ainda os traços de um deles, muitos anos depois, no Brasil.

18 março 2021

A PROCLAMAÇÃO DA COMUNA DE PARIS

18 de Março de 1871. Proclamação da Comuna de Paris. Como acontecerá dali por um século, com o Maio de 1968, do episódio da Comuna de Paris produzir-se-á uma realidade histórica prosaica por um lado, e forjar-se-á uma lenda por outro, que só não poderá ser classificada de romântica, porque os propósitos dessa lenda tem um intuito político por detrás - embelezar a revolução socialista. Revolução essa que se pretendia fazer através de um frenesim legislativo: atente-se na proclamação acima, que já era a nº 41 no dia 29 de Março, 11 dias depois da proclamação, o que quer dizer que o novo regime, apesar de não exercer a sua autoridade fora das portas de Paris, andava, ainda assim, a produzir decretos para reformar a sociedade a uma média de quatro por dia... Ao contrário da agressividade documental, no terreno e do ponto de vista militar, a palavra de ordem era a defesa: as fotografias emblemáticas da Paris desse período são de barricadas guarnecidas do respectivo canhão. A que escolhi para enfeitar a evocação, estava instalada na Rua de Rivoli, mesmo no centro de Paris, junto ao Palácio do Louvre; sob as suas arcadas um sujeito de cartola e com as mãos à cintura - assinalado pela seta branca e que eu pretendo imaginar de uma condição social distinta dos militares - observa o dispositivo com um cepticismo que se adivinha pela linguagem corporal. Tinha razão: a Comuna de Paris virá a ser esmagada dali por um pouco mais de dois meses (21 de Maio) pelas tropas governamentais obedecendo ao governo republicano moderado de Adolphe Thiers.

A VERSÃO LONGA E A VERSÃO ENCURTADA

Estes dois vídeos representam o mesmo momento televisivo na CNN, o de cima é uma versão posteriormente encurtada de uma entrevista gerada por uma historieta que se conta em algumas frases. Nos Estados Unidos, há uma representante republicana do estado da Georgia, que, acabada de eleger, já se celebrizou pelo radicalismo conservador do que diz. E também pelas gaffes. É uma favorita, um alvo e um bombo de festa para órgãos de comunicação como a CNN. Chama-se Marjorie Taylor Greene. Como se conta na primeira parte de qualquer dos vídeos, recentemente, numa conferência republicana, Marjorie fez mais uma das suas ao enumerar países estrangeiros e ao incluir neles Guam. Ora Guam é um território americano - não é estrangeiro. O colega no Congresso que é eleito por Guam - Guam elege um delegado ao Congresso embora sem direito a voto - e que pertence ao partido democrático, aproveitou a ignorância da colega para encenar um número para promover a sua ilha: aproveitando a presença em Washington de uma delegação de militares oriundos de Guam, foi com eles ao gabinete de Marjorie Taylor Greene oferecer-lhe uns doces regionais. Claro que as televisões estavam lá e claro que a destinatária dos doces não estava... A pivot da CNN (Brianna Keilar) que noticia, com o delegado por Guam como convidado em directo, tinha ainda um assunto final para abordar: repreender o delegado pelo emprego de militares uniformizados em acções políticas. Este armou-se em sonso, e pretendeu que o gesto não passara de uma de várias cortesias para tornar Guam lembrado e que ele não fora mais do que um anfitrião que estivera a mostrar Washington aos seus conterrâneos da Guarda Nacional que tinham estado de visita à capital. E é com essa mentira descarada mas polida que termina no vídeo acima a versão encurtada da conversa entre a jornalista da CNN e o delegado guamês Michael San Nicolas. Só que, como se vê abaixo, Brianna Keilar continuou a insistir na reprimenda até que, depois de 1 minuto e meio (3:45 - 5:15) a tentar mandar as bolas para fora sem lhe dar troco, Michael San Nicolas vai mesmo a jogo. E começa por evocar que ainda muito recentemente se comemorou o 500º aniversário do colonialismo em Guam (Fernão de Magalhães descobriu a ilha em 6 de Março de 1521). E que continuam a ser uma colónia, com direitos políticos reduzidos em relação aos restantes cidadãos americanos: a) Não têm direito de voto no Congresso. b) Apesar de servirem nas forças armadas, os guameses não têm o direito de poderem escolher o seu comandante em chefe, porque não têm direito de voto nas eleições presidenciais americanas. Esses é que eram para ele os assuntos importantes! Não os doces distribuídos no Capitólio. A conversa levou uma reviravolta de 180º, Keilar teve de passar para a defensiva, numa fase em que o interlocutor expusera a predisposição da CNN para se preocupar apenas com os aspectos superficiais e selectivos da presença dos militares guameses em Washington, tanto mais que, frisou San Nicolas diante de uma Keilar cada vez mais incomodada, havia muitas outras imagens televisivas dele acompanhando os seus conterrâneos uniformizados, passeando-se pelos pontos mais variados de Washington - mas teve a elegância de não explicitar que, se a CNN escolhera apenas as imagens da visita ao gabinete de Marjorie Taylor Greene, a CNN que explicasse aos seus espectadores o porquê da escolha... Enfim, correu mal para a CNN, iam buscar lã e saíram tosquiados e percebe-se porque a CNN prefere promover a versão encurtada em que o delegado de Guam não lhes dá o troco que mereceram.

O FIM DA REVOLTA DE KRONSTADT

Há precisamente 100 anos, a 18 de Março de 1921, era dada como terminada a Revolta de Kronstadt. A cidade de Kronstadt situa-se na ilha de Kotlin, distante uns 30 km de São Petersburgo em pleno Golfo da Finlândia e era também a base naval principal da Frota russa do Báltico. As revoluções de 1917, por causa da concentração de marinheiros, haviam-na tornado um dos expoentes do espírito revolucionário da época. Em princípios de 1921, já os bolcheviques levavam mais de três anos de poder e grassava um grande descontentamento entre as mesmas classes sociais que os haviam apoiado na sua tomada do poder. Multiplicavam-se as expressões desse mau estar, mas em 1 de Março daquele ano os marinheiros da base entraram em rebelião aberta com o poder, a novidade consistia em que o poder bolchevique, depois de se sair vencedor da oposição de direita durante a Guerra Civil, estava agora a ser atacado pela esquerda, como se comprova pelo teor das quinze resoluções dos revoltosos:
1.      Exigência da realização de novas eleições imediatas para os sovietes. Os sovietes actuais já não expressam os desejos dos trabalhadores e dos camponeses. As novas eleições devem ocorrer recorrendo ao voto secreto e devem ser precedidas de uma campanha eleitoral em liberdade;
2.      Liberdade de expressão e de imprensa para os trabalhadores e camponeses, para os anarquistas, e para os partidos socialistas de esquerda (referência aos mencheviques e aos socialistas revolucionários);
3.      Direito de reunião e liberdade plena para os sindicatos e organizações camponesas;
4.      Organização, no mais tardar até o dia 10 de Março de 1921, de uma conferência de trabalhadores, soldados e marinheiros de Petrogrado (São Petersburgo), Kronstadt e do distrito de Petrogrado que não sejam militantes do Partido;
5.      Libertação de todos os presos políticos anarquistas e de partidos socialistas e de todos os trabalhadores, camponeses, soldados e marinheiros assim como de todos os militantes de organizações operárias e camponesas que estejam presos;
6.      Eleição de uma comissão para estudar os dossiês de todos os detidos em prisões e campos de concentração;
7.      Abolição de todas as secções políticas dentro das forças armadas. Nenhum partido político deve ter privilégios para a propagação de suas ideias, ou receber subsídios do Estado para esse fim. No lugar de secções políticas vários grupos culturais devem ser criados, usando os recursos do Estado;
8.      Abolição imediata das barreiras criadas entre as cidades e o campo;
9.      Igualdade de rações para todos os trabalhadores, excepto para aqueles que executem funções perigosas ou insalubres;
10.  Abolição dos destacamentos de combate do Partido nas instituições militares. Abolição dos guardas do Partido nas fábricas e empresas. Se os guardas forem necessários, eles só devem ser nomeados levando-se em consideração a opinião dos trabalhadores;
11.  Concessão aos camponeses de liberdade de acção sobre o seu próprio solo e do direito de possuir gado, contanto que sejam directamente responsáveis por aqueles e que não utilizem mão-de-obra assalariada;
12.  Pedido para que todas as unidades militares e grupos de cadetes aspirantes se juntem a esta resolução;
13. Exigência de que a imprensa dê publicidade adequada a esta resolução;
14. Exigência da instituição de grupos de controlo operário móveis;
15.  Exigência de que a produção artesanal seja autorizada desde que ela não utilize mão-de-obra assalariada.
Apesar de se tratar de uma ilha, o contra-ataque das unidades bolcheviques processou-se como se de uma batalha terrestre se tratasse: em Março o Mar Báltico que rodeava Kronstadt estava totalmente congelado. O primeiro ataque teve lugar uma semana depois do início da revolta (7 de Março) mas fracassou. Houve que esperar outra semana e meia para que a superioridade numérica e material dos assaltantes se comprovasse no terreno. Há uma grande disparidade de números quanto ao número de baixas de um lado e doutro e quanto à severidade e abrangência da repressão. Uma conclusão clara se podia extrair do que acontecera: a revolução liderada pelos bolcheviques e por Lenin dispensava o contributo daquilo que hoje caiu no goto e se costuma designar por esquerda plural. Acessoriamente, acrescente-se que simultaneamente por coincidência, embora muito longe de Kronstadt, o Partido Comunista Português fora fundado a 6 de Março de 1921.