20 setembro 2009

CEIA RÚSTICA

A passagem abaixo, extraída do conto Civilização de Eça de Queirós sempre me fez salivar e foi um dos primeiros casos em que me apercebi porque, para além de quaisquer explicações adicionais, se torna evidente quando o que está bem escrito, está bem escrito. As fotografias estão aqui apenas para enfeitar, porque para mim as imagens da narrativa, muito mais nítidas e precisas do que as que agora arranjei, sempre existiram na minha imaginação desde que li o conto pela primeira vez…
(…) Na mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma vela de sebo, meio derretida num castiçal de latão, alumiava dois pratos de louça amarela, ladeados por duas colheres de pau e por garfos de ferro. Os copos, de vidro grosso e baço, conservavam o tom roxo do vinho que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. O covilhete de barro com as azeitonas deleitaria, pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes. Na larga broa estava cravado um facalhão… Pobre Jacinto!
Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta… E sorriu, murmurando com espanto:
- Está bom!

Estava realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já, arredando a broa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousara na mesa uma travessa vidrada que transbordava de arroz com favas. Ora, apesar de a fava (que os Gregos chamara ciboria) pertencer às épocas superiores da civilização e promover tanto a sapiência que havia em Sício, na Galácia, um templo dedicado à Minerva Ciboriana – Jacinto sempre detestara favas. Tentou todavia uma garfada tímida. De novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuraram os meus. Outra garfada, outra concentração… E eis que o meu dificílimo amigo exclama:
- Está óptimo!

Eram os picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas mulheres que em baixo remexiam em panelas, cantando o “Vira, meu bem”? Não sei – mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar:
- Está divino!

Nada porém o entusiasmou como o vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! (…)

1 comentário:

  1. Texto este que antecipa e ensaia o romance propriamente dito, A Cidade e as Serras...curiosamente também o primeiro que li de Eça. A grande diferença entre as duas passagens deve ser o nome do caseiro (aqui é Zé Brás, no romance é Melchior).

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