A passagem abaixo, extraída do conto Civilização de Eça de Queirós sempre me fez salivar e foi um dos primeiros casos em que me apercebi porque, para além de quaisquer explicações adicionais, se torna evidente quando o que está bem escrito, está bem escrito. As fotografias estão aqui apenas para enfeitar, porque para mim as imagens da narrativa, muito mais nítidas e precisas do que as que agora arranjei, sempre existiram na minha imaginação desde que li o conto pela primeira vez…
(…) Na mesa de pinho, recoberta com uma toalha de mãos, encostada à parede sórdida, uma vela de sebo, meio derretida num castiçal de latão, alumiava dois pratos de louça amarela, ladeados por duas colheres de pau e por garfos de ferro. Os copos, de vidro grosso e baço, conservavam o tom roxo do vinho que neles passara em fartos anos de fartas vindimas. O covilhete de barro com as azeitonas deleitaria, pela sua singeleza ática, o coração de Diógenes. Na larga broa estava cravado um facalhão… Pobre Jacinto!
Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta… E sorriu, murmurando com espanto:
- Está bom!
Mas lá abancou resignado, e muito tempo, pensativamente, esfregou com o seu lenço o garfo negro e a colher de pau. Depois, mudo, desconfiado, provou um gole curto do caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou para mim, seu companheiro e amigo, uns olhos largos que luziam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada do caldo, mais cheia, mais lenta… E sorriu, murmurando com espanto:
- Está bom!
Estava realmente bom: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia. Eu, três vezes, com energia, ataquei aquele caldo: foi Jacinto que rapou a sopeira. Mas já, arredando a broa, arredando a vela, o bom Zé Brás pousara na mesa uma travessa vidrada que transbordava de arroz com favas. Ora, apesar de a fava (que os Gregos chamara ciboria) pertencer às épocas superiores da civilização e promover tanto a sapiência que havia em Sício, na Galácia, um templo dedicado à Minerva Ciboriana – Jacinto sempre detestara favas. Tentou todavia uma garfada tímida. De novo os seus olhos, alargados pelo assombro, procuraram os meus. Outra garfada, outra concentração… E eis que o meu dificílimo amigo exclama:
- Está óptimo!
Eram os picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas mulheres que em baixo remexiam em panelas, cantando o “Vira, meu bem”? Não sei – mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar:
- Está divino!
Nada porém o entusiasmou como o vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! (…)
- Está óptimo!
Eram os picantes ares da serra? Era a arte deliciosa daquelas mulheres que em baixo remexiam em panelas, cantando o “Vira, meu bem”? Não sei – mas os louvores de Jacinto a cada travessa foram ganhando em amplidão e firmeza. E diante do frango louro, assado no espeto de pau, terminou por bradar:
- Está divino!
Nada porém o entusiasmou como o vinho, o vinho caindo de alto, da grossa caneca verde, um vinho gostoso, penetrante, vivo, quente, que tinha em si mais alma que muito poema ou livro santo! (…)
Texto este que antecipa e ensaia o romance propriamente dito, A Cidade e as Serras...curiosamente também o primeiro que li de Eça. A grande diferença entre as duas passagens deve ser o nome do caseiro (aqui é Zé Brás, no romance é Melchior).
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