30 setembro 2009

A LEUCOCORIA DE MESTRE PO

Para terminar os postes relacionados com os pequenos arranjos por que está a passar o autor do blogue e depois do de ontem ter tido como objecto uma personagem histórica como Antígono Monoftalmos, hoje vou variar para uma de ficção, Mestre Po, um dos professores de Kwai Chang Caine na série televisiva Kung Fu, o monge velhote e cego que o adoptara como pupilo favorito, tratando-o carinhosamente pela alcunha de Gafanhoto.
A cegueira de Mestre Po fazia-se notar por causa de um fenómeno que se designa por leucocoria, uma reflexão esbranquiçada das suas pupilas. O efeito era conseguido com o auxílio de duas lentes de contacto que o actor que interpretava o papel de Mestre Po punha nos olhos. No meu caso, em que só terei metade da sabedoria de Mestre Po, a leucocoria só se manifestou num olho mas, em contrapartida, era genuína e dispensava a lente de contacto…

29 setembro 2009

ANTÍGONO MONOFTALMOS

Aqueles que souberem algumas das raízes gregas presentes na língua portuguesa descobrem facilmente o que identificava Antígono Monoftalmos – só tinha um olho, condição que me desperta a minha maior simpatia, dadas as circunstâncias de me encontrar, como Antígono, ainda que felizmente só de forma provisória, monoftálmico. Mas, à parte o facto de ser grego – em rigor macedónio – tenho que admitir que Antígono (acima) não será uma daquelas personagens históricas que despertam de imediato o reconhecimento dos leitores. Antígono nasceu em 382 a.C. e morreu em 301 a.C., com 81 anos, mas não morreu na cama, de velhice, morreu em combate na Batalha de Ipso(*), trespassado por um dardo. Não possuindo informações para escrever a sua história clínica – nomeadamente não sabemos em que condições é que terá cegado do olho que lhe granjeou a alcunha – fica-nos pelo menos a impressão que a cegueira não terá interferido muito com o seu estado de saúde geral, robusto, que a presença de octogenários no comando de exércitos em campos de batalha sempre foi um fenómeno raríssimo.
Antígono começou por se celebrizar como um dos oficiais de Alexandre Magno. Sendo 26 anos mais velho que Alexandre (356 a.C. – 323 a.C.), é provável que Antígono fosse já um dos homens do estado-maior de Filipe II da Macedónia, pai de Alexandre. E as funções que Alexandre lhe atribuiu na sua expedição para a conquista do Império Persa, não sendo de grande visibilidade, foram de grande responsabilidade, ao encarregá-lo de manter e defender as regiões do centro da Ásia Menor (mais precisamente a Frígia, com a sua capital Górdio e o seu famoso nó cortado por Alexandre…), que eram essenciais para manter as linhas de abastecimento logístico entre a Macedónia e a Grécia e os exércitos de Alexandre que cada vez mais se embrenhavam em direcção a Oriente (mapa abaixo). Ao contrário do que acontece com os exércitos modernos, em que o fluxo principal é o de bens, nos tempos de Alexandre, os fluxos mais importante para ele seria o de pessoas: contingentes militares vindos principalmente da Macedónia, para substituir os perdidos em combate e sobretudo por doença, e quadros administrativos de cultura grega para constituírem as elites das zonas recentemente conquistadas.
Tendo sido reconhecido a partir de meados do Século XIX no Ocidente como uma figura maior da História Universal, entre os defeitos que os historiadores da altura reconheceram a Alexandre (a impetuosidade, por exemplo, defeito-virtude de qualquer herói romântico…) não se contava a completa fragilidade politica do aparelho de estado criado por si e pelos seus adjuntos. E esse foi o erro político mais importante cometido por si e pelas elites macedónias que o rodeavam. Note-se, por um lado, que o Império de Alexandre tinha herdado o aparelho de estado que havia sido instalado pelo seu antecessor persa (que fora aperfeiçoado ao longo de 300 anos), e por outro, que ao lado da estrutura política, houve uma estrutura social nova, com a expansão da cultura grega, apoiada na colonização, sendo os colonos uma base social de apoio ao regime. A verdade é que, com a morte de Alexandre, perdida a pessoa do fundador, os centros de poder multiplicaram-se e o Império esfarelou-se como um qualquer império nómada unipessoal como os aqueles que vieram a ser criados pelos povos hunos (Átila), mongóis (Gengis Cã) ou turcos (Tamerlão). E é aqui que regressamos a Antígono Monoftalmos, um dos oficiais que, a partir da morte de Alexandre, começaram a estabelecer um centro de poder autónomo concorrente com o central.
Encurtando a parte da narrativa que inclui o detalhe dos incidentes que se seguiram à morte de Alexandre, em 303 a.C., 20 anos portanto depois dela, havia cinco desses centros de poder como se pode observar no mapa acima, cada um dirigido por um diádoco (a palavra grega para sucessor), todos antigos oficiais de Alexandre. Registe-se que a dimensão aparente das áreas de cada um dos cinco Reinos não tinha significado correspondente para o seu potencial estratégico. Economicamente, o mais poderoso seria o de Ptolomeu, considerando a profundidade estratégica, a vantagem seria para o de Seleuco e geograficamente, pela sua posição central, seria o de Antígono. Tivesse o desfecho da tal Batalha de Ipso (301 a.C.) sido o oposto, e Antígono tivesse vencido, e realçar-se-ia a vantagem estratégica da posição central do seu Reino, dominando as linhas de comunicação internas, que lhe permitiriam posicionar mais rapidamente os seus exércitos face aos dos inimigos(**). Tendo o desfecho sido como foi, e tendo o Reino de Antígono desaparecido (veja-se o mapa abaixo de 270 a.C.), é porque ele tinha a desvantagem estratégica de ter fronteiras comuns e disputas territoriais com todos os seus quatro rivais… Um dos grandes atractivos da estratégia é que, estudando-a e sendo-se imaginativo, pode haver sempre explicação para tudo, como acontecia com os oráculos dos sacerdotes da antiguidade,…
(*) Não confundir com a Batalha de Isso que foi travada 32 anos antes (333 a.C.) entre Alexandre Magno e Dário III, o Xá da Pérsia.
(**) É uma vantagem que se costuma apontar, por exemplo, aos bolcheviques durante a Guerra Civil russa (1917-1923). É uma vantagem que não se costuma apontar, por exemplo, aos alemães durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), visto que a perderam.

28 setembro 2009

PAUSA PARA CONTEMPLAR OS ACONTECIMENTOS

Como já anteriormente deixara aqui sugerido, hoje e os próximos dias terão de ser dedicados a pequenos arranjos no autor deste vosso blogue. Aos nossos leitores habituais pedimos desculpa pelos eventuais inconvenientes.

27 setembro 2009

CINCO LARANJADAS DOS BONS VELHOS TEMPOS

Produto típico da época do condicionamento industrial, em que se privilegiava a produção nacional qualquer que fosse a sua qualidade, a laranjada da Bem Boa não passava de uma gasosa ainda da época do pirolito, só que levava uma dose adicional de corante artificial. Aliás, o sítio onde as garrafas familiares mais se viam não era em nenhuma casa de família, mas sim na taberna, onde um poucochinho de laranjada era normalmente adicionada ao copo de três (vulgo penalti) para o tornar mais suave…
Durante a década dos anos sessenta houve quem pensasse que o consumo de laranjada podia sair desses sítios mais populares para ganhar outros tipos de consumidores, que fossem mais jovens e mais sofisticados. Um desses exemplos foi a campanha de lançamento da Schweppes em Portugal, que recorreu à metodologia teaser utilizando o nome do produto para chamar a atenção para o aparecimento do produto no mercado – recorde-se que o emprego de palavras estrangeiros no português era bem mais raro do que actualmente.
Outro exemplo, foi o da Laranjina C, e aí a acentuação das características distintas do produto fazia-se através da embalagem (acima), quer fosse por causa do formato da garrafa, redonda, a fazer lembrar a laranja original, quer fosse por causa do rótulo, semelhante a uma folha que lhe estivesse agarrada. Para mais, note-se o cuidado neste último em frisar a ausência de corantes na composição da laranjada, para que houvesse uma distinção com a concorrência mais antiga e menos sofisticada…
As duas últimas laranjadas pertencem já a uma terceira fase evolutiva, iniciada logo nos princípios da década de setenta. O produto não só já não tinha corantes como não tinha conservantes e, ainda por cima, como se lia nas explicações dos rótulos (gravados no vidro das garrafas), só a cor escura do vidro das garrafas preservava as vitaminas… Contudo alguma coisa distinta que desconheço terá acontecido na história das duas marcas para que o Sumol seja o que é e o Fruto Real não passe de uma recordação…

26 setembro 2009

ACHILLE TALON E A "POSE TALON"

Reparei que, já me tendo aqui referido a Achille Talon, nunca cheguei a apresentar devidamente essa personagem incontornável da BD franco-belga. Criada em 1963 por Greg, Achille Talon – cujo nome constitui um trocadilho em francês da expressão calcanhar (talon) de Aquiles – é uma personagem marcante, um quarentão burguês solteiro, a viver com os pais, terrivelmente convencido de si mesmo e dono de um discurso eruditíssimo além de intercalado de interjeições sobranceiras como hop! e bof!, o que torna muito complicadas algumas das traduções das histórias de Achille Talon para outros idiomas.
Como os tradutores eram obrigados a adaptar algumas piadas que se perdiam da versão original para o seu idioma, registaram-se vários casos em que a solução encontrada resultou mais feliz do que o original. É, em minha opinião, o caso dos títulos escolhidos em português para os três álbuns iniciais: Não ao Sonho!, Achille Talon agrava o seu caso e, sobretudo, Achille Talon ainda não disse tudo(*). Ou o caso do tradutor espanhol, que era de tal forma criativo, que o próprio Greg se serviu de algumas das suas adaptações para criar novas histórias a partir das ideias por ele inventadas.
É engraçado como se podem aplicar as histórias de Achille Talon à blogosfera nacional. Há aquilo que poderei baptizar como Pose Talon, blogues em que o autor o imita tão bem no pretensiosismo e na petulância (este ou este são apenas dois desses exemplos ) que parece que só fica a faltar o remate final do bof! em cada poste... Outros casos, como o da história acima (clicar em cima para ampliar), parecem especialmente concebidos para parodiar blogues eruditos, como é o caso do Herdeiro de Aécio. E outros, como a história de baixo(**), parecem-me excelentes metáforas da cadeia de amizades que o Portugal dos Pequeninos e o seu autor têm sabido granjear
(*) Os originais franceses têm os títulos: Achille Talon cerveau choc, Achille Talon aggrave son cas e Achille Talon persiste et signe.
(**) Para comparação, a versão original francesa da história pode ser lida aqui.

25 setembro 2009

UMA CERTO ESTILO CINEMATOGRÁFICO DE POLÍTICA EXTERNA

Mais do que uma cena bem conseguida de um grande filme (Os Salteadores da Arca Perdida) parece-me ser uma excelente síntese da forma de conduzir a política externa que é preconizada, desde há muito, por uma certa corrente de pensamento da intelectualidade norte-americana: quando parece estrangeiro e tem aspecto ameaçador, dispara-se. Como acontece quando o filme é exibido, a audiência costuma adorar a cena… mas o pior são as consequências, que nem tudo acaba bem como nos filmes.
Por curiosidade, assinale-se que a cena dos Salteadores da Arca Perdida era originalmente diferente.

24 setembro 2009

…POR UM ENGANO DA NATUREZA…

Uma das melhores apresentações pessoais de sempre, que poderá explicar muitos dos equívocos em que o nosso Mundo vive, aparece na primeira página do álbum Lucky Luke contra Joss Jamon, em que, na apresentação do bando do segundo, aparece uma personagem de seu nome, Sam, o lavrador, que, por um engano da natureza, foi beneficiado com uma cara de homem honesto.
Foi mesmo há pouco que me voltei a lembrar desses enganos da natureza quando, numa ronda pelos blogues e lendo o que lá vai pelo Abrupto, mais uma vez constatei que só mesmo por engano da natureza é que quem apresenta assim argumentos tão demagógicos e facciosos como os que lá se podem ler é que pode ter aquele aspecto de intelectual reflectido e ponderado

23 setembro 2009

PORQUE SIM!

Quando eu tinha para aí uns quatro anos tive uma fase em que andei embevecido com a expressão Porque sim! porque, estava eu convencido, não só dava para que eu conseguisse explicar tudo a toda a gente como, ainda por cima, a explicação era de uma tal qualidade que parecia que eu ficava sempre com toda a razão. O meu pai acabou cerce com tal fase, respondendo rispidamente a mais um Porque sim! dos meus com um Porque sim! dos dele: – Porque sim! – disse-me – não é explicação nenhuma!...
Como a têm sempre aos quatro anos, o meu pai tinha razão no fundo, ainda que menos na forma. O que ele ali me tinha acabado de ensinar, e que eu só muito depois vim a aprender, é que não se pode empregar a expressão Porque sim! a seco, embora a ideia que ela transmite pudesse ser empregue, desde que fosse devidamente refraseada. Mas, talvez por causa destes traumas de infância, não o costumo fazer e, mais que isso, sou muito sensível à sua utilização mesmo que camuflada, causa próxima, aliás, da inserção deste poste.
E essa causa começa na obra póstuma de um escritor chileno chamado Roberto Bolaño (acima) que se intitula 2666 (mais acima) e à volta da qual parece soprar uma espécie de vento de magistralidade, cuja sustentação, nos sítios da internet por onde procurei, me parece bastante difusa... De um quase anónimo entre nós há um punhado de semanas atrás, transitamos agora para a fase da contagem decrescente do lançamento de uma obra prima, o acontecimento literário da década – cá está! – porque sim!
Claro que, para que o Porque sim! funcione em pleno, tem que haver uns comparsas que também Achem que sim!, para que os papalvos que, naturalmente, não acham nada a respeito de uma obra de um escritor que era praticamente desconhecido, se sintam em falta por serem ignorantes… Parecendo que não, a conjugação de todas estas manobras e ainda mais uns pormenores como a criação de um blogue dedicado especificamente ao lançamento, pertencem ao âmbito do marketing puro, o que me faz lembrar outras minhas encarnações…
A lembrarem-me ocasiões e locais (acima) onde também havia coisas parecidas com margaritas, «acepipes mexicanos», shots de chili com carne e música, altura para se afirmar arrojadamente – Porque sim! – que o Peugeot 406 iria ser um sucesso comercial garantido e um carro destinado a marcar automobilisticamente a próxima década… Neste nosso caso também, o que Francisco José Viegas pretende é vender mais uns livritos, mas há um tal pedantismo e snobeira associados à manobra, que a nossa tolerância desaparece… e o autor, às vezes, não merece.

Adenda de dia 26 de Setembro: …e o prémio do Porque Sim! mais requintadamente ridículo parece-me ir para um pretenso manifesto contra a bovinidade. É que há tomar em conta que a condição de boi de manada não se perde apenas pela sugestão de que o pasto onde se come a erva possa ser muito exclusivo...

CHÁ, CAFÉ OU… CHOCOLATE?!

Havia um velho gag do recém-falecido Raul Solnado onde ele repetia inúmeras vezes chá, café ou laranjada?! Na realidade económica, o gigantesco mercado das bebidas quentes é composto por três produtos concorrenciais: o chá, o café, mas o terceiro é o chocolate, que a laranjada pertence a outro mercado à parte. Quem queira saber detalhes sobre o processo que levou a nossa civilização ocidental a adoptar o hábito de beber estas três bebidas exóticas, fique a saber que há na blogosfera quem trate do assunto.
Mas o que me proponho aqui abordar é um outro aspecto distinto, analisando como foi a evolução da produção mundial de qualquer destas três commodities (é esse o termo técnico para designar produtos daquele género) de há cerca de uns 40 anos para cá, quem foram e quem são actualmente os maiores produtores mundiais de cada uma, já que, do ponto de vista agrícola e como se sabe, nenhuma delas se dá bem com os climas dos países que mais as consomem.
A primeira observação importante é que o café, com uma produção mundial anual que ronda os 8 milhões de toneladas, será a mais importante das três bebidas e representa, só por si e em volume, mais do que as duas outras produções somadas, a de chá (quase 4 milhões) e chocolate (3,5 milhões). Contudo, estas duas últimas tiveram um maior crescimento nos últimos 40 anos, em que a produção de ambas praticamente triplicou, enquanto que a produção mundial de café apenas duplicou.
Apesar de continuar a ser o maior produtor mundial de café, o Brasil deixou de ser o produtor hegemónico que havia sido no passado, passando de ⅔ da produção mundial para um pouco menos de ⅓. Embora a lista dos dez grandes produtores permaneça quase na mesma, mau grado a variação relativa das posições, realce-se a substituição de dois antigos grandes produtores da África Ocidental (a Costa do Marfim e Angola) por dois novos grandes produtores asiáticos (o Vietname e a Índia).
Em contrapartida, no caso da produção de cacau, é a mesma Costa do Marfim que acima havia desistido da produção maciça de café que veio a assumir a condição de maior produtor mundial do produto, com cerca de ⅓ do total, destronando aquele que havia sido o tradicional maior produtor mundial, o vizinho Gana. O Brasil e a sua prosperidade baiana dos coronéis da Gabriela foi relegado para o meio do quadro e, também neste produto, despontou a Indonésia como um grande produtor asiático.
Ao contrário dos dois anteriores, sendo o chá um produto tipicamente asiático (continente a que pertencem oito dos dez maiores produtores mundiais) e onde tradicionalmente a China e a Índia sempre disputaram a primazia quanto ao estatuto de maior produtor mundial, a curiosidade aqui põe-se na deslocalização da produção para fora da Ásia, como é o caso do Quénia, cujo volume de produção se multiplicou por 16 vezes nos últimos 40 anos, e um outro caso curioso é o da Argentina, classificada em 9º lugar.

22 setembro 2009

CALVÁRIOS DA APRENDIZAGEM DA HISTÓRIA: ALGUNS NOMES ÁRABES E O CALENDÁRIO REPUBLICANO FRANCÊS

Das minhas leituras da história tenho que destacar dois períodos de duas civilizações completamente distintas que me deixaram completamente tonto porque não conseguia (e não consigo…) acompanhar com fluidez a sucessão dos acontecimentos. O primeiro período é o das cruzadas no Próximo Oriente medieval, especialmente a fase do contra-ataque dos soberanos muçulmanos locais (finais do Século XII), onde se destacam as acções de Saladino, que reconquistou Jerusalém dos cruzados ocidentais em 1187.
É preciso esclarecer que Saladino se chamava, numa transliteração mais correcta do seu nome, Ṣalāh ad-Dīn. O problema é que Ṣalāh ad-Dīn era filho de Najm ad-Dīn e sobrinho de Asad ad-Dīn e ao longo da vida teve uma data de rivais e aliados (alguns deles seus parentes…) com os nomes de Nūr ad-Dīn, ´Imād ad-Dīn, Mu'in ad-Dīn, Sayf al-Dīn, ´Adud al-Dīn, ´Izz al-Dīn, etc., o que transformou a minha leitura da sua biografia no livro acima num verdadeiro calvário só para conseguir identificar quem era quem…
Um outro drama é o período da Revolução Francesa, a partir da altura em que é adoptado o calendário republicano(*). Aqui, a tortura é a de saber quando, porque os meses passam a designar-se por nomes como Vindimiário, Ventoso, Florial ou Termidor... E o quando é muito importante numa época revolucionária como aquela, em que o vencedor deste mês podia ser o vencido do próximo: Robespierre venceu Danton, executado no 16 Germinal Ano II(**), para ser derrubado (e executado) três meses depois no 9 Termidor (**).

(*) Por coincidência hoje (22 de Setembro de 2009) começa um novo ano republicano: é o dia 1 do Vindimiário do Ano CCXVIII.
(**) 5 de Abril e 27 de Julho de 1794, respectivamente.

21 setembro 2009

AFEGANISTÃO: TUDO DE NOVO OUTRA VEZ?

Um dos princípios essenciais do jornalismo é aquele que estabelece que tem de haver uma notícia em destaque. O efeito mais caricato desse princípio observa-se nas ocasiões em que não há notícias verdadeiramente importantes (a tal silly season) e o destaque tem de recair em frioleiras, mas aquele que considero o efeito mais perverso do princípio ocorre nas ocasiões em que aparecem simultaneamente várias notícias importantes e a atenção tende a centrar-se naquela que, por uma qualquer razão jornalística, é marginalmente mais apelativa, deixando as outras notícias para um segundo plano.

Mas eu não estaria aqui a escrever sobre o assunto se, ao lado do aspecto carnavalesco e superficial dos circuitos de informação geral (televisão, rádio, jornais), coexistisse um outro mais restrito e rigoroso das revistas e sobretudo o das revistas especializadas, que funcionasse em paralelo e se elas fossem suficientemente imunizados das pressões apontadas no parágrafo acima: afinal, aquilo que se escreva sobre o positrão na revista Science não é propriamente o mesmo que estamos à espera de ler no Correio da Manhã, na eventualidade de tal partícula ser alguma vez referida naquele jornal…

Mas, por nem tudo ser assim tão cartesiano, é que se detecta um efeito de arrastamento que faz com que, e é a esse caso concreto que quero chegar, nas análises geoestratégicas e de relações internacionais publicadas nas revistas da especialidade, a discussão das questões associadas à presença norte-americana no Iraque tenham, por anos a fio, obscurecido as ligadas à da presença da NATO no Afeganistão. Só de há um punhado de meses para cá é que nessas revistas se tornou adequado referir criticamente o problema afegão, questionando o que é que as forças da NATO lá andaram a fazer desde há oito anos…

Recorde-se, para dar um efeito de proporção, que oito anos depois do início da nossa Guerra Colonial, em Portugal chegara-se a 1969, mergulhados na saturação do problema colonial, a que se esperava que a Primavera Marcelista (também) desse resposta… E se, no caso português, o regime ditatorial pode servir de explicação para que o problema não pudesse ser discutido às claras na sociedade, fica por explicar como é que nas sociedades democráticas dos países da NATO com tropas no Afeganistão (Portugal...) não se questiona a colaboração naquilo que, de há uns anos para cá, parece vir a acabar num grande fiasco…

Reconhecimentos da situação afegã afirmando que já há vozes que defendem a substituição da estratégia de contra-insurreição por outra é um daqueles understatements(*) que merece ser replicado com várias daquelas perguntas irónicas: Outra? Quer dizer que havia uma? E, tendo havido, será que essa estratégia existiu mesmo além do papel?... É que uma das omissões mais significativas de todos estes anos de presença da NATO no Afeganistão é a inexistência de relatos de operações em que unidades do exército regular afegão se confrontem com rebeldes porque normalmente quem o faz são as unidades estrangeiras.
Parece que, se entre os rebeldes afegãos há quem saiba o que quer para aquele país e se disponha a bater por isso, do outro lado, se também há quem saiba o que quer – nomeadamente Hamid Karzai, o presidente... – a disposição tem de ser toda da NATO… Convém esclarecer que o exército afegão praticamente não existiu entre 2001 e 2004 (somente 13.000 efectivos em Dezembro de 2004) e que só depois disso começou um processo de recrutamento que o levou ao patamar actual de 90.000 efectivos (Maio de 2009), em trânsito para um objectivo global de 134.000 (e 96.000 polícias) estabelecido para 2010.

Depois da chegada de Obama à presidência e entre os norte-americanos, no meio da atenção mediática redobrada sobre o problema afegão que me referi a princípio, há quem ache que a medida com maior impacto mediático será a de anunciar objectivos ainda mais ambiciosos com um patamar de 250.000 soldados e 160.000 polícias para 2013. E prometeram-no. Apetece perguntar: Quem dá mais?... Esta pergunta irónica deve-se ao facto de, ao mesmo tempo que se expande no papel o dispositivo militar no Afeganistão no futuro, o comandante local da NATO pede reforços de tropas combatentes para já

Já foi tempo em que a prudência me mandava duvidar que os responsáveis norte-americanos conseguissem repetir as mesmas asneiras crassas que os seus antecessores e os de outras potências (França, Reino Unido, Portugal, União Soviética) haviam cometido em situações de contra-subversão no passado. Os erros descomunais, tanto político quanto tácticos, que foram cometidos no Iraque demonstraram-me quanto essa prudência podia ser excessiva e como parece que entre eles não se cultivou (e continua a não se cultivar…) a aprendizagem a partir da sabedoria que resulta da memória histórica.

Vejamos um dos potenciais erros políticos, a questão da reeleição de Hamid Karzai, que foi fortemente contestada pela constatação de fraudes maciças, detectadas por uma comissão de verificação pela ONU criada para o efeito, embora a CIA já se tenha apressado a reconhecê-lo como o vencedor natural apesar de confirmar a existência de uma enorme fraude. Também em Outubro de 1971, perante a passividade americana, Nguyễn Văn Thiệu foi reeleito presidente do Vietname do Sul com 94% dos votos com a ausência, por alegações de fraude, dos opositores não comunistas: Dương Văn Minh e Nguyễn Cao Kỳ(**).

Vejamos agora um dos potenciais erros militares, a crença, só por si e sem atender à qualidade dos recrutas (que até agora não demonstraram nada…), que a expansão do dispositivo militar e policial do regime para mais de 400.000 efectivos irá criar uma malha que garanta a protecção das populações. Em Outubro de 1967, um estudo norte-americano avaliava as diversas forças (regulares e milícias) sul-vietnamitas em 732.000 homens que, com os 453.000 norte-americanos, se opunham a apenas 296.000 guerrilheiros vietcong e soldados norte-vietnamitas. O resultado final não terá sido uma questão de efectivos(***)
(*) Expressão em inglês que se refere a uma figura de estilo em que o assunto em foco é subestimado quase até ao limite do absurdo.
(**) O que alienou definitivamente as simpatias por parte daqueles e de quase todos os outros opositores não comunistas do regime, isolando-o.
(***) O dispositivo militar sul-vietnamita, além de enorme, era caríssimo de operar, muito para além das capacidades económicas de um país pobre como o Vietname do Sul.

20 setembro 2009

A MELHOR FRASE DO CASO WATER…MELON

O nome de baptismo do Caso já vem de há um mês atrás mas a verdade é que o Caso Water…melon (abaixo) tornou a ressurgir passado um mês, e não só nos cabeçalhos de outros jornais, já que o Provedor do Leitor do próprio Público lhe dedicou toda a sua atenção na sua coluna do Domingo passado e também no deste. Note-se que se trata de um cargo dificíl, que tem tido nos últimos anos uma rotação de titulares idêntica, senão mesmo superior, à que tem acontecido com os treinadores do Benfica…
E, se no segundo caso parece haver uma satisfação geral com o titular, Jorge Jesus, com a mesma opinião se fica do actual Provedor do Leitor do Público, que se chama Joaquim Vieira (na fotografia abaixo). Na segunda parte da sua crónica de hoje, em que analisa a conduta de alguns membros do jornal nas notícias nele publicadas que a Presidência da República estaria a ser alvo de vigilâncias e escutas por parte do Governo, Joaquim Vieira fica a uns escassos centímetros do qualificativo arrasador:

Do comportamento do Público, o provedor conclui que resultou uma atitude objectiva de protecção da Presidência da República, fonte das notícias, quanto aos efeitos políticos que as manchetes de 18 (acima) e 19 de Agosto acabaram por vir a ter. E isto, independentemente da acumulação de graves erros jornalísticos praticados em todo este processo (…). Mas a melhor frase de Vieira perde-se no meio da crónica: Afinal de contas, o jornal até podia ter um Watergate debaixo do nariz, mas não no sentido que os seus responsáveis calculavam.

CEIA RÚSTICA

A passagem abaixo, extraída do conto Civilização de Eça de Queirós sempre me fez salivar e foi um dos primeiros casos em que me apercebi porque, para além de quaisquer explicações adicionais, se torna evidente quando o que está bem escrito, está bem escrito. As fotografias estão aqui apenas para enfeitar, porque para mim as imagens da narrativa, muito mais nítidas e precisas do que as que agora arranjei, sempre existiram na minha imaginação desde que li o conto pela primeira vez…
(…) Na mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma vela de sebo, meio derretida num castiçal de latão, alumiava dois pratos de louça amarela, ladeados por duas colheres de pau e por garfos de ferro. Os copos, de vidro grosso e baço, conservavam o tom roxo do vinho que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. O covilhete de barro com as azeitonas deleitaria, pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes. Na larga broa estava cravado um facalhão… Pobre Jacinto!
Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta… E sorriu, murmurando com espanto:
- Está bom!

Estava realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já, arredando a broa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousara na mesa uma travessa vidrada que transbordava de arroz com favas. Ora, apesar de a fava (que os Gregos chamara ciboria) pertencer às épocas superiores da civilização e promover tanto a sapiência que havia em Sício, na Galácia, um templo dedicado à Minerva Ciboriana – Jacinto sempre detestara favas. Tentou todavia uma garfada tímida. De novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuraram os meus. Outra garfada, outra concentração… E eis que o meu dificílimo amigo exclama:
- Está óptimo!

Eram os picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas mulheres que em baixo remexiam em panelas, cantando o “Vira, meu bem”? Não sei – mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar:
- Está divino!

Nada porém o entusiasmou como o vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! (…)

19 setembro 2009

O QUE O DINHEIRO NÃO COMPRA...

Para além de Alberto João Jardim, Belmiro de Azevedo é outro dos campeões das bojardas mediáticas da sociedade portuguesa. Então depois da desilusão que constituiu o facto de não ter contado com o apadrinhamento governamental para a sua OPA sobre a PT, que o fez mudar-se com armas e bagagens para a oposição, o seu estilo inconveniente ainda mais se acentuou. Ontem lamentou-se pela ausência de qualquer representante governamental numa cerimónia de inauguração de um complexo de edifícios pertencentes à sua organização.
Fez muio bem em ter chamado a atenção para o facto. Mas o dinheiro não compra o respeito quando este não lhe é reconhecido. Não deixa de ser engraçado que, caso tivesse comparecido algum membro do governo à tal inauguração, ninguém estranharia se depois Belmiro de Azevedo, com toda a cortesia, se tivesse aproveitado dos mesmos microfones onde se esteve a queixar para amesquinhar o convidado por ele ter comparecido a uma inauguração em pleno período eleitoral, inauguração essa para onde o governo não contribuíra com um cêntimo…

FLOR DA IDADE

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia 
 P´ra ver Maria 

 A gente almoça e só se coça e se roça
 e só se vicia 

A porta dela não tem tramela 
 A janela é sem gelosia 
 Nem desconfia 

Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor 

Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família 
 A armadilha 

 A mesa posta de peixe, deixe um cheirinho da sua filha 
 Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha 
 Que maravilha 

 Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor 

Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua 
 A gente sua 

A roupa suja da cuja se lava no meio da rua 
 Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua 
 E continua 

 Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor 

 Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo 
Que amava Juca que amava Dora que amava Carlos que amava Dora 
 que amava Rita que amava Dito que amava Rita Que amava Dito 
 que amava Rita que amava Carlos amava Dora que amava Pedro 
 que amava tanto que amava a filha que amava Carlos que amava Dora 
Que amava toda a quadrilha 
Que amava toda a quadrilha 
Que amava toda a quadrilha

18 setembro 2009

FENG YUXIANG, O GENERAL CRISTÃO

Aquilo que se conta da História da China nos 38 anos que medeiam entre Outubro de 1911, a data do derrube da monarquia imperial, e Outubro de 1949, a data da proclamação da República Popular da China (acima), é uma simplificação demasiado excessiva da profusão de acontecimentos que a China então atravessou. E nessa simplificação, tanto o papel do Partido Comunista Chinês como o de Mao Zedong tende a ser sobreavaliado por causa da sua condição de vencedores posteriores da Guerra Civil (1945-1949).
Na realidade, os comunistas chineses, onde houve muito mais protagonistas para além de Mao, foram apenas um dos inúmeros centros de autoridade em que a China se viu retalhada durante as décadas de 1910 e 1920 (acima) e mesmo depois disso. Por debaixo da suserania formal de Chiang Kai-Shek (1887-1975, abaixo à direita), que se promovera à categoria pomposíssima, mas vaziíssima, de Generalíssimo, cada uma das manchas do mapa acima representavam um poder político autónomo, protagonizado por um general.
E se a forma como esses generais eram designados colectivamente era antipática (os Senhores da Guerra), os seus cognomes individuais, pelo contrário, eram muito elogiosos e até com um certo cunho poético, como os casos de Zhang Zuolin, o Tigre de Mukden, Zhang Xueliang, o Jovem Marechal, Wu Peifu, o General Filósofo, Yan Xishan, o Governador Modelo (abaixo, à direita de Chiang Kai-Shek) e a vedeta deste poste, Feng Yuxiang (1882-1948), o General Cristão (acima e abaixo, à esquerda de Chiang).
Para uma opinião pública ocidental que não estava muito interessada nos meandros complexos da política chinesa, e provavelmente nem sequer os compreenderia bem, o qualificativo de cristão (no caso, Protestante e Metodista) era um atributo propenso a despertar simpatias imediatas. Para mais quando Feng Yuxiang gostava de cultivar uma imagem de sobriedade associada a um estilo de vida austero e a uniformes modestos, o que fazia um enorme contraste com aquilo que era a prática corrente entre os seus colegas.
Contudo, em contraste com os milhões de baptizados que a direita religiosa esperaria dele e que nunca se concretizaram, o programa político que Feng Yuxiang aplicava nas regiões sob seu controlo era um paternalismo que não se mostrava imune às influências socialistas que então lhe chegavam da União Soviética… Como noutros casos, o papel político autónomo de Feng Yuxiang veio a desaparecer depois da invasão japonesa (abaixo), entalado entre as ambições territoriais destes e a necessidade de uma frente unida para os deter sob Chiang Kai-Shek.