31 julho 2007

O MÍTICO MIG-25

A menção no poste anterior do episódio da deserção do tenente Viktor Belenko para o Ocidente (embora tenha fugido para o Japão, ele veio a receber asilo dos Estados Unidos) em Setembro de 1976 aos comandos de um MiG-25, lembrou-me como aquela história mais detalhada daqueles acontecimentos pode servir de excelente exemplo para mostrar como se travava a Guerra-Fria, sobretudo como o aparelho das indústrias de defesa dos Estados Unidos se servia dos média para montar uma imagem agressiva e eficiente do inimigo soviético que por vezes não correspondia à realidade.

Antes da deserção de Belenko, o interceptor MiG-25 era um aparelho mítico, que se sabia existir, mas cujas fotografias – com tele-objectiva – ainda não haviam chegado à imprensa, permanecendo confinadas às gavetas dos serviços de informações ocidentais. E passou subitamente desse grau de discrição só conhecido por profissionais ou eruditos para as páginas frontais da imprensa e para a abertura de telejornais por obra e graça da decisão de Viktor Belenko, que estava estacionado numa base aérea soviética na Sibéria oriental, e que escolheu desertar em inícios de Setembro, ainda durante a silly season.
Hoje, depois do fim da Guerra-Fria, já se pode fazer uma boa história do percurso militar e das características técnicas do MiG-25, já esvaziadas das manipulações que o transformavam numa terrível máquina militar que justificaria o reforço dos fundos dedicados à investigação militar aeronáutica. E como primeira curiosidade associada ao MiG-25, o aparelho foi criado como interceptor para defender o espaço aéreo soviético de um bombardeiro norte-americano (provavelmente transportando armas nucleares…) que os soviéticos imaginaram que viesse a ser criado, mas que nunca existiu…

Depois de, nos anos 50, terem construído o B-52, as informações e expectativas dos soviéticos apontava que os próximos bombardeiros americanos (XB-70) fossem extremamente rápidos e atingissem velocidades múltiplas das do som (Mach 2,0 ou 3,0). O MiG-25 foi a resposta a essa potencial ameaça (que se acabou por gorar), um interceptor concebido para atingir as altas altitudes de forma extremamente rápida, podendo atingir os Mach 2,5 e mesmo superar essa velocidade em circunstâncias especiais. Mas o engraçado eram os requintes soviéticos para cumprir a missão…
Um dos problemas principais que tornam descomunalmente caros os aparelhos que voam a tais velocidades é o da metalurgia e das ligas em que têm de ser feitos (normalmente usando titânio) para resistirem ao calor do atrito resultante da sua velocidade, especialmente nas áreas mais expostas. Os soviéticos contornaram o problema usando predominantemente o aço niquelado, também resistente ao calor… Claro que essa solução tornava o avião muito mais pesado, mas isso resolvia-se aumentando a potência dos motores (abaixo), o que aumentava ainda mais o consumo de combustível…
De qualquer modo, como interceptor, a missão primordial do aparelho não era a de voar para muito longe – e Belenko atingiu o aeroporto da Hakodate, na ilha do Japão que está mais próxima da Sibéria (Hokkaido) com os depósitos quase vazios… Veio-se a descobrir que outra das características incríveis do MiG-25 era o seu radar (um verdadeiro estado da arte...) que funcionava a…válvulas, como os velhos rádios de sala. O seu alcance era de 50 Km mas a forma como se concebia que esse radar contrariaria as ECM (Contra Medidas Electrónicas) de um eventual inimigo era pela sua potência bruta: 600 kW!...

Tal potência dava origem a algumas anedotas, como a da capacidade do radar poder matar um coelho ou qualquer animal de pequeno porte que se aproximasse a menos de 200 metros de distância… Mais a sério, o efeito de microondas produzido pelo radar era tal que o seu emprego quando o avião voava a baixa altitude era completamente interdito podendo, se desrespeitado, o piloto ser sancionado em tribunal marcial… Sanção mais ligeira era a que podia atingir os mecânicos de terra, que tinham o péssimo hábito de diluir o líquido refrigerante (álcool) em água, para o utilizar como aquecimento durante as longas noites siberianas…
Foi uma das queixas de Viktor Belenko quando desertou, porque a mistura adulterada congelava a uma temperatura muito superior à prevista quando em baixa altitute, o que levava à formação de gelo na canopy* e à consequente perda de visibilidade que levara o próprio Belenko a cruzar-se na aterragem em Hakodate com um avião civil que se preparava para descolar na mesma altura... E houve muitos outros pormenores que deixaram os especialistas ocidentais completamente surpreendidos, como era o caso da aplicação de rebites (grandes perturbadores da aerodinâmica...) num avião supersónico…

Alguns destes pormenores pitorescos ainda chegaram ao grande público. Mas a grande maioria deles só depois se souberam. Para os falcões do conflito do lado ocidental, o que interessava dar relevo na notícia era o facto do MiG-25 ter conseguido penetrar no espaço aéreo japonês e como os interceptores de serviço (F-104) se tinham mostrado impotentes para o deter. E adiantavam a especulação: e se o MiG-25 transportasse armamento nuclear e se dirigisse a Tóquio? A verdade é que o MiG-25 não fora concebido para transportar armas nucleares nem tinha autonomia para atingir Tóquio…

* O dispositivo transparente que envolve o habitáculo do piloto.

30 julho 2007

OS DESERTORES DOS BONS VELHOS TEMPOS

A Guerra-Fria entre o Ocidente e o Leste também foi travada através da publicidade associada àqueles que abandonaram um dos lados em conflito para se mudarem para o outro. Importa recordar que os houve nos dois sentidos: ao terminar a Guerra da Coreia (1953), houve 22.000 prisioneiros norte-coreanos e chineses que não quiseram regressar a suas casas, mas também houve 350 sul-coreanos e ocidentais que decidiram do mesmo modo (entre os quais se contavam 21 norte-americanos, o que provocou um enorme choque no seu país natal).
Mas, mais do que a quantidade, era a qualidade dos desertores que se transformou num argumento poderoso do lado ocidental. De facto, entre as deserções mais famosas para o Leste que recordo, aparecem-me apenas as figuras de Kim Philby e o grupo de Cambridge, um conjunto de espiões britânicos que também espiavam para a União Soviética ou a de Lee Harvey Oswald, que não era famoso quando desertou, mas ficou famoso quando se aborreceu de desertar e regressou ao Ocidente acabando por assassinar John F. Kennedy…
No sentido inverso, a atenção ao fluxo de elementos qualificados que desertavam do bloco Leste terá começado em Junho de 1961, dois meses antes da construção do Muro de Berlim, quando o bailarino Rudolf Nureyev (acima), primeira figura do Ballet Kirov, então em digressão pela Europa Ocidental, desertou em Paris. Sabe-se hoje que as razões principais de Nureyev estavam associadas às ameaças à sua carreira devido à sua homossexualidade, facto devidamente camuflado na época pela propaganda ocidental.

Depois disso, tornou-se corrente que uma das primeiras figuras de qualquer das reputadas companhias de ballet russo desertasse para o Ocidente com alguma regularidade, como aconteceu, por exemplo, com Mikhail Baryshnikov em 1974, ou com Alexander Godunov em 1979. As viagens das comitivas soviéticas pelo Ocidente, fossem elas de desportistas, músicos, artistas, ou por outra causa, passaram a ser caracterizadas pela presença no grupo de umas pessoas atentas com um espírito muito pouco artístico ou turístico...

Os incidentes, envolvendo potenciais desertores de maior ou menor nomeada tornaram-se tão frequentes (quee eram devidamente explorados pela propaganda ocidental) que chegou a correr uma anedota, perguntando-se o que era um quarteto de cordas? Perante o desconhecimento, explicava-se que se tratava de uma orquestra sinfónica soviética de regresso ao seu país, depois de uma digressão no Ocidente… E aqueles que contactavam com as realidades diárias vividas nos países socialistas, eram os primeiros a perceber as motivações dos que procuravam fugir…

Talvez por viajarem mais isolados, um outro grupo responsável pela produção de um número interessante de desertores de enorme qualidade foi o de xadrezistas como aconteceu com Viktor Korchnoi em 1976 e sobretudo com Boris Spassky, que fora o representante do Leste no Encontro do Século de 1972, na Islândia, opondo o norte-americano Bobby Fischer e o soviético, num arremedo de Guerra-Fria transposta para o Xadrez (acima - Spassky à esquerda). Se até o representante do Leste naquele evento tinha desertado…

Mas, talvez o critério definitivo em muitos casos, fosse mesmo o da oportunidade ou o da ocasião. Deve ser por isso que a lista de desertores contenha uma grande quantidade de pilotos militares, alguns dos quais, sendo absolutamente anónimos quando desertaram, vieram a tornar-se famosos por causa do aparelho em que desertaram, como aconteceu com Viktor Belenko que desertou aos comandos de um (na altura) ultra secreto Mig-25, aterrando de surpresa num aeroporto japonês em Setembro de 1976 (acima).
Julgava eu que tudo isto eram coisas de outro passado, até ler a notícia que a delegação cubana abandonou precipitadamente os Jogos Pan-Americanos que estão a decorrer no Rio de Janeiro, alegadamente por receio de mais deserções entre os seus desportistas… Pode ser um episódio nostálgico mas, mais uma vez, é evidente que desmonta toda aquela imagem, que se procura (ainda) vender, de uma Cuba socialista cercada pelo capitalismo, no modelo aldeia gaulesa que ainda resiste à Gália romana. É que eu sou fã de Astérix, e não me consta que alguma vez houvesse o perigo que Agecanonix ou Ordralfabétix desertassem…

29 julho 2007

LEITURAS PARA FICAR A ADOOORAR A EUROPA!...

O nosso primeiro-ministro José Sócrates, muito por culpa do Contra-Informação e do seu boneco José Trocas-te, ficou com a reputação de ser atacado por entusiasmos veementes, comprovados pela tirada frequente do seu sósia naquele programa: Adooooro tecnologia aos saltos!...
É precisamente nesse espírito, conjugado com o semestre da presidência portuguesa da União Europeia e com o período de férias tradicional do mês de Agosto que faz todo o sentido juntar aqui um conjunto de leituras de férias recomendáveis para o nosso primeiro-ministro.
Será de começar por recomendar a José Sócrates umas leituras canónicas, como serão os casos de Nós, Europeus, do britânico Richard Hill, das Edições ASA 2001 (mais acima) e também A Europa das Línguas do catalão Miquel Siguan, das Edições Terramar 1996 (imediatamente acima).
Mais profundo, mais interessante, mas infelizmente não traduzido para português temos o The Times guide to The Peoples of Europe, colectivo, mas coordenado por Felipe Fernández-Armesto, da Times Books 1994. É curioso como os habitantes dos maiores países europeus são ali analisados regionalmente: bávaros, escoceses, provençais, piemonteses, catalães…
Finalmente, num registo mais divertido, há A Língua da Tua Mãe, de Stephen Burgen, que dificilmente poderia ter sido patrocinado por qualquer agência europeia (ou mereceria a aprovação de Teresa de Sousa…), ao demonstrar que, não havendo ainda um normativo comum de insultos recíprocos, para que é que precisaremos precisamente agora de tratados constitucionais?...

28 julho 2007

OLHAR O MUNDO… EM LIBERDADE!

Tenho seguido com simpatia o esforço desenvolvido pela jornalista Márcia Rodrigues para criar um programa prestigiado sobre relações internacionais destinado a passar nos canais marginais da RTP (RTP 2, RTP N, RTP Internacional e RTP África), chamado Olhar o Mundo. Previsivelmente, apesar de um bom programa, também pelas horas a que é emitido, não será um campeão de audiências, nem mesmo em programas do seu género.
Mas será por esse seguimento que a notícia da entrevista feita ao embaixador do Irão por uma jornalista mascarada toma para mim outra importância ao saber que a referida jornalista da RTP ali mencionada é precisamente Márcia Rodrigues. Tendo-se mascarado, ou Márcia Rodrigues o fez de livre vontade, ou tê-lo-á feito por imposição da embaixada. E o comentário para qualquer dos dois cenários não é simpático para ela...
Mesmo assim, ainda prefiro a segunda hipótese, embora a sua devoção ao acto de informar não a devesse fazer esquecer que o entrevistado será, muito provavelmente, figura pouco importante, um mero embaixador destacado para um país secundário da Europa. Há que lhe lembrar que o simétrico (um embaixador ocidental em Teerão forçasse uma sua homóloga iraniana a vestir-se com roupas ocidentais) pareceria uma coisa inadmissível?
Cómico seria pensar em obrigar Ahmadinejad a usar gravatas roxas quando discursasse na ONU ou obrigar os Ayatollahs a cortar a barba e a vestirem à civil quando viajassem para o Ocidente… Deplorável será se Márcia Rodrigues tomou a decisão de se mascarar de odalisca preventiva e unilateralmente. Nesse caso, deixem-me demonstrar o desapontamento de me parecer que então ela não percebeu nada da essência dos assuntos que costuma abordar no seu programa…

Pelo lado positivo, há sempre que considerar a hipótese de que a audiência do programa de Márcia Rodrigues aumente por aí acima depois da polémica à volta desta entrevista. Tratar-se-á é de uma audiência diferente daquela que ela tem tentado conquistar até agora. Mas para lhe ver o efeito, basta que, para contrastar com o trajo coberto que usou na embaixada do Irão, Márcia Rodrigues se disponha a entrevistar o embaixador norte-americano em biquini…

HEIL MUSSOLINI…

A série televisiva de origem britânica ´Allo ´Allo, que retratava em forma de comédia a vida numa aldeia francesa durante a ocupação alemã da Segunda Guerra Mundial, fez surgir, a partir do seu quinto ano de emissão (recorde-se que a ocupação alemã de França só durou quatro anos…), uma nova figura ridícula de um capitão italiano, com um chapéu de penas enormes*, que ripostava às saudações sempre enérgicas dos alemães – Heil Hitler! – com um descansado e tranquilizador: Heil Mussolini…
O capitão Alberto Bertorelli (acima) traduzirá a opinião geral que os italianos atravessaram o século XX sem terem conseguido adquirir uma grande reputação como combatentes… Em futebol sim, são dos melhores! – embora o seu estilo de jogo na retranca estrague todo o espectáculo… Agora, no que diz respeito às virtudes militares, aliados e inimigos (houve troca de uns com outros entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais) são concordantes na fraca opinião que manifestam sobre a sua competência.

Curiosamente, se o material humano se revelou geralmente sempre pouco motivado para a obtenção daquilo que os dirigentes italianos de cada época definiram como objectivos nacionais, há que constatar que, no que diz respeito ao outro material, e embora seja assunto não muito divulgado, a Itália sempre mostrou estar na vanguarda das realizações técnicas militares. Outros casos houve, decerto, mas vale a pena exemplificar com dois típicos, cada um deles ocorrido em sua Guerra Mundial…
A percursora de todas as pistolas-metralhadoras actuais denominava-se Villar-Perosa (acima), foi criada em 1914, e adoptada pelo exército italiano na altura em que entrou na Primeira Guerra Mundial (1915). A nova arma poderia vir a ser revolucionária, só que a doutrina para o seu emprego como arma de infantaria nunca foi devidamente estudada e implementada. Fizeram-no depois alemães e austro-húngaros, criando uma arma equivalente sua (MP18), baseada nos exemplares capturados na Batalha de Caporetto (Outubro de 1917).
Em plena Segunda Guerra Mundial (27 de Agosto de 1940), a Federação Aeronáutica Internacional creditou aos italianos a realização do primeiro voo de um avião a jacto, num protótipo designado Caproni Campini N.1 (acima). Foi um grande momento, devidamente aproveitado pela propaganda do Estado Fascista, mas os resultados não passaram dali. Menos exuberantes, alemães e britânicos também tinham em curso programas equivalentes de desenvolvimento de aviões com motores a reacção que em 1944 passaram à fase de produção**…

* O chapéu existe mesmo (!) e faz parte do uniforme dos bersaglieri, um corpo de elite do exército italiano. As penas são de galo silvestre, também conhecido por tetraz.
** O Messerschmitt Me 262 alemão e o Gloster Meteor britânico.

27 julho 2007

CARLOS II DE INGLATERRA (1630-1685), O REI QUE TERIA SAÍDO BEM NA TELEVISÃO

Tão forte era a tradição hereditária na sucessão dos cargos políticos na Europa do século XVII, que, por morte do Lorde Protector inglês Oliver Cromwell em 1658, os dirigentes do regime escolheram o seu filho Ricardo Cromwell para lhe suceder. Como seria provável, correu mal: o regime só funcionava se o seu principal titular e o depositário dos verdadeiros instrumentos de poder (neste caso, o exército que vencera a guerra civil) fosse o mesmo. O fraco Ricardo foi apeado.

E que tal regressar ao modelo monárquico clássico, desde que o novo rei não se comece a levar demasiado a sério? Trata-se de uma simplificação, mas uma boa parte do racional que esteve por detrás da Restauração do trono britânico em 1660, assemelhou-se a esse raciocínio. O novo soberano, filho do decapitado Carlos I (1600-1649), era o seu filho Carlos II (1630-1685), que na altura tinha trinta anos, uma idade ainda jovem, mas onde já fora ultrapassada a fase do idealismo imaturo.
Para ascender ao trono, aconselharam Carlos a emitir uma Declaração que ficou conhecida pelo nome da cidade onde então se alojava (Breda), onde, como futuro monarca, prometia aceitar a maioria das cláusulas que haviam estado na base das divergências que haviam levado à guerra civil entre seu pai e o parlamento, ao mesmo tempo que proclamava a sua intenção de contribuir para a pacificação social do reino ao comprometer-se a não perseguir as figuras do regime actual, apenas com algumas excepções.

Encarado nesta perspectiva, Carlos II é capaz de ter sido um dos reis que mais se assemelhe aos políticos actuais da boa tradição norte-americana, cheios de charme pessoal, astutos mas não muito inteligentes nem particularmente cultivados. É preciso prometer ou fazer uma proclamação? Então faça-se, depois se vê. O seu discurso ao Parlamento, no dia da sua entrada em Londres é um exemplo disso, embora não seja desprovido daquele travo de simpatia que conquista votos:
Estou tão fatigado que mal posso falar, mas quero dar-vos a conhecer uma coisa: concederei de bom grado tudo o que possa servir ao bem-estar do povo. Ou ainda: Quero reinar sobre um povo livre e governar de acordo com as leis.

E o melhor era que, se o discurso tivesse passado na televisão, Carlos teria sido credível para o auditório da Sky* (que, naquela altura, também ainda não comprava o The Sun*…) porque era genuíno quando proferia estas afirmações. Carlos II era um sujeito superficial mas bem disposto, propenso a divertir-se e a criar uma moda dessas num país muito necessitado dela, depois de uma guerra civil e de um decénio sob a tutela de puritanos religiosos, conhecidos pela sua falta de espírito de humor.

A arma secreta de Carlos II era o encanto pessoal. Um dos aspectos que pode comprovar a eficácia da arma (conjuntamente com a sua inconstância) é a extensa lista das suas amantes (dúzia e meia, considerando apenas as oficiais). Também era um procriador competente: conhecem-se uma vintena de filhos ilegítimos. Mas, já no século XVII, havia portugueses (além do Mourinho e do Cristiano Ronaldo...) que participaram de forma decisiva na evolução da história britânica...

É que nenhum dos filhos de Carlos foi legítimo, ou seja, resultante do casamento de Carlos II com a rainha, a portuguesa Catarina de Bragança (haviam casado em 1662), o que fez com que o trono passasse para o irmão de Carlos, Jaime II, com as consequências que veremos mais adiante. E poderá ser excessivo, mas não deixará de ser verdadeiro, considerar que uma boa parte das ambições de Carlos II se haviam esgotado no dia da cerimónia da sua coroação (abaixo - a nova coroa, que teve de ser reconstruída).
Paradoxalmente, foi durante o reinado de Carlos que se travaram duas das guerras mais importantes com os Países Baixos**, com o fito de saber quem iria assumir a supremacia marítima e, consequentemente, a supremacia comercial que esteve por detrás do sucesso britânico que levou o reino ao estatuto de grande potência mundial. Mas a profundidade dessas implicações estava muito para além de Carlos e, de resto, é muito provável que o mesmo acontecesse com os seus contemporâneos.

As reconstruções históricas posteriores, que dão grande significado ao dote de Catarina de Bragança, composto pelas praças portuguesas de Tânger e Bombaim, em que a segunda esteve na base da construção do Império Britânico das Índias, são uma grande estória… A verdade crua é que a monarquia portuguesa (recentemente restaurada – 1640 – como a britânica) não tinha dinheiro para mandar cantar um cego nem para dotes e conseguiu substituiu-lo por praças fortes…

Quanto à utilidade de Tânger, ela tornou-se eloquente com a decisão britânica de evacuar o donativo, 23 anos apenas depois de o terem recebido… Bombaim sempre devia render qualquer coisa (foi alugada à Companhia das Índias Orientais…) mas a opinião de Carlos sobre o valor de praças fortes, mesmo de interesse estratégico, pode-se ver pela facilidade com que Carlos vendeu a de Dunquerque a Luís XIV de França, logo em 1662, para resolver os seus problemas de tesouraria…
É que as políticas de Carlos II, não tendo uma orientação dominante ao longo do seu reinado, sempre tiveram uma carência constante: dinheiro. A divergência sobre as competências sobre a utilização dos dinheiros públicos entre o rei e o parlamento é que haviam levado à Guerra Civil que terminara com a decapitação do pai de Carlos… Era um assunto em que era preciso que Carlos II fosse cuidadoso. Mas esse seu ponto fraco fê-lo tornar-se também um joguete dos interesses de Luís XIV.

Carlos II, além de verdadeiro antepassado inspirador da figura distinta do gentleman britânico, é capaz de dever a sua sobrevivência política à percepção por parte dos verdadeiros actores do jogo (a nobreza britânica, Luís XIV, os interesses comerciais de holandeses e britânicos) das suas fraquezas e da convicção (errada) de quão fácil ele podia ser manipulado. Carlos morreu aos 55 anos e, não deixando descendência legítima, teve como sucessor (abaixo, à direita) seu irmão Jaime II (1633-1701).
Jaime mostrava ter convicções. Se não as tivesse fundas não se teria convertido ao catolicismo em 1668***, numa decisão que sabia que só lhe traria problemas na eventualidade de se vir a tornar rei – como aconteceu. Mais, as suas convicções religiosas tornaram-se no factor principal da disputa política do reino, apenas atenuadas porque as suas duas herdeiras eram protestantes. Quando lhe nasceu um filho tardio (1688), que iria ser educado como católico, Jaime foi expulso do trono.

Durante os próximos 73 anos, desde o reinado do holandês Guilherme III (1689-1702) até à coroação de Jorge III em 1761, a Grã-Bretanha e a Irlanda não voltaram a possuir um monarca que estivesse verdadeiramente interessado em governar pessoalmente os seus reinos. Assim começava a ascensão da importância do cargo de primeiro-ministro…

* A Sky é uma emissora de televisão e o The Sun um jornal, ambos conhecidos pelos seus conteúdos dirigidos ao segmento popular. São o equivalente britânico da TVI e do Correio da Manhã ou o 24 Horas.
** A Segunda e a Terceira Guerras Anglo-Holandesas (1665-67 e 1672-74).
*** Carlos II também se converteu, mas, típico nele, apenas quando estava a morrer…

26 julho 2007

O PROBLEMA DO DUPLO TOQUE RECTAL E PAULO PORTAS

Há um amigo meu que considera que a suprema humilhação por que passou ao ser submetido ao exame do toque rectal foi a de ter sido submetido a uma segunda inspecção, por causa das dúvidas do médico examinador. Para a primeira já eu ia preparado, explica, mas a segunda, quando eu pensava que já tinha tudo acabado, aquilo foi mesmo "à traição"…
Que os protestos de inocência de Portas em relação à negociação dos contratos dos submarinos incluissem uma encenação com um pedido veemente para a divulgação pública do conteúdo dos respectivos contratos, já seria coisa de esperar, embora quem esteja atento e seja sabedor do assunto estranhe como um ex-ministro da Defesa pareça desconhecer que o conteúdo dos referidos contratos é sempre material classificado…
Agora que ele insista e volte a repetir o pedido é que torna a coisa mais surpreendente e até humilhante. Será que Paulo Portas está à espera que no Ministério da Defesa se abra uma excepção de procedimentos ao antigo titular da pasta, para conveniência da sua carreira política? É que esta insistência demonstra uma falta de postura de estado não compensável por maneirismos ao andar, dentições branqueadas, tons bronzeados ou fatos de riscas…

OS JUSTICEIROS

Tenho por adquirido que não basta apenas denunciar injustiças. Mesmo entre aquelas que são consensuais, reconhecidas por quase todos (como parece ser o caso da situação actual em Darfur, no Sudão), tem que haver sempre um ou mais elementos no sistema que tenham capacidade de intervenção e que estejam interessados em corrigir as referidas injustiças. Também é bem possível que as novas regras poderão produzir, por sua vez, outras injustiças e assim o ciclo continuará…
O que as três pessoas retratadas neste poste terão em comum, para além de todas serem membros destacados do aparelho judicial dos seus países, e desse países serem culturalmente aparentados (Itália, Espanha e Portugal) é a coincidência de terem sido os protagonistas de equipas que criaram momentos de inflexão na aplicação da justiça quando aparentemente parecia não haver elementos nos vários sistemas onde intervieram que estivessem interessados em corrigir as injustiças existentes.

O italiano Antonio di Pietro (acima) foi a cara mais visível da equipa que procedeu à exposição do corrupto sistema político vigente na Itália desde o fim da Segunda Guerra Mundial, num processo que ficou conhecido pelo nome de Operação Mani Pulite (mãos limpas) em 1992. O sistema político acabou por ruir e reformar-se, mas parece que a causa próxima para isso terá sido o fim da Guerra-Fria e a possibilidade de haver finalmente rotatividade dos partidos no poder.
Entre os casos de maior exposição internacional associados ao espanhol Baltazar Garzon, conta-se o pedido de extradição de Augusto Pinochet por responsabilidade pela tortura e morte de cidadãos espanhóis no Chile, enquanto o ex-presidente estava em tratamento no Reino Unido (1998). O incidente foi sobretudo um embaraço para as diplomacias internacionais ao confrontá-las com a aplicação prática dos seus discursos sobre direitos humanos. Pinochet acabou por se escapar e retornar ao Chile…

Finalmente, Maria José Morgado tornou-se a face da equipa de investigação do processo designado por Apito Dourado. É inequívoco que, por detrás da indignação pública, não existe ninguém verdadeiramente interessado em desmanchar a imensa teia que as notícias mostram parecer cobrir os órgãos dirigentes do futebol português, envolvendo os membros da federação portuguesa de futebol, da liga de clubes e dos clubes propriamente ditos*.
Como aconteceu com o sistema político italiano, que não caiu por causa de di Pietro, como aconteceu com a diplomacia internacional, que só continua a reparar na questão dos direitos humanos quando lhe dá jeito, também desconfio, resulte o que resultar dos processos de Maria José Morgado, que a gestão do futebol português, falha de quem lhe queira impor rigor, há-de continuar a ser a fraude de sempre. Haverá alguém entre os leitores a quem o nome Inocêncio Calabote ainda diga alguma coisa?

* Há uns anos atrás, Artur Jorge tentou concorrer ao cargo de presidente da federação em alternativa a Gilberto Madaíl: nem conseguiu reunir o número de assinaturas necessário para o efeito… Nem a União Nacional de Salazar conseguia isso!

25 julho 2007

OS PROBLEMAS LOGÍSTICOS DA CONFERÊNCIA DE POTSDAM

Ao contrário do que acontecera com Yalta, a Conferência de Potsdam, que decorreu durante a segunda quinzena de Julho de 1945 (há precisamente 62 anos atrás), já teve lugar dois meses passados depois da vitória aliada no fim da Segunda Guerra Mundial na Europa. O local de encontro escolhido para o encontro carregava o simbolismo de se situar nos arredores da capital dos vencidos – Berlim.

Outros factores também contavam na apreciação favorável de Estaline: Potsdam estava sob controlo do Exército Vermelho e era um local onde ele podia chegar de comboio… O sempre solícito Beria precisava, num relatório que enviara antecipadamente para Estaline: o percurso ferroviário seria de 1.923 km, dos quais 1.095 km na União Soviética, 594 na Polónia e 234 na Alemanha.

Não se sabe é que fronteiras terá usado Beria para atribuir nacionalidades ao percurso ferroviário, pois o tema do traçado dessas fronteiras era um dos que viria a estar em cima da mesa para discussão, muito embora Estaline já tivesse uma ideia bem precisa do que queria. Também os seus dois aliados ocidentais também tinham uma ideia muito aproximada do que ele iria exigir… e do que iriam conceder…
O lugar escolhido para a Conferência seria o Palácio Cecilienhof, mandado construir em plena Primeira Guerra Mundial (1914-17) pelo último Kaiser, Guilherme II, destinado ao seu filho Guilherme e, sobretudo, à sua nora Cecília de Mecklenburg-Schwerin, a quem o Palácio fora buscar o nome, pois o príncipe herdeiro tinha sido mobilizado para assumir o comando de um dos exércitos imperiais na frente ocidental, em França.

As preocupações logísticas dos soviéticos para esta Conferência eram muito menores do que haviam sido as de Yalta. Finda a guerra, e havendo ficado estabelecido o acordo de princípio que a cidade de Berlim ficaria dividida em sectores de ocupação distintos para cada um dos aliados, ficou subentendido que seria por conta dos dois parceiros anglo-saxónicos a responsabilidade do abastecimento das suas comitivas.

Caso distinto era a questão da segurança dos conferencistas, numa região da Alemanha onde a responsabilidade pertencia inequivocamente aos soviéticos e numa época onde ainda não era de excluir o cenário de um golpe de mão espectacular suicida perpetrado por fanáticos nazis: sete regimentos de tropas do NKVD foram destacados para o efeito alem de vários destacamentos do Exército Vermelho.

Mas a confiança não imperava, como se deduz do relatório prévio de Beria, que específica que as forças do NKVD tinham vindo de Moscovo, iriam operar num dispositivo de três círculos de segurança concêntricos e iriam ser comandadas pelo general (do NKVD) Sergei Kruglov (um homem de toda a confiança, já responsável pela segurança em Teerão*). Além disso, havia dois aeródromos de prevenção…

Mas, mesmo só preocupados com a delegação soviética, as medidas adoptadas pelo NKVD para o apoio logístico do evento foram um excesso, só explicável pela desforra de terem lugar numa Alemanha recém vencida. Foram requisitadas (e desalojados os respectivos moradores…) 63 moradias, incluindo uma moradia maior de 15 assoalhadas, 400 m² e uma grande varanda e jardim, especialmente para Estaline.
A moradia escolhida para Molotov** era, obviamente, um pouco mais pequena: tinha onze assoalhadas, e não fora equipada com o enorme centro de comunicações que permitia a Estaline estar em contacto imediato com Moscovo e com as diversas Frentes de Exércitos na Europa e no Extremo Oriente. Com quase uma vivenda por conferencista estava-se muito longe dos 16 a 20 oficiais por camarata de Yalta

Além dos tradicionais suprimentos alimentares para a confecção das refeições que viessem a ser oferecidas pela delegação soviética, o NKVD encarregara-se de trazer gado vivo, construir aviários, e construir depósitos de vegetais e bebidas em quintas próximas, nos arredores de Potsdam, para evitar qualquer eventualidade de ruptura de stocks. Duas padarias de campanha estavam também afectas ao serviço dos conferencistas.

Em relação às presenças de Yalta, um dos líderes de delegação havia mudado: Harry Truman tornara-se o novo presidente dos Estados Unidos, depois da morte súbita de Franklin D. Roosevelt em Abril de 1945. E durante a Conferência, a titularidade de outro dos líderes também estava em jogo: a 5 de Julho haviam decorrido eleições gerais no Reino Unido e o escrutínio ainda estava em curso.

Como o sistema eleitoral britânico elege deputados por círculos uninominais, os votos precisam de ser contados no círculo de residência do eleitor o que, com quase cinco milhões de eleitores mobilizados e dispersos, a cumprir serviço nas forças armadas ou requisitados para serviços cívicos, ou no estrangeiro, tornava o voto por correspondência numa fracção apreciável da votação total. E havia que esperar que essas cartas chegassem.

Entretanto, prevendo as duas eventualidades, Clement Attlee, o líder do Partido Trabalhista e natural indigitado para o cargo de primeiro-ministro em caso de vitória do seu partido, acompanhara Winston Churchill e era mantido ao corrente de tudo o que de relevante se passava – creio que é possível identificá-lo pela careca, sentado em frente, dois lugares à direita de Churchill na fotografia da grande mesa de reuniões (abaixo).
O Partido Trabalhista ganhou folgadamente (49,7%) as eleições (os resultados saíram a 26 de Julho de 1945) e foi Clement Attlee que ficou a assumir a direcção da delegação britânica e que veio a figurar a partir daí nas fotografias das cerimónias da Conferência. Do grupo original já só restava Estaline. Sem a deficiência de Roosevelt, agora já se podia tirar fotografias institucionais onde os líderes aparecessem de pé

Estaline, por sua vez, como agradecimento pela sabedoria demonstrada com a sua vitória na Grande Guerra Patriótica (assim chamam os soviéticos à Segunda Guerra Mundial) fora promovido em Junho ao novo posto de Generalíssimo, para o distinguir da proliferação de Marechais que a guerra produzira. As fotografias mostram-no com o seu novo uniforme, casaco claro e calças listadas, correspondente ao seu novo posto.
Consta que quando lho mostraram inicialmente, Estaline mandou bugiar os proponentes, perguntando se eles queriam que ele parecesse um porteiro de um restaurante de luxo… Foi um prodígio da persuasão socialista, simbólico do ambiente que se vivia no Kremlin, que a corte que o rodeava o convencesse como ele estava enganado. Dessa vez é que Estaline devia ter sido mais desconfiado… porque é isso mesmo que ele parece!...

Agora quanto à história da Conferência? Isso é outra História…

* Conferência ocorrida em 1943.
** Vyacheslav Molotov, Ministro dos Negócios Estrangeiros.

24 julho 2007

OS PROBLEMAS LOGÍSTICOS DA CONFERÊNCIA DE YALTA

Será conveniente começar este poste por um mapa que mostre a localização da cidade que recebeu a afamada Conferência em Fevereiro de 1945, onde se considera que as grandes potências beligerantes aliadas, representadas ao mais alto nível por Roosevelt, Estaline e Churchill, decidiram como seria a organização da futura Europa que sairia da derrota próxima da Alemanha.

Localizada na península da Crimeia, e protegida do clima continental da Rússia por um maciço montanhoso, a cidade de Yalta só se havia tornado russa nos finais do século XVIII (1783), depois de um historial em que a cidade aceitara tradicionalmente a tutela da potência comercial que controlasse os fluxos do comércio no Mar Negro: os gregos, os romanos, os bizantinos, os genoveses e finalmente os turcos otomanos.
O aparecimento do turismo de luxo nos finais do século XIX transformou Yalta no equivalente russo das estâncias de Verão que as famílias reais, as famílias nobres e as famílias ricas europeias frequentavam durante o período estival. Indissociável de tal actividade foi a construção de imponentes casas de férias, à escala do poder associado ao mandante; no caso das casas reais tratava-se de verdadeiros palácios.

Com o período soviético assistiu-se a uma mudança substancial da composição das pessoas que frequentavam Yalta no Verão, embora não tivesse havido mudança alguma quanto às qualificações que faziam deles os novos frequentadores: tratava-se da elite do estado russo (agora soviético). Durante as ferias, Estaline alojava-se no Palácio Massandra, mandado construir em 1889 pelo czar Alexandre III.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Yalta, com quase todo o resto da Crimeia, foi conquistada pelos alemães em Setembro de 1941, uns escassos três meses depois do começo da invasão à União Soviética., para só vir a ser reconquistada pelo Exército Vermelho em Abril de 1944. Numa e noutra ocasião os que retiravam preocuparam-se em deixar o menos possível à disposição dos conquistadores.

Foi neste local que tivera uma reputação aprazível mas onde o menor traço de conforto havia sido destruído ou saqueado que Estaline (porque tinha um medo pânico de voar, o georgiano só acordava encontrar-se em locais que fossem acessíveis por caminho de ferro desde Moscovo: Teerão, Yalta, Potsdam…) concordou em encontrar-se com os seus homólogos anglo-saxónicos.

Para estes últimos e as respectivas comitivas, a viagem foi uma chatice monumental, porque, a acrescer ao incómodo habitual, os aeródromos designados pelos russos como seguros e capazes de albergar os vários C-54 e Avro York quadrimotores* e C-47 bimotores* das comitivas, ficavam a 200 Km de Yalta, aonde só se chegava através de uma estrada de montanha sinuosa que demorou seis horas a percorrer de carro...

É fácil de imaginar como Churchill, tradicionalmente conhecido pela sua predisposição para se submeter a riscos mas não a incómodos, deve ter chegado de mau humor, a que a visão do local de alojamento não deve ter servido para alegrar. O Palácio Vorontzov, datado de 1848 e a 17 Km de Yalta, ia buscar o nome a um governador-geral da Crimeia daquela época. O problema é que era pitoresco mas não era grande e fora completamente saqueado…
A comitiva britânica era composta por três marechais, dois almirantes, dezenas de generais e coronéis, além de outras dezenas de funcionários superiores do Foreign Office**. Em grupos de meia dúzia, ou pouco menos, ainda foi possível alojar ali as patentes mais elevadas da comitiva mas o resto teve que ficar num dos sanatórios (contra a tuberculose) da região, muito mais moderno, construído já no período soviético.

O problema particular deste sanatório, onde generais, coronéis e altos funcionários se instalaram em generosas camaratas, aos 20 em cada uma, era a falta de planificação socialista das instalações sanitárias (havia um lavatório por camarata...), o que obrigou à requisição de bacias suplementares para que o generalato britânico se pudesse apresentar devidamente escanhoado pela manhã, às mesas da Conferência…
Mas não se pense que os norte-americanos estavam muito melhor instalados. O Palácio Livadia (mais acima), onde tiveram lugar as sessões mais importantes, originalmente pertencera a uma família nobre polaca mas fora comprado depois pela casa reinante em 1860, onde Nicolau II, o último czar, lhe mandara fazer obras de ampliação em 1911. Mesmo assim, os generais eram oito por cada quarto e os coronéis, eram dezasseis...

Mas a grande verdade por detrás destas histórias é que os russos deram o seu melhor para montar esta logística com que os aliados gozavam, de tão espartana. Tudo teve que vir de fora, inclusive o pessoal encarregado dos serviços de hotelaria, requisitado de surpresa sem mais explicações a dois hoteis moscovitas, numa época em que acontecimentos idênticos acabavam na Sibéria, num dos hotéis do arquipélago Gulag.

Os requisitados devem ter sentido um enorme alívio ao verem-se em Fevereiro, em paragens quentes, na Crimeia!... Pior, mas apenas um detalhe, foi a descoberta de um stock de botins de salto alto, requinte impossível de descobrir em países em guerra (milagres de país socialista!…), a que as empregadas não tiveram tempo de se conseguirem habituar, protagonizando grandes espalhanços, para preocupação dos convidados…
Todos estes milagres, que só podem ser atribuíveis à intervenção de Lavrentiy Beria, o dirigente do NKVD que estaria provavelmente a cumprir as ordens de Estaline (supõe-se que mais de 50 comboios foram desviados do esforço de guerra para levar tudo o que era necessário de Moscovo para a Crimeia), eram também patentes na forma como os desejos dos convidados estrangeiros eram escutados e resolvidos de imediato.

Numa das vezes, foi o Marechal do Ar Charles Portal***, que reparou que não havia peixinhos vermelhos nos lagos dos jardins que rodeavam o palácio. Os peixes logo apareceram no dia seguinte… Noutra ocasião, um dos britânicos notou a falta de casca de limão para adicionar aos cocktails. O problema resolveu-se pelo aparecimento súbito, durante a noite, de um limoeiro entre as árvores do jardim do palácio…

Agora quanto à história da Conferência? Isso é outra História…

* Aquela é a designação militar dos aparelhos empregue na altura. A sua designação civil é mais conhecida: trata-se do DC-4 (C-54) e do DC-3 (C-47).
** Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico.
*** Nesta última fotografia, é ele que aparece por detrás de Churchill, falando com o almirante Andrew Cunningham, mostrando-se relutante em assumir a careca.

23 julho 2007

ÉPOCA DE DEFENESTRAÇÕES?

Ainda a propósito dos Habsburgos, e da má relação que nós, portugueses, viemos a desenvolver com eles, ainda são muitos os que se recordam de um famoso episódio da Restauração de 1 de Dezembro de 1640 em que Miguel de Vasconcelos, o secretário de estado da Duquesa de Mântua, a Vice Rainha de Portugal em nome de Filipe IV, foi atirado janela fora (numas versões já morto, noutras ainda vivo) pelos conspiradores que haviam desencadeado a sublevação palaciana naquele dia.
O que já é menos conhecido é que toda a história poderá ser apócrifa, inspirada num episódio semelhante que ocorrera 22 anos antes em Praga, e que ficou conhecido pela Defenestração de Praga, quando os dois representantes e o escrivão de uma delegação enviada por um outro monarca Habsburgo (Fernando II) sofreu igual tratamento e voaram janela fora depois de exasperarem a delegação de nobre checos com quem haviam sido encarregados de negociar (gravura acima).
Este segundo episódio foi menos sangrento que o anterior, embora mais humilhante, porque, alegadamente, os três defenestrados aterraram numa enorme pilha de estrume de cavalo que lhes amorteceu a queda, o que os deve ter deixado combalidos, mal cheirosos, mas incólumes… Dando a volta à Europa, esta história deve ter transformado o gesto da defenestração, aplicado a representantes de um poder central, como um acto poderosamente simbólico de recusa da aceitação de um poder central opressivo.
Fica-me a dúvida sobre quem, por estes dias, me apeteceria mandar pela janela fora para que aterrasse noutro monte de estrume: se Teresa de Sousa e o poder mediático, que se tornou numa espécie de porta-voz, raramente rebatida, da benignidade congénita do poder comunitário; se José Sócrates e o poder político, que, parecendo um adolescente cuja vaidade foi facilmente manipulável pelos interesses alemães, tomou como sua a tarefa das negociações de um tratado que os alemães, pelos anticorpos que geram, dificilmente conseguiriam fazer aprovar.

22 julho 2007

O BORDA D´ÁGUA

Alguém acredita que é possível no mês de Agosto reflectir, apresentar e discutir quaisquer ideias para o partido e o país? Alguém acredita que é possível no mês de Agosto desenvolver actividades junto dos militantes do PSD para que estes possam tomar conhecimento de novas soluções para o partido, de modo que possam votar apenas segundo as consciências bem informadas?

José Pedro Aguiar Branco

Quem assim sustenta as razões que o levam a desistir da sua candidatura à liderança do PSD, recorrendo ao mês do calendário, a que junta ainda a crítica à data limite – 10 de Setembro – para o pagamento das quotas dos militantes que queiram votar, apenas me deixa curioso sobre quais seriam as justificações que apresentaria para os meses de Setembro ou de Outubro… Já nem é caso de embirrar directamente com este promitente militante, é caso de passar a embirrar com quem o classificou de promissor…

A ÁGUIA BICÉFALA DOS HABSBURGOS

Um dos meus problemas para seguir o debate sobre a necessidade do aprofundamento da unidade europeia é a sua abstracção excessiva. Será defeito meu, mas slogans como o hoje caído em desuso a unidade europeia aprofunda-se enquanto avança ou o argumento da premência para que ela se realize como resposta a uma ordem mundial futura constituída por grandes blocos (Estados Unidos, China, Índia) parecem-me ser justificações demasiado simples.

Não me parece justificação suficiente que se abrace um projecto de tal magnitude apenas por causas reactivas – tem de se fazer como os outros, senão… – nem me parece que o estafado slogan de cima explique mais do que uma doutrina de acção sem qualquer outro propósito ideológico que o sustente. Agora, parece ter sido substituído por um não podemos ficar de fora como se tudo não passasse de uma espécie de estampido numa manada que atropelasse a nossa inércia…
E, continuando com a mesma metáfora, parece que o desconforto tem vindo a aumentar entre os vaqueiros, quando certas manadas, após consulta popular, não têm entrado nos currais que lhes pareciam ser destinados. É que, contrariamente às ovelhas da famosa quinta revolucionária de Animal Farm de George Orwell, estes animais são bastante mais difíceis de ensaiar para que eles modifiquem a sua opinião*: quais são as vantagens e qual é a oportunidade da introdução deste novo tratado?

De facto, as explicações dos analistas políticos que me parecem estar mais ajustadas aos factos que se vão desenrolando na política europeia, baseiam-se em manobras de política real e em estadistas que manobram em função das vantagens que venham a ser adquiridas pelo seu país natal. Fica a sobrar muito pouco para o ideal europeu, a não ser para referências ao professado pelos pais fundadores como Monnet (1888-1979) ou Schuman (1886-1963), e mesmo esses porque já morreram há muito...
Mas, se a opção for a de tomar o assunto pelo seu lado pragmático, torna-se um exercício muito curioso pegar na União Europeia com o seu formato actual de 27 países e tentar compará-la com alguns aspectos do antigo Império Austro-Húngaro de 1918. Diga-se, de antemão, que há diferenças evidentes entre eles: abrangendo quase toda a Europa, a União Europeia actual já tomou dimensões que os Habsburgos nunca sonharam que o seu Império viesse a ter – e se eles eram ambiciosos**…

Para mais, enquanto o velho Império apareceu como uma super-estrutura feudal que se formou, através de uma política matrimonial oportunista e cuidadosamente reflectida, e que foi sendo concretizada muito antes do aparecimento da importância do factor das nacionalidades para a definição das fronteiras da Europa, a actual União Europeia partiu precisamente já dessas fronteiras traçadas pelas nacionalidades e procura agora métodos de as diluir, dando poderes à super-estrutura central.
Mesmo com as direcções políticas centrais lutando com as da periferia para evitar que se desse a desagregação do Império Austro-Húngaro ou, inversamente, lutando contra elas para forçar a agregação da União Europeia, parece que as duas estruturas são capazes de se terem encontrado numa distribuição de poderes entre centro e periferias muito aproximada, embora tendo vindo de direcções políticas diametralmente opostas. E há ainda muitos outros aspectos adicionais que tornam a comparação relevante.

Suponho que a visão do mapa étnico-linguístico do Império Austro-Húngaro em 1914 (acima), pode servir de amostra de como era a sua complexidade interna, e como ele pode servir como uma versão em miniatura do que acontece com a diversidade da União Europeia actual. Mais do que isso, há ainda que recordar como estas representações gráficas têm de ser necessariamente simplificadas, e não podem mostrar na forma devida, as coabitações entre as diversas populações***, hoje empoladas ainda mais pelas imigrações.
Curiosamente, ainda hoje tem renome a burocracia imperial e quão inventiva ela se podia mostrar a arranjar lugares confortáveis aos potenciais líderes nacionalistas e às clientelas deles dependentes, quando eles pudessem pôr em perigo a harmonia vigente dentro do Império. O preço a pagar, por esse sacrifício de recursos para a compra de paz social interna, era um estádio de desenvolvimento económico inferior ao das outras potências europeias. Seria o equivalente da nossa Europa Social moderna.

Outra semelhança engraçada foi a forma como se convencionou, a partir de 1867, reformar a direcção política numa liderança conjunta entre austríacos e húngaros (a lembrar o sempre citado - e agora muito fanado - eixo franco-alemão), com governos distintos em Viena e Budapeste, embora compartilhando o mesmo ministro dos estrangeiros (tal qual Javier Solana?). Como no caso do eixo actual, aquela bicefalia aparente escondia uma superioridade clara dos parceiros germânicos...
Embora o futuro da Europa seja uma incógnita, o exemplo que recolho da História que mais se aproximará do que creio que possa vir a ser o modelo mais plausível de vir a ser aplicado a prazo na União é precisamente este, o do Império Austro-Húngaro... Que, não tendo o carisma histórico doutros grandes Impérios do passado que se costumam evocar quando se fala da construção europeia (como é o caso do Império Romano ou do Império Carolíngio) também teve as suas virtudes****...

E, porque este modelo imperial me parece uma boa concretização do modelo de um certo futuro europeu, que se torna muito mais compreensível que as formulações abstractas que os defensores do aprofundamento dos poderes centrais costumam apresentar em defesa das suas teses, mais se reforçam as minhas reservas quanto à utilidade política da aceleração do ritmo a que elas se venham a processar, através do agendamento forçado da ratificação de tratados de cuja necessidade se desconfia cada vez mais…

Ou, dito de maneira clara, não vejo razões para que haja tanta pressa para que uma espécie de nova águia bicéfala paire sobre o continente…

* Recorde-se que as ovelhas eram os animais encarregados de repetir slogans para abafar o debate. Inicialmente, quando da revolta dos animais, o slogan era quatro patas bom, duas patas mau!; depois, quando os porcos passaram a andar em duas patas e depois de um período de ensaio o slogan mudou para quatro patas bom, duas patas melhor!!!…
** O mote da família era: Austria est imperare orbi universo (AEIOU) - Compete à Áustria governar todo o mundo.
*** No censo de 1910, numa população de 51,4 milhões de habitantes, 12 milhões foram classificados como alemães (na realidade, declararam falar predominantemente o alemão em contactos sociais), 10 milhões como húngaros, 6,4 como checos, 5,0 como polacos, 4,4 servo-croatas, 4,0 ucranianos, 3,2 romenos, 2,0 eslovacos, 1,3 eslovenos e 0,8 italianos. Para complicar, a maioria confessava-se católica (39,4 milhões – 76,6%), mas havia minorias significativas de protestantes e ortodoxos (4,6 e 4,5 milhões), além de 2,3 milhões de judeus espalhados por todo o Império e ainda 700 mil muçulmanos!
**** Nomeadamente, ter servido para manter a Europa Central sob hegemonia alemã durante o século XIX, o que parece ser um dos objectivos prioritários que os alemães querem recuperar no século XXI.