30 novembro 2018

OS ALDRABÕES DA MEIA MARATONA DE SHENZHEN


Uma das notícias do dia é que a organização da meia maratona de Shenzhen, que teve lugar Domingo passado, apanhou nada menos que 258 concorrentes a fazer batota. 237 desses foram apanhados pelas câmaras de trânsito fazendo um pequeno percurso a corta mato entre as duas alas da avenida que lhes poupava uns bons dois quilómetros de prova. Mas, antes que as emoções se empolguem, explique-se às massas propensas à indignação que o evento em questão é tão popular que as inscrições para a corrida foram limitadas a um máximo de... 16.000. Os faltosos correspondem assim a 1,6% daquela referência. Por outro lado, as fraudes em maratonas acontecem frequentemente, já tive oportunidade de contar, aqui no Herdeiro de Aécio, uma delas, ainda mais famosa por ter ocorrido durante os Jogos Olímpicos de 1972.

Mas o interesse suplementar desta história é ela ter ocorrido na China, deixando no ar a sugestão de que existe por lá uma propensão antropológica para aldrabar as regras do jogo sempre que a oportunidade se oferece, em jeito de gigantesca metáfora do comportamento da China no que respeita ao cumprimento das regras estabelecidas pela OMC quanto ao comércio internacional. O comportamento desleal dos chineses no quadro daquela organização é uma acusação compartilhada por quase todos, senão mesmo todos os seus parceiros comerciais. Contudo, o consenso sobre o diagnóstico da culpa dos chineses desfez-se entretanto no que concerne à terapia, depois da tomada de posse da administração Trump e do estilo de discurso confrontacional do novo inquilino da Casa Branca.

Levando as palavras (sempre excessivas) de Trump à letra, era como, no caso acima, em vez de sancionar os 258 prevaricadores que fizeram batota com multas e suspensões desportivas (como deve vir a acontecer), viesse a ser anunciado que eles haviam sido condenados a pesadas penas de prisão, quiçá mesmo a penas capitais. É muito possível que as corridas passassem a ser completamente correctas, mas também é extremamente provável que a popularidade de participar em maratonas caísse a pique, pois ninguém quereria correr o risco de uma pena de prisão por um pecadilho.

27 novembro 2018

ASSIM FALOU ZARATUSTRA


27 de Novembro de 1896. Estreia mundial em Francoforte da peça musical «Assim falou Zaratustra» de Richard Strauss (1864-1949), inspirada no livro homónimo de Friedrich Nietzsche. A composição original é muito mais extensa do que é costume ouvir, tem uma duração aproximada de meia hora. (Outro equívoco comum é o de pensar que o compositor Richard Strauss tem alguma ligação com a família Strauss de compositores vienenses) Mas, depois de 1968, os três minutos da abertura tornaram-se mundialmente famosos, e abafaram o conjunto, por terem servido de banda sonora às imagens iniciais do filme «2001 Odisseia no Espaço». Acima, escolhi um vídeo em que se mostra a execução da orquestra para que se veja que a surdina que precede a entrada dos metais é trabalhada pelas cordas. Hoje a abertura de «Assim falou Zaratustra» tornou-se um tema recorrente para ilustrar musicalmente imagens do espaço. Mas não significa só isso, também é uma sonoridade associável ao dealbar de uma nova era: uma versão reorquestrada em ritmo jazz/funk foi utilizada com esse fim nesta cena abaixo do filme «Being There» de 1979.

CORRIDA PARA A LUA

Um dos tópicos que há cinquenta anos concitava as maiores atenções da comunicação social era a corrida espacial até à Lua em que as duas superpotências se haviam engajado. E, quando não havia acontecimentos, especulava-se, um exercício possibilitado pelo secretismo como os soviéticos geriam o seu programa. Através da notícia acima de 27 de Novembro de 1968 no Diário de Lisboa, antecipava-se a possibilidade que os soviéticos efectuassem um lançamento de uma nave tripulada na direcção da Lua no próximo dia 8 de Dezembro. E a capa da edição daquele dia 8 de Dezembro da revista norte-americana Time era eloquente do interesse como a disputa era acompanhada. Afinal, não houve qualquer lançamento... Ao centro, uma recordação de museu de como esses tempos são agora evocados, com uma imagem recente dos dois gigantescos foguetões rivais com os fatos das suas tripulações por detrás. Ficou a excitação da corrida, embora há cinquenta anos ainda não se pudesse saber que os soviéticos, afinal, nunca chegariam à Lua.

26 novembro 2018

O REMATE COM O PÉ QUE ESTÁ MAIS À MÃO

Há mais de dezassete anos e meio o ministro do Equipamento Social, Jorge Coelho, demitia-se na sequência da derrocada da ponte de Entre-os-Rios. Para quem ainda se lembre do episodio, é quase impossível não o associar imageticamente com a recente derrocada da estrada que atravessava a zona das pedreiras em Borba (comparem-se as fotografias abaixo). Nos dois casos, assistiu-se a uma falência evidente das responsabilidades do Estado em assegurar a segurança das infraestruturas que os cidadãos utilizam. A opinião pública e publicada pedem (e pediam) culpados. Há dezassete anos, o grande momento mediático pós desastre foi a demissão do ministro Jorge Coelho que acima podemos ver a assumir «as responsabilidades políticas». As opiniões aplaudiram o gesto e, recuperando uma expressão portuguesíssima do hoje esquecido comentador desportivo Alves dos Santos, politicamente foi como se se tratasse de um remate com o pé que estava mais à mão. O que na altura não se sabia é que o político acabou sendo o único (auto-)sancionado: o julgamento concluiu-se em 2006 com a absolvição dos seis réus. Mais do que isso, os acontecimentos dos meses imediatamente seguintes à queda da ponte vieram dar robustez à impressão que Jorge Coelho procedera daquele modo mais como expediente político do que pelo imperativo ético evocado, abandonando um governo que se descobriu depois a colapsar por dentro, colapso esse que se viria a expressar escassos nove meses passados, a pretexto de umas eleições autárquicas mal sucedidas para o PS. É por tudo isso que aqui relembro que creio que se deve proceder com muita calma quanto a pedidos de demissão e outras exuberâncias mediáticas a respeito do que agora aconteceu em Borba, e guardar as indignações lá mais para diante, para evitar que tudo acabe - como, infelizmente, se tornou tradicional - em «águas de bacalhau». Mais do que as falhas da nossa idiossincrasia de sermos um país de porreiraços (é sempre chato condenar os culpados), há esta pecha de nem sequer preservarmos a memória para que se evite repetir as mesmas asneiras...

A COLÔMBIA ENTRA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

26 de Novembro de 1943. A Colômbia, sob a presidência de Alfonso López Pumarejo (1886-1959), declara guerra aos países do Eixo. A razão próxima invocada para o gesto (veja-se abaixo a notícia do Diário de Lisboa) foi o afundamento de mais um (o quarto) navio colombiano por um submarino alemão, o U-516, uma semana antes, a 18 de Novembro. O episódio fora de uma violência gratuita: o alvo fora um pequeníssimo veleiro de 39 toneladas baptizado Ruby que, além de 11 pessoas, levava como carga 21.600 cocos, 300 sacos de copra, 28 espingardas caçadeiras e 15 caixotes de garrafas vazias! O U-516 atacou o Ruby sem qualquer pré-aviso, atingindo-o com 30 tiros de canhão quanto este navegava no Mar do Caribe a 120 milhas náuticas a norte do porto de Colón, no Panamá. O pequeno veleiro demorou meia hora a afundar-se. Morreram 4 das 11 pessoas que nele viajavam, as restantes ficaram todas feridas pela metralha. A notícia só se soube no dia seguinte, quando os sobreviventes foram recolhidos por um navio hondurenho. A hostilidade colombiana acabou por não se reflectir de forma significativa no decorrer das operações militares, quer contra a Alemanha, quer contra o Japão.

25 novembro 2018

A ÚLTIMA RENDIÇÃO DA GRANDE GUERRA

25 de Novembro de 1918. Mbala é, ainda hoje, uma remota vila do nordeste da Zâmbia. Contava com 17.000 habitantes em 2000. Situada a 22 km da extremidade meridional do lago Tanganica, mas a 900 metros acima dele, e por isso colocada a uns salubres 1.670 metros de altitude, a povoação passara a ser a sede da administração colonial britânica naquela região desde 1893, quando fora rebatizada com o nome de Abercorn (Escócia). É por esse nome que a podem encontrar assinalada por uma circunferência alaranjada no mapa abaixo. Foi nesse sítio que há precisamente cem anos se desenrolaram as últimas cerimónias que punham fim à Primeira Guerra Mundial. A coluna alemã comandada pelo coronel von Lettow-Vorbeck (que já aqui baptizei de «a raposa da savana») depunha finalmente as armas depois de terem sido informados da assinatura do armistício que ocorrera duas semanas antes. As imagens que existem da ocasião solene foram pintadas por um artista local (acima), uma obra muito menos ingénua do que à primeira vista se possa pensar. Vencedores à direita, vencidos à esquerda, veja-se a diferença das árvores de cada lado ou o facto do primeiro ter comparecido de automóvel e o segundo montado a cavalo (na realidade, os britânicos enviaram uma viatura que transportasse comodamente o vencido). De uma certa forma, esta cerimónia perdida no meio de África é que põe fim à Grande Guerra. Só com a assinatura de von Lettow-Vorbeck é que deixará de haver alemães em armas por uma causa imperial, causa essa cujo imperador já há umas semanas perdera o poder...

23 novembro 2018

PHILIPPE PÉTAIN, O HERÓI E O VILÃO

23 de Novembro de 1918. Há cem anos e recém terminada a Primeira Guerra Mundial, uma França vencedora e reconhecida, elevava Philippe Pétain à condição de Marechal de França. Precisamente vinte e cinco anos depois, a 23 de Novembro de 1943 (acima), essa mesma França, agora ocupada pelos alemães, assistia aos esforços das autoridades encabeçadas por esse mesmo Philippe Pétain para tornar aceitável um regime de colaboração em que os franceses eram a parte subordinada. O prestígio de Pétain era um elemento incontornável desse esforço. E cem anos depois (abaixo), Philippe Pétain continua a ser essa personagem histórica complicada, herói do primeiro dos grandes conflitos mundiais do século XX e vilão do outro. A História é feita por homens e escrita por outros homens, mas é evidente que, para a preservação da memória, tanto a Política quanto a Informação não precisam deles complexos...

22 novembro 2018

A ESTREIA MUNDIAL DE BOLÉRO


22 de Novembro de 1928. No Palais Garnier de Paris estreava-se o bailado Boléro de Maurice Ravel. Consta que nessa soirée de há noventa anos, uma senhora do público terá comentado, em jeito de apreciação posterior, que o seu autor parecia maluco, tivesse esse comentário sido provocado pela coreografia ousada do bailado ou apenas pela simplicidade desconcertante da peça musical. Atribui-se a Ravel a resposta final, a de que a senhora compreendera a ideia... O episódio é provavelmente apócrifo, mas uma experiência recente ensinou-me que as frases oportunas proferidas nessas ocasiões não precisam necessariamente de ter sido proferidas...

21 novembro 2018

A MENINA PESCADINHA

21 de Novembro de 1968. A edição do Diário de Lisboa de há cinquenta anos publicava toda uma página de publicidade anunciando os horários de inverno dos carros-peixaria do SAPP (Serviço de Abastecimento de Peixe ao País) do almirante Tenreiro, a famosa Menina Pescadinha (mais abaixo).

HÁ QUEM LHES CHAMA LÓBIS, EU CÁ CHAMO-LHES SABUJOS E NÃO É UMA ACTIVIDADE RESPEITÁVEL...

Já é difícil discutir estas opiniões sobre aquilo que a minha avó podia ter sido se tivesse rodas, mas vê-las a ser proferidas por um sabujo e, sobretudo, a ser destacadas pelo Expresso é bastante pior...

20 novembro 2018

AS AMIZADES DE REDE SOCIAL CIRCUNSCREVEM-SE ÀS REDES SOCIAIS


Se os romances de Verão de outrora terminavam com a chegada do Outono, enterrados na areia da praia (acima), também agora não parece existir circunstância alguma - um óbito, por exemplo - que torne pertinente que as amizades de rede social se manifestem de outra forma que não a própria rede social onde elas são exibidas...

19 novembro 2018

QUEM É QUE DISSE QUE UM ELEFANTE NÃO SE PODE DIVERTIR SOZINHO?

A fotografia é de Anup Deodhar. A dar-lhe um título: a desbunda do elefante.

18 novembro 2018

A CHEGADA DA «INTELIGÊNCIA» AO PODER

18 de Novembro de 1993. Com o voto favorável de 234 membros (132 republicanos e 102 democratas) e a oposição de 200, a Câmara dos Representantes norte-americana aprova o NAFTA, o acordo de comércio livre entre o Canadá, os Estados Unidos e o México. Seguir-se-ia a aprovação do Senado (61-38 votos), até à sua entrada em vigor a 1 de Janeiro de 1994. Durante mais de vinte anos o acordo esteve em vigor, durante as presidências de Clinton, Bush e Obama, sujeito a rectificações menores pelas partes, até à chegada ao poder de Donald Trump que o qualificou de «pior acordo de comércio firmado por qualquer país» (abaixo). Anunciou que o iria renegociar em benefício do seu país e, para melhorar a sua posição negocial, Trump fomentou uma espécie de crise. O resultado foi um novo tratado que o actual presidente americano se apressou a descrever como «maravilhoso». No concreto, a atitude mais prudente é a de aguardar pelo real impacto das alterações introduzidas, tendo presente que, no outro prato da balança, repousa um esfriamento glacial nas relações pessoais entre dirigentes: o canadiano Justin Trudeau foi ostensivamente vexatório para Donald Trump quando teve oportunidade. Trump parece crer que terá valido a pena trocar as vantagens comerciais que considera ter adquirido pela hostilidade canadiana, assim como a demonstração implícita de que os membros do Congresso de há vinte e cinco anos estavam errados, assim como o estiveram nesses vinte e cinco anos os seus três antecessores. No quotidiano, há aqueles clientes que, perante uma fila de espera de caixas de supermercado que se apresenta flagrantemente mais curta do que todas as outras, avança com o seu carrinho, sorridente e confiante, para essa fila, como se o resto da clientela do supermercado fosse estúpida e adorasse fazer filas e perder tempo. 99% das vezes a fila mais curta esconde um segredo que desqualifica o imbecil de a utilizar e que o faz voltar para trás, de orelha murcha e perante o sorriso vingativo de quem está nas filas adjacentes. O palerma, afinal, é só um. Agora há um espécimen desses na Casa Branca...

17 novembro 2018

OBRIGADO. ESTOU A DEIXAR...

Como se sugere pela estatuária, o tabagismo pode ser um problema que se vem arrastando desde os finais da Antiguidade...

16 novembro 2018

O CREPÚSCULO DO COMUNISMO

16 de Novembro de 1988. Só hoje se consegue perceber o quanto a edição do Diário de Lisboa daquele dia continha, disseminada pelas páginas interiores, a sugestão de que se vivia um crepúsculo do comunismo, como ele fora concebido internacionalmente nos últimos setenta anos e vivido em Portugal nos últimos catorze. Na segunda página, sobre a política doméstica, o jornal obrigara-se a publicitar a publicação da obra em que se explicava aquela que se tornara na mais famosa dissidente comunista portuguesa até então: Zita Seabra. Nas páginas centrais, dedicadas aos assuntos internacionais, o panorama era desolador para as hostes comunistas: discutia-se o calendário para a retirada cubana de Angola; o governo pró-soviético do Afeganistão pedia uma reunião urgente do conselho de segurança da ONU (ninguém consultara a ONU aquando da invasão soviética, pois não?...); mas a notícia mais sacrílega era o anúncio que o parlamento da (República Socialista Soviética da) Estónia «ia analisar uma "declaração de soberania" face à União Soviética», sinal que a estrutura da própria União Soviética começara a ranger.

14 novembro 2018

JÁ VAI SENDO TEMPO...

Depois de três exercícios consecutivos obtendo resultados práticos, já vai sendo tempo de apurarmos a nossa exigência quanto aos métodos como se obtêm os resultados. Sobre estes, já está adquirido que Centeno conseguiu o que Gaspar e Albuquerque não conseguiram. Mas isso, tendo sido o falhanço colossal do governo de Passos Coelho, também não é, em si, um objectivo por si só, é apenas uma fase no percurso da aquisição de cada vez maior transparência nas nossa contas públicas. E é nesse aspecto estrito, mas agora cada vez mais importante, que se constata que as queixas são várias, sóbrias e substantivas (acima), enquanto a atitude de António Costa, dando marteladas à realidade (abaixo), daquele mesmo género de marteladas que conhecíamos de outras encarnações, a atitude de Costa, escrevíamos, não é de molde a transmitir-nos a confiança necessária sobre aquilo que custa o que Centeno anda a fazer.

13 novembro 2018

A OCUPAÇÃO DE CONSTANTINOPLA

13 de Novembro de 1918. Desembarque dos primeiros contingentes aliados em Constantinopla, a capital do Império otomano. Os britânicos estão em franca maioria (2.616 efectivos - acima), mas franceses (540 - abaixo) e italianos (470 - mais abaixo) também se quiseram mostrar presentes. As tropas de ocupação chegarão a ser 50.000. Há cem anos, o momento não podia deixar de despertar evocações simbólicas - uma espécie de desforra - referente à data de 29 de Maio de 1453, 465 anos antes, dia em que a cidade fora conquistada pelos otomanos aos bizantinos.
Mas essa era apenas parte da História, e a parte da História que convinha evocar para aquela ocasião. Porque em 13 de Abril de 1204, a 714 anos de distância, portanto, já a mesma Constantinopla fora conquistada por um exército de cruzados vindo da Europa ocidental, um exército cuja composição - descontando os alemães, desta vez ausentes - muito se assemelhava à dos contingentes que há cem anos se exibiam, desfilando, perante os habitantes da milenar cidade imperial. A rematar, registe-se a discriminação: nem Berlim, nem Viena ou Budapeste virão a ser ocupadas...

12 novembro 2018

A GREVE GERAL NA SUÍÇA E A «SEMANA VERMELHA» NA HOLANDA

12 de Novembro de 1918. Na Suíça, um comité revolucionário convoca uma greve geral. A questão peculiar neste evocação não é a greve geral. É o facto de a greve ter ocorrido na Suíça e logo no dia seguinte à assinatura do armistício que pusera fim à Grande Guerra. A Suíça fora um país que permanecera neutral, não existia a comoção da derrota que costuma servir de explicação histórica aos movimentos revolucionários que eclodiram simultaneamente por toda a Alemanha. E contudo, a sua classe operária, especialmente nos cantões alemães reagiu desta forma, abstraindo-se das notícias da conclusão do conflito. Cerca de 250.000 trabalhadores aderiram à paralisação, um dos sectores mais afectados foi o ferroviário, um sector crucial naquelas circunstâncias em que a agilidade dos abastecimentos alimentares era uma pedra-de-toque da disposição das opiniões públicas. Mas note-se também, e porque a Suíça se mantivera afastada dos combates, que os militares não haviam sofrido o desgaste que ocorrera entre os beligerantes. As imagens oficiais dos acontecimentos transmitem-nos uma imagem de força, com 100.000 soldados nas ruas e nos pontos nevrálgicos (acima e abaixo). O desfecho acabou por ser favorável às autoridades federais. A greve durou 48 horas. Depois dela, mais de 3.500 grevistas foram presentes a tribunal militar, uma apreciável percentagem deles empregados dos caminhos de ferro, embora menos de 5% (147) fossem condenados.
Nesse mesmo dia 12 de Novembro e noutro país que também permanecera neutral, os Países Baixos (Holanda), o primeiro-ministro Ruijs de Beerenbrouck (abaixo, à direita) tentava amenizar o ambiente tenso que o país atravessava, com o anúncio do aumento da quantidade da ração de pão de 200 para 280 gramas/dia. Na Holanda vivia-se então a Semana Vermelha (De Roode Week no original - 9 a 14 de Novembro de 1918), uma tentativa dos socialistas locais (22% do parlamento), dirigidos por Pieter Jelles Troelstra (abaixo, à esquerda), para desencadearem uma acção insurrecional, ao bom jeito do que acontecera no ano anterior na Rússia. Também na Holanda, um exército que não sofrera o desgaste dos combates foi utilizado para enfrentar os revolucionários que, afinal, eram bem menos do que se pensara dos dois lados. Num daqueles combates pela memória como os acontecimentos vêm a ser evocados no futuro, a Semana Vermelha foi rebaptizada de Erro de Troelstra (Vergissing van Troelstra), como se tudo não tivesse passado de um erro de avaliação do líder socialista holandês, o que as evidências sugerem não ter sido bem o caso... Estes dois casos, que vemos muito raramente referidos, ambos ocorridos em países que haviam permanecido neutrais, mostram claramente que o ambiente social tenso que se vivia na Europa no Outono de 1918 transbordava dos países beligerantes para o resto do continente.

11 novembro 2018

COMO ELE HÁ COISAS QUE, APESAR DE TAPADAS, DEIXAM UMA SOMBRA ESCLARECEDORA NA AREIA...

As duas notícias vêm no Público de hoje, que isto dos casos de corrupção que se arrastam sem fim à vista não é apenas o de José Sócrates. Vem a propósito recordar que Luís Filipe Menezes foi o presidente da câmara de Vila Nova de Gaia - terceiro maior concelho do país - durante dezasseis anos (1997-2013), autarquia que se veio a descobrir à beira da falência quando ele abandonou o cargo. Luís Filipe Menezes é que não parece falido... E é apenas uma coincidência que o fotografado apareça a pôr os dedos em V como se fosse um aplicado militante social democrata.

10 novembro 2018

...NOVE MESES DE CURA

Shopping on line pode ser um exercício tremendo, quando nos deparamos com um casaco que imaginaríamos mais facilmente a aparecer no expositor da charcutaria de um supermercado do que num pronto-a-vestir. Ao lado dos enchidos. Etiquetado nove meses de cura. E em vez de ser pata negra é cabeça oca, em homenagem aos criadores de tal design.

TRUMP REGRESSA À EUROPA E MACRON TENTA GANHAR QUALQUER COISA COM ISSO

Como se pode comprovar pelas declarações mais acima de Emmanuel Macron, proferidas com toda a publicidade possível já há dois meses e meio, aquilo que no Eliseu se pensa sobre a segurança e defesa europeias dificilmente poderia ter surpreendido o departamento de Estado norte-americano, quando esta semana apareceu reforçado numa entrevista concedida pelo presidente francês a uma rádio. Mas, aquilo que no departamento de Estado (e nas outras instituições do aparelho de Estado dos Estados Unidos) se possa e deva saber, parece ter deixado de importar depois da chegada de Donald Trump à Casa Branca. Para ultrapassar a ignorância do titular, entre o circulo que rodeia o presidente instalaram-se procedimentos para tentar lidar com esse handicap. Os parceiros dos Estados Unidos, depois da surpresa inicial, também se adaptaram à nova situação: tornou-se conhecidíssimo o episódio em que Jean-Claude Juncker foi para uma negociação comercial acompanhado de quadros explicativos adaptados à compreensão de uma criança do ciclo primário. Mas é precisamente porque já todos se terão adaptado a Trump, que se torna difícil de decidir o que estará por detrás deste último episódio que o irritou a ponto de criticar o anfitrião antes de uma visita oficial (notícia acima). Terá sido uma gaffe diplomática de Macron? Terá sido uma ponta que foi deixada deliberadamente solta pela diplomacia francesa para que Trump, previsivelmente, investisse? A verdade é que o enfâse que eu tenho ouvido aos enviados especiais a Paris, na distinção entre o acolhimento dado por Macron a Theresa May e aquele que vai ser propiciado a Donald Trump, estão muito para além das capacidades do enviado especial típico e indiciam-me que alguém os está a municiar sobre o recado que se quer transmitir aos espectadores. A verdade é que, como Emmanuel Macron já terá descoberto, Donald Trump poderá ter todos aqueles defeitos, mas tem-se revelado dificilmente manipulável - os quadros infantis de Juncker não o impressionaram. E sendo assim, se não conseguir mais nada, talvez o que reste a Macron seja capitalizar simpatias à custa das antipatias que Trump adquiriu por esse Mundo fora...

O KAISER REFUGIA-SE NA HOLANDA

10 de Novembro de 1918. Às 06H00 da manhãzinha de há cem anos Guilherme II, Imperador da Alemanha e Rei da Prússia, apresentava-se na estação de comboios de Eisden (Limburgo), na fronteira da Bélgica com a Holanda. Até aí, nas últimas semanas, aquele que era designado correntemente por o Kaiser, estivera instalado em Spa, cidade do Leste da Bélgica onde se instalara o OHL, o Grande Quartel General dos exércitos alemães. Fora aí que, no dia anterior, recebera a novidade, veiculada pelos jornais berlinenses, que ele próprio havia abdicado... (veja-se abaixo*) A situação de Guilherme tornara-se periclitante: perdera o apoio político na capital, prosseguiam as negociações para a rendição da Alemanha (onde não seria de excluir que, entre as cláusulas, se exigisse a sua extradição) e a progressão dos exércitos aliados mantinha-se inexorável, o que, caso os combates prosseguissem, lhe daria apenas um punhado de semanas até que eles alcançassem Spa. Entre a sua comitiva concluiu-se que a melhor solução naquelas circunstâncias seria refugiar-se num país neutral. E o país neutral mais próximo era mesmo a Holanda. E é assim que vamos encontrar numa fria manhã de Outono o outrora todo poderoso Imperador a conter a sua impaciência calcorreando o cais de uma obscura estação ferroviária, enquanto as autoridades holandesas da cidade mais próxima (Maastricht) entravam em contacto com o governo holandês em Haia. Ainda nesse dia, a autorização para que o Kaiser se refugiasse na Holanda acabou por ser concedida. Cortesias entre cabeças coroadas, a rainha Guilhermina dos Países Baixos emprestou-lhe o castelo de Amerongen para se instalar, castelo onde, passadas algumas semanas, a 28 de Novembro de 1918, Guilherme acabou por anunciar o acto da sua abdicação, desta vez num documento redigido pelo seu punho...
* para os menos habilitados a decifrar as letras em estilo gótico, no cabeçalho pode ler-se Abdankung des Kaisers - traduzido: abdicação do imperador

09 novembro 2018

O FALSO «LE SOIR»

9 de Novembro de 1943. Nesse dia aparecia nas bancas da Bélgica ocupada este Le Soir misterioso, que se descobria ser uma versão pirata do vespertino colaboracionista normalmente publicado em Bruxelas com o mesmo nome. Se o jornal oficial tinha uma tiragem que rondava os 300.000 exemplares (era o jornal de referência da Bélgica francófona), os promotores da iniciativa arriscaram há 75 anos distribuir uma edição sua de 5.000 para ser posta à venda em Bruxelas, usando a mesma rotina e os mesmos canais de distribuição do Le Soir colaboracionista. Claro que os leitores rapidamente se apercebiam de que algo estava errado. Sem ser óbvia, a redacção dos artigos diferia substancialmente daquilo que eles sabiam que podia ser publicado sob a censura militar alemã. No artigo acima do lado direito, e apenas para dar um par de exemplos, depois do título que qualificava a Estratégia de eficaz, como todos os títulos laudatórios de primeira página, o subtítulo fazia Berlim admitir que a situação era muito séria, algo que a propaganda alemã nunca admitiria e que um jornal censurado como o Le Soir nunca poderia publicar. Quanto à fotografia que aparece do lado esquerdo é a de um bombardeiro B-17 norte-americano... Tratou-se de uma corajosa e imaginativa operação de propaganda e desinformação produzida pela resistência belga. Depois de se saber da sua existência, nos dias seguintes outros 45.000 exemplares do falso Le Soir foram vendidos clandestinamente em toda a Bélgica e no norte de França. Aquilo que, noutras circunstâncias, podia ter sido levado à conta de uma engenhosa partida de carnaval, não foi assim interpretado pelas autoridades alemãs, que não tinham qualquer sentido de humor.

08 novembro 2018

A ENCOMENDA PARA O PRISIONEIRO

As Grandes Guerras são somatórios de muitos pequenos momentos. O momento que é documentado por este discreto recibo de há precisamente 75 anos, foi a ida a uma estação de correios ou, mais provavelmente, a uma estação de comboios, para o envio de uma muita aguardada encomenda (são todas...) para um prisioneiro francês que continuava detido na Alemanha ao fim de mais de três anos de cativeiro. Sabe-se o seu nome - Maxime Lejars - e sabe-se o número que lhe haviam atribuído - 58.465 - embora não se consiga descobrir qual a localização do campo. Não se consegue saber quem tenha sido o expedidor (a esposa? os pais? outros familiares?) embora o local de origem - Faverney, uma aldeia do Leste de França então com uns 1.300 habitantes - e o estilo escolar da caligrafia levem a indiciar que se trataria de alguém de condição modesta. Nada consegui descobrir mais deles.

07 novembro 2018

AS ELEIÇÕES NA POLÓNIA

7 de Novembro de 1938. Noticiava-se as eleições polacas do dia anterior: «A proporção de votantes foi cerca de 60% (...) ¾ dos candidatos pertenciam à União Nacional e a oposição não teve praticamente nenhum candidato (...) Os círculos governamentais declararam-se satisfeitos com os resultados (...) O resultado das eleições (...) não determinará nenhuma mudança notável no curso da política interna da Polónia.» Como se percebe, recordando um poste que aqui publicámos há poucos dias, a Polónia de há oitenta anos estava, como acontecia com Portugal, muito longe de ser um regime democrático. Isso em si não pode ser invocado para atenuar o repúdio pela agressão alemã que viria a ter lugar dali por menos de um ano, mas reconheça-se que perturba fortemente a reputação do país como vítima, para mais quando se esclarece que a dita União Nacional (curioso nome, não?) adoptara um conjunto de teses sobre a questão judia que se inspiravam nas famosas Leis de Nuremberga dos seus vizinhos alemães. A Polónia de 1939 deve ser vista mais como uma vítima das ambições implacáveis de Adolf Hitler e da sua localização geográfica, do que propriamente objecto da hostilidade ideológica da Alemanha nazi, como acontecia com os vários países verdadeiramente democráticos da Europa Ocidental, que se engajaram na Segunda Guerra alegando defendê-la - à Polónia, à democracia, mas sobretudo aos equilíbrios europeus. E se a natureza dos regimes desses países atacados à época pela Alemanha, pela Itália (Grécia) e pela União Soviética (países bálticos) é recorrente e convenientemente esquecida, isso acontece não apenas por questões de propaganda circunstancial. A verdade é que, ao contrário de um certo discurso que insiste em perpetuar-se, as ditaduras atacaram-se umas às outras porque elas nunca foram internacionalistas e coordenadas como os comunistas o foram. Muitos dos países da Europa de Leste tiveram este passado durante o período de entre guerras (1919-1939)... e prolongaram-no depois em ditaduras comunistas (1945-1989) pelos quarenta anos que se seguiram. Surpreendermo-nos actualmente com a natureza das democracias numa Polónia ou numa Hungria será uma constatação desagradável, mas apenas surpreendente para quem desconheça as histórias do século XX daqueles países do Leste Europeu.

«A GALINHA NÃO VOA...»

7 de Novembro de 1988. A comunicação social de há trinta anos aparecia dominada pela notícia da demissão de Vítor Constâncio do cargo de secretário-geral do PS. Uma demissão exuberante, batendo com a porta, acusando Mário Soares, então inquilino de Belém, de promover uma intriga continuada dentro dos órgãos daquele que continuaria a considerar o seu partido. As duas primeiras páginas do Diário de Lisboa de há trinta anos apareciam dominadas pelos acontecimentos políticos domésticos, remetendo as eleições presidenciais americanas para a margem. Na capa, o desmentido (esperado) de Belém comprovava um conhecido adágio da informação política: nenhuma intrigalhada do género é para ser levada devidamente a sério antes de aparecer desmentida - o desmentido é a prova da sua existência. Os acontecimentos posteriores, as memórias de Soares, demonstram que Constâncio tinha razões de queixa, Soares considerava-o um incapaz. Numa das histórias que o tempo foi soltando, foi atribuída a Soares a comparação de Constâncio a uma galinha, incapaz (politicamente) de grandes voos...

06 novembro 2018

AS ELEIÇÕES INTERCALARES NOS ESTADOS UNIDOS VÃO REVELAR O QUE PREDOMINA ENTRE OS NORTE-AMERICANOS: A ADORAÇÃO OU O ÓDIO POR TRUMP

Allan Lichtman foi o guru que se consagrou nas últimas eleições presidenciais, ao antecipar a vitória de Donald Trump contra toda a opinião publicada. Idolatrado na circunstância pelos apoiantes de Trump, foi rapidamente renegado por esses mesmos quando, meses depois, publicou um livro argumentando em prol do seu "impeachment". Até ver, e porque me parece ser amigo da Verdade, é o género de pessoa que me agrada. Eis a sua opinião (uma tradução de um artigo publicado ontem no The Guardian) a respeito das eleições que hoje decorrem nos Estados Unidos. Não se compromete quanto ao desfecho, mas não esconde para onde pendem as suas simpatias.
Donald Trump teve razão quando disse que as eleições intercalares nos Estados Unidos serão sobre a sua pessoa. As eleições intercalares são sempre, até certo ponto, um referendo ao ocupante da Casa Branca e Trump é o presidente mais controverso da história moderna dos Estados Unidos. Ele inspira tanto seguidores fervorosos como uma oposição de igual modo desapiedada. Os resultados destas eleições intercalares dependerão do que impulsionará maior participação – o amor ou o ódio a Donald Trump.
Para os seus partidários, Trump é um verdadeiro populista que derrubou um sistema político corrupto que protegia os seus próprios interesses às custas dos americanos comuns. Criou uma economia em expansão, cortou nos impostos, livrou as empresas de regulamentos sufocantes e renegociou favoravelmente o NAFTA. Protegeu a nação dos terroristas islâmicos e a cultura americana tradicional da corrupção de influências estrangeiras. Expôs os preconceitos dos grandes orgãos da média e apoiou a liberdade religiosa para os cristãos. Nomeou ainda conservadores confiáveis ​​para o Supremo Tribunal e opôs-se à indústria de abortos que matam os bebés.
Para os seus detractores, Trump é um populista falso cujas políticas beneficiaram os ricos e impuseram uma carga esmagadora de dívidas ao povo americano. Repelindo os regulamentos ambientais e retirando-se do acordo climático de Paris, ele expôs os americanos aos estragos das mudanças climáticas catastróficas. Além disso, diminuiu a posição internacional dos EUA e, em vez de defender a democracia e os direitos humanos, cultivou alguns dos ditadores mais brutais do mundo. Trump tem mentido repetidamente ao povo americano, humilhou mulheres e minorias, minou a imprensa livre, tolerou a violência contra os seus inimigos e atacou migrantes e refugiados como se fossem assassinos e violadores. Para os seus críticos mais acérrimos, Trump tanto destruiu o civismo que criou um ambiente tóxico que contribuiu para o massacre de congregantes numa sinagoga por Robert Bowers e para o envio de bombas por Cesar Sayoc para a CNN e para os seus críticos mais proeminentes.
Dois terços dos entrevistados de uma pesquisa NPR / PBS NewsHour / Marist, que foi realizada no final de Outubro, responderam que Trump será um factor em seu voto nestas eleições: 23% disseram que ele será um factor menor e 44% disseram que ele será um factor importante. Para comparação, uma pesquisa semelhante realizada antes das eleições intercalares de 2014 revelara que o então presidente Barack Obama seria um factor menor ou importante na votação de apenas 47% dos entrevistados. “Esta é definitivamente uma eleição nacional”, disse Lee Miringoff, diretor do Instituto Marista de Opinião Pública. "Como um referendo a Trump."
O número de eleitores é tipicamente baixo nestas eleições a meio do mandato presidencial, ficando-se tradicionalmente bem abaixo da participação em eleições parlamentares noutras democracias avançadas. Apenas cerca de 38% dos cidadãos dos EUA votaram nas eleições de 2014, o que representa cerca de 140 milhões de abstenções.
Mas Trump irá inspirar provavelmente uma maior afluência às urnas este ano. Ele "atraiu lealdades e antagonismos apaixonados, e o ódio e o amor tendem a levar as pessoas às urnas", disse Henry Olsen, membro sénior do Grupo de Estudos para Eleitores do Fundo Democracia. "Provavelmente, veremos uma participação eleitoral muito maior do que o normal para eleições intercalares"
Ao contrário das duas últimas eleições a meio dos mandatos, as sondagens indicam que este ano os democratas igualaram ou superiorizaram-se aos republicanos no entusiasmo entre os eleitores. Uma pesquisa da Gallup, realizada de meados a fins de Outubro, concluiu que “os democratas igualam ou superam os republicanos nos indicadores de participação”. Os republicanos reagiram com esforços para a supressão do número de eleitores. Os republicanos sabem que a sua base de cristãos brancos idosos é a parcela do eleitorado que mais rapidamente se desgasta. Não se podem “fabricar” mais desses eleitores, mas pode-se restringir a afluência da crescente base democrata de minorias e jovens através de expurgos dos registros eleitorais, leis rigorosas de identidade, leis que exijam uma correspondência exacta entre dados e que, aproveitando-se disso, suspendam o registro dos eleitores ao menor pretexto de desconformidade.
No estado da Geórgia, baseando-se numa lei de correspondência exacta aprovada pelo legislativo estadual (republicano) em 2017, Brian Kemp, o secretário de Estado republicano que também concorre a governador, suspendeu 53 mil inscrições de eleitores. “Por acaso”, as minorias constituíam cerca de 80% dos registros suspensos. No Dakota do Norte, depois da democrata Heidi Heitkamp ter sido eleita para o senado por uma margem de 3.000 votos em 2012, a legislatura republicana exigiu a prova de um número de rua [por cá denominar-se-ia número de polícia] como pré-requisito para se ser eleitor. A lei afecta descaradamente a base democrata de eleitores nativos norte-americanos, que muitas vezes vivem em estradas sem designação e que dependem de caixas postais para entrega da correspondência.
Ainda assim, todas estas restrições ao voto podem voltar-se contra os republicanos, motivando os eleitores da oposição. No Dakota do Norte, Mark Trahant, o editor do Indian Country Today, disse que no passado “a votação nativa pode não diminuir necessariamente… com activistas trabalhando horas extras para ajudar os eleitores a obter endereços válidos, ela [a senadora Heitkamp] poderá conseguir uma afluência dos eleitores nativos americanos com que nunca conseguido contar de outra forma”.
Na Geórgia, a opositora democrata de Kemp, Stacey Abrams, uma mulher afro-americana, pediu aos partidários para acorrer às urnas, combatendo a "supressão (administrativa) dos eleitores". Numa gravação de áudio tornada pública, Kemp advertiu confidencialmente os membros do seu staff sobre "as dezenas de milhões de dólares que eles" – os seus oponentes - "estão colocando para promover os esforços de voto entre as suas bases tradicionais". Kemp estava especialmente preocupado com o voto por correspondência, e o que aconteceria “se todo mundo o usasse e exercesse seu direito de voto, o que é absolutamente possível, se ele for enviado pelo correio ”.

05 novembro 2018

HUMOR AO ESTILO DE JACQUES TATI

A crónica acima, publicada há poucos dias na página da Associação Capazes, é para ser lida da mesma forma como se vê um filme de Jacques Tati. É divertida, faz rir, mas não tem punch-lines e não está acompanhada de um auxiliar (costuma ser o riso enlatado) que nos indique onde estão as passagens mais cómicas. Contém «histórias que acontecem a toda a hora nas nossas casas e nas nossas escolas, onde nós, adultos – bem intencionados – desrespeitamos os limites pessoais e os “nãos” das nossas crianças». A mais caricata é a do «Rodrigo» que tem a fralda cagada mas que está confortável na merda e que, qual bácoro na pocilga, resiste aos esforços da «auxiliar da creche» para lhe limpar o cu. Previsivelmente, é a história favorita da caixa de comentários, muitos deles coprologicamente cómicos também. Mas as histórias da Madalena que não quer dar um beijinho ou a da Catarina que não quer vestir o casaco também são boas. Porém, a tese de fundo é que as crianças desde as mais tenras idades têm opiniões e vontades, às quais se deve atribuir valor em qualquer circunstância... A diferença substancial das histórias e da tese da crónica para os gags sucessivos de um filme de Tati é que este sabia que estava a encenar um mundo delirante (de tecnologia em Playtime ou do tráfico automóvel em Trafic), enquanto que a autora Mikaela Övén acima parece genuinamente convencida que o mundo delirante onde as crianças pensam como pessoas razoáveis e responsáveis existe mesmo.

04 novembro 2018

A MORTE DE WILFRED OWEN

4 de Novembro de 1918. Há cem anos morria em combate o tenente Wilfred Owen (1893-1918) durante a Batalha do Sambre. A Grande Guerra estava a uma semana do seu término, mas isso não sabiam ele e os homens do seu pelotão que nesse dia se dispuseram a atravessar o canal que liga o Sambre ao Oise sob fogo inimigo. O tenente Owen ficou mais conhecido como poeta de guerra. Já aqui publiquei um poema seu na versão original. Hoje, atrevi-me a traduzi-lo.


Encolhidos, quais mendigos velhos envergando sacos,
Arrastando os pés, tossindo compulsivamente, atravessamos o lamaçal,
Virando costas à luz bruxuleante dos sinalizadores
E começámos a caminhada para a retaguarda distante.
Homens marchavam adormecidos. Muitos haviam perdido as suas botas
Mas lá continuavam, pés em sangue. Tudo seguia alquebrado; cego;
Bêbado de fadiga; surdo e desinteressado para o rugido
Dos obuses de gás que discretamente explodiam lá para trás.

Gás! GÁS! Rápido, malta! – O alívio de conseguir ajustar, atabalhoadamente, aquelas máscaras desajeitadas a tempo;
Mas alguém urrava e caindo,
Debatia-se como se estivesse em chamas ou sob cal viva...
Embaçado, através das enevoadas lentes da máscara e de uma grossa luz verde;
Como se estivesse debaixo de um mar verde, vi-o a afogar-se.

Em todos os meus sonhos e diante de meus olhos impotentes,
Ele atira-se a mim, sorvendo o ar, asfixiando-se, afogando-se.

Se, em algum sonho sufocante, também pudesses ali estar
Por detrás da carroça em que o arremessamos.
E observasses os olhos brancos contorcidos na sua face,
A sua cara dependurada, como a de um demónio que se cansara de pecar.
Se pudesses ouvir, a cada solavanco, o sangue
Gargarejar espumoso dos seus pulmões corrompidos,
Obsceno como um cancro, amargo como a bílis regurgitada que provoca feridas incuráveis em línguas que não têm culpa alguma.
Meu amigo, não irias, com tão grande zelo, contar
A crianças ansiosas por alguma glória desesperada,
A velha Mentira: Dulce et decorum est pro patria mori.

AQUI HÁ UM ANO ERA UM GAJO BESTIAL... - 2

Para além do caso de Mohammed bin Salman e ainda a pretexto de alguém que aqui há um ano era outro gajo bestial (embora num outro ramo), vale a pena recuperar o exemplo do presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, cujo desequilíbrio psiquiátrico notório só se tornou patente há coisa de uns seis meses e foi preciso que se dessem os tristes acontecimentos na academia do clube. Também ali, e neste caso à escala doméstica, a comunicação social em bloco havia-se limitado a ser caixa de ressonância de propaganda, sem cuidar de se informar e de nos informar sobre as peculiaridades de quem ocupava o cargo. Mais uma vez, as ligações de hipertexto são a notícias do jornal Público. Na prática, nada distingue a solidez das informações da comunicação social tradicional das que nos são dadas pelos opinadores-a-recibo-verde, como acontece abaixo com o exemplo de Nuno Rogeiro, que são utilíssimos a passar adiante as versões convenientes nas redes socias (no caso, a história da devolução das armas de Tancos).

DIA DO 13º ANIVERSÁRIO

Este blogue completa hoje 13 anos. São muitos anos, talvez demasiados anos para um blogue. Tudo é muito diferente do que era em 2005, a começar pelo autor. Por causa da ocasião, julguei ser oportuno elaborar o gráfico abaixo, comparando ao longo dos anos e desde que conservei os dados (2007), o ritmo da produção (a verde) com o nível de audiências (a vermelho). Quanto à produção, e depois do fervor inicial e da adopção de um ritmo de publicação mais moderado, de ritmo de cruzeiro, a história do Herdeiro de Aécio é a de um entusiasmo produtivo progressivo até há uns poucos meses, quando o autor começou a esmorecer nesse seu entusiasmo. Convém enfatizar que o de hoje é o 8.460º poste publicado! Dar-me-ia por muito contente se 5% deles valerem a pena. Quanto ao comportamento das audiências, esse é diferente: foi crescente até aos finais de 2012 e a decrescer depois disso, hoje cifrar-se-á em cerca de ¼ do que havia sido nos tempos de glória. Substituídos por outros formatos de rede social, como as publicações mais ilustradas do facebook ou as ideias compactas do tweet, o tempo dos blogues já parece ter sido. Por tudo isso, e porque 13 anos também podem representar a saturação - recorde-se que esse foi o período de duração das Guerra em África para as quais o Estado Novo não encontrou solução política (1961-1974) - que resolvi adoptar um novo ritmo de publicação a partir de agora, desobrigar-me da necessidade de publicar pelo menos um poste por dia a que me havia obrigado desde o aparecimento do Herdeiro de Aécio (a média registada nestes 13 anos é de 1,78 postes por dia). As temáticas favoritas, essas, manter-se-ão.

AQUI HÁ UM ANO ERA UM GAJO BESTIAL... - 1

Há precisamente um ano, apenas quatro meses depois de se ter tornado no príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman era-nos apresentado como um gajo bestial, que encabeçava «um novo comitê de combate à corrupção», comité esse que prendia príncipes e antigos ministros às dezenas; progressista, deixava as mulheres conduzir e assistir até a jogos de futebol! Um ano depois, através daquilo que se vai descobrindo sobre o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi em Istambul, pode concluir-se, ironicamente, que a construção de tal imagem de Mohammed bin Salman talvez tenha sido um pouco favorável demais... Torcer o pescoço a adversários políticos exilados não é moderno, nem é de molde a granjear simpatias Mundo fora... As ligações de hipertexto são todas para artigos de um mesmo jornal, o Público, mas a questão que coloco destina-se a toda a comunicação social: de forma patente, ela limitou-se a repassar adiante propaganda da facção saudita no poder, sem qualquer certificação da sua veracidade. Onde é que andam os pedidos de desculpa?...

03 novembro 2018

O ARMISTÍCIO DE VILLA GIUSTI

3 de Novembro de 1918. Se a Itália foi a última das grandes potências europeias a entrar na Grande Guerra, também se vai destacar por ser a primeira delas a sair dela. Há precisamente cem anos, numa Vila dos arredores de Pádua, os italianos, devidamente acompanhados dos seus aliados, assinaram um armistício contra o adversário que verdadeiramente lhes interessava, o Império Austro-Húngaro, a passar então por um processo acelerado de desagregação nas suas entidades nacionais constitutivas. O armistício foi assinado um pouco depois das três da tarde embora o quadro abaixo, evocativo da cerimónia, mostra o acto a ter lugar ao redor de uma mesa muito maior do que a verdadeira e sob a artificialidade da luz eléctrica, sugestivo de complicadas e prolongadas negociações que, na verdade, não ocorreram - bastou aos italianos a ameaça de romperem as negociações para que a aristocracia austro-húngara se precipitasse a assinar, na esperança de ainda salvar o que pudessem do seu império.

02 novembro 2018

«IT'S NOT JUST THE ECONOMY, STUPID!»

Mais do que eles possam significar em termos de melhoramento da vida dos norte-americanos em geral, o que me está a irritar nestes dias é a forma distorcida, para consumo político, como os números do desemprego estão a ser brandidos - no caso da Fox News acima, por exemplo - na campanha que está em curso nos Estados Unidos para as próximas eleições de dia 6 de Novembro. Os valores de 3,7% são excelentes, indicadores que já não eram alcançados há muitas décadas, mas, depois de se ter instalado a ideia desde há 25 anos que «It's the Economy, stupid!" (e que terá valido a vitória a Bill Clinton em 1992), parece ter-se atingido o excesso oposto, a de que tudo de essencial se resumirá à economia, stupid. O que talvez seja, por sua vez, tão estúpido quanto esquecer a economia. Os combates políticos travam-se à volta de outros assuntos, que não apenas indicadores económicos. Tanto assim que, se recuarmos precisamente 50 anos, iremos encontrar uma taxa de desemprego ainda melhor do que a actual (3,4%), o que não impediu que os democratas - que até aí ocupavam a Casa Branca - perdessem a eleição presidencial de 1968 para os republicanos (presumivelmente por causa das controvérsias da questão do Vietname). E, se a situação do desemprego fosse assim tão decisiva, a taxa do mesmo que se verificava quatro anos depois (um agravamento para 5,6%), teria prejudicado a reeleição do candidato eleito quatro anos antes - Richard Nixon. Mas não, pelo contrário, essa sua outra vitória do Outono de 1972 foi esmagadora. No Outono de 1980, o crescimento da mesma taxa para os 7,5% poderia ter servido de explicação para a derrota do presidente democrata em exercício, Jimmy Carter, frente ao republicano Ronald Reagan. Poderia... mas não serve porque, quatro anos passados e com a taxa de desemprego ainda a registar uns pujantes 7,4%, o mesmo Ronald Reagan é reeleito de forma triunfal!
Todos estes exemplos históricos mostram que o estado de espírito da América política pode nada ter a ver com o que os indicadores nos dizem sobre a situação do seu bem estar material. Contudo, o argumento é papagueado e desmentido como se fosse para levar a sério, como se não houvesse tempo nem conhecimento para o desmontar com os factos. O Trump Boom que os seus apoiantes apregoam pode não servir para nada dentro de dias, ou então e a contrário, não se pode excluir que a prevalência de Donald Trump se poderá dever à ideologia do que à economia. A imagem que cá chega à Europa nos dias que correm é a de uma América progressivamente mais tensa entre as suas facções, apesar do conforto relativo de alguns daqueles indicadores económicos. Compreende-se que não sirvam para muito quando o inquilino da Casa Branca tem o estilo truculento que tem. Mas os americanos também deviam saber que, se elegeram um presidente daqueles, isso ia, necessariamente, arrastar consigo consequências. Uma delas é que, no dia seguinte às eleições, e aconteça o que acontecer nelas, os Estados Unidos vão continuar a deparar-se com os mesmos problemas de antes, cortesia de Donald Trump.