Um dos princípios essenciais do jornalismo é aquele que estabelece que tem de haver uma notícia em destaque. O efeito mais caricato desse princípio observa-se nas ocasiões em que não há notícias verdadeiramente importantes (a tal silly season) e o destaque tem de recair em frioleiras, mas aquele que considero o efeito mais perverso do princípio ocorre nas ocasiões em que aparecem simultaneamente várias notícias importantes e a atenção tende a centrar-se naquela que, por uma qualquer razão jornalística, é marginalmente mais apelativa, deixando as outras notícias para um segundo plano.
Mas eu não estaria aqui a escrever sobre o assunto se, ao lado do aspecto carnavalesco e superficial dos circuitos de informação geral (televisão, rádio, jornais), coexistisse um outro mais restrito e rigoroso das revistas e sobretudo o das revistas especializadas, que funcionasse em paralelo e se elas fossem suficientemente imunizados das pressões apontadas no parágrafo acima: afinal, aquilo que se escreva sobre o positrão na revista Science não é propriamente o mesmo que estamos à espera de ler no Correio da Manhã, na eventualidade de tal partícula ser alguma vez referida naquele jornal…
Mas, por nem tudo ser assim tão cartesiano, é que se detecta um efeito de arrastamento que faz com que, e é a esse caso concreto que quero chegar, nas análises geoestratégicas e de relações internacionais publicadas nas revistas da especialidade, a discussão das questões associadas à presença norte-americana no Iraque tenham, por anos a fio, obscurecido as ligadas à da presença da NATO no Afeganistão. Só de há um punhado de meses para cá é que nessas revistas se tornou adequado referir criticamente o problema afegão, questionando o que é que as forças da NATO lá andaram a fazer desde há oito anos…
Recorde-se, para dar um efeito de proporção, que oito anos depois do início da nossa Guerra Colonial, em Portugal chegara-se a 1969, mergulhados na saturação do problema colonial, a que se esperava que a Primavera Marcelista (também) desse resposta… E se, no caso português, o regime ditatorial pode servir de explicação para que o problema não pudesse ser discutido às claras na sociedade, fica por explicar como é que nas sociedades democráticas dos países da NATO com tropas no Afeganistão (Portugal...) não se questiona a colaboração naquilo que, de há uns anos para cá, parece vir a acabar num grande fiasco…
Reconhecimentos da situação afegã afirmando que já há vozes que defendem a substituição da estratégia de contra-insurreição por outra é um daqueles understatements(*) que merece ser replicado com várias daquelas perguntas irónicas: Outra? Quer dizer que havia uma? E, tendo havido, será que essa estratégia existiu mesmo além do papel?... É que uma das omissões mais significativas de todos estes anos de presença da NATO no Afeganistão é a inexistência de relatos de operações em que unidades do exército regular afegão se confrontem com rebeldes porque normalmente quem o faz são as unidades estrangeiras.
Mas eu não estaria aqui a escrever sobre o assunto se, ao lado do aspecto carnavalesco e superficial dos circuitos de informação geral (televisão, rádio, jornais), coexistisse um outro mais restrito e rigoroso das revistas e sobretudo o das revistas especializadas, que funcionasse em paralelo e se elas fossem suficientemente imunizados das pressões apontadas no parágrafo acima: afinal, aquilo que se escreva sobre o positrão na revista Science não é propriamente o mesmo que estamos à espera de ler no Correio da Manhã, na eventualidade de tal partícula ser alguma vez referida naquele jornal…
Mas, por nem tudo ser assim tão cartesiano, é que se detecta um efeito de arrastamento que faz com que, e é a esse caso concreto que quero chegar, nas análises geoestratégicas e de relações internacionais publicadas nas revistas da especialidade, a discussão das questões associadas à presença norte-americana no Iraque tenham, por anos a fio, obscurecido as ligadas à da presença da NATO no Afeganistão. Só de há um punhado de meses para cá é que nessas revistas se tornou adequado referir criticamente o problema afegão, questionando o que é que as forças da NATO lá andaram a fazer desde há oito anos…
Recorde-se, para dar um efeito de proporção, que oito anos depois do início da nossa Guerra Colonial, em Portugal chegara-se a 1969, mergulhados na saturação do problema colonial, a que se esperava que a Primavera Marcelista (também) desse resposta… E se, no caso português, o regime ditatorial pode servir de explicação para que o problema não pudesse ser discutido às claras na sociedade, fica por explicar como é que nas sociedades democráticas dos países da NATO com tropas no Afeganistão (Portugal...) não se questiona a colaboração naquilo que, de há uns anos para cá, parece vir a acabar num grande fiasco…
Reconhecimentos da situação afegã afirmando que já há vozes que defendem a substituição da estratégia de contra-insurreição por outra é um daqueles understatements(*) que merece ser replicado com várias daquelas perguntas irónicas: Outra? Quer dizer que havia uma? E, tendo havido, será que essa estratégia existiu mesmo além do papel?... É que uma das omissões mais significativas de todos estes anos de presença da NATO no Afeganistão é a inexistência de relatos de operações em que unidades do exército regular afegão se confrontem com rebeldes porque normalmente quem o faz são as unidades estrangeiras.
Parece que, se entre os rebeldes afegãos há quem saiba o que quer para aquele país e se disponha a bater por isso, do outro lado, se também há quem saiba o que quer – nomeadamente Hamid Karzai, o presidente... – a disposição tem de ser toda da NATO… Convém esclarecer que o exército afegão praticamente não existiu entre 2001 e 2004 (somente 13.000 efectivos em Dezembro de 2004) e que só depois disso começou um processo de recrutamento que o levou ao patamar actual de 90.000 efectivos (Maio de 2009), em trânsito para um objectivo global de 134.000 (e 96.000 polícias) estabelecido para 2010.
Depois da chegada de Obama à presidência e entre os norte-americanos, no meio da atenção mediática redobrada sobre o problema afegão que me referi a princípio, há quem ache que a medida com maior impacto mediático será a de anunciar objectivos ainda mais ambiciosos com um patamar de 250.000 soldados e 160.000 polícias para 2013. E prometeram-no. Apetece perguntar: Quem dá mais?... Esta pergunta irónica deve-se ao facto de, ao mesmo tempo que se expande no papel o dispositivo militar no Afeganistão no futuro, o comandante local da NATO pede reforços de tropas combatentes para já…
Já foi tempo em que a prudência me mandava duvidar que os responsáveis norte-americanos conseguissem repetir as mesmas asneiras crassas que os seus antecessores e os de outras potências (França, Reino Unido, Portugal, União Soviética) haviam cometido em situações de contra-subversão no passado. Os erros descomunais, tanto político quanto tácticos, que foram cometidos no Iraque demonstraram-me quanto essa prudência podia ser excessiva e como parece que entre eles não se cultivou (e continua a não se cultivar…) a aprendizagem a partir da sabedoria que resulta da memória histórica.
Vejamos um dos potenciais erros políticos, a questão da reeleição de Hamid Karzai, que foi fortemente contestada pela constatação de fraudes maciças, detectadas por uma comissão de verificação pela ONU criada para o efeito, embora a CIA já se tenha apressado a reconhecê-lo como o vencedor natural apesar de confirmar a existência de uma enorme fraude. Também em Outubro de 1971, perante a passividade americana, Nguyễn Văn Thiệu foi reeleito presidente do Vietname do Sul com 94% dos votos com a ausência, por alegações de fraude, dos opositores não comunistas: Dương Văn Minh e Nguyễn Cao Kỳ(**).
Vejamos agora um dos potenciais erros militares, a crença, só por si e sem atender à qualidade dos recrutas (que até agora não demonstraram nada…), que a expansão do dispositivo militar e policial do regime para mais de 400.000 efectivos irá criar uma malha que garanta a protecção das populações. Em Outubro de 1967, um estudo norte-americano avaliava as diversas forças (regulares e milícias) sul-vietnamitas em 732.000 homens que, com os 453.000 norte-americanos, se opunham a apenas 296.000 guerrilheiros vietcong e soldados norte-vietnamitas. O resultado final não terá sido uma questão de efectivos(***)…
(*) Expressão em inglês que se refere a uma figura de estilo em que o assunto em foco é subestimado quase até ao limite do absurdo.
Depois da chegada de Obama à presidência e entre os norte-americanos, no meio da atenção mediática redobrada sobre o problema afegão que me referi a princípio, há quem ache que a medida com maior impacto mediático será a de anunciar objectivos ainda mais ambiciosos com um patamar de 250.000 soldados e 160.000 polícias para 2013. E prometeram-no. Apetece perguntar: Quem dá mais?... Esta pergunta irónica deve-se ao facto de, ao mesmo tempo que se expande no papel o dispositivo militar no Afeganistão no futuro, o comandante local da NATO pede reforços de tropas combatentes para já…
Já foi tempo em que a prudência me mandava duvidar que os responsáveis norte-americanos conseguissem repetir as mesmas asneiras crassas que os seus antecessores e os de outras potências (França, Reino Unido, Portugal, União Soviética) haviam cometido em situações de contra-subversão no passado. Os erros descomunais, tanto político quanto tácticos, que foram cometidos no Iraque demonstraram-me quanto essa prudência podia ser excessiva e como parece que entre eles não se cultivou (e continua a não se cultivar…) a aprendizagem a partir da sabedoria que resulta da memória histórica.
Vejamos um dos potenciais erros políticos, a questão da reeleição de Hamid Karzai, que foi fortemente contestada pela constatação de fraudes maciças, detectadas por uma comissão de verificação pela ONU criada para o efeito, embora a CIA já se tenha apressado a reconhecê-lo como o vencedor natural apesar de confirmar a existência de uma enorme fraude. Também em Outubro de 1971, perante a passividade americana, Nguyễn Văn Thiệu foi reeleito presidente do Vietname do Sul com 94% dos votos com a ausência, por alegações de fraude, dos opositores não comunistas: Dương Văn Minh e Nguyễn Cao Kỳ(**).
Vejamos agora um dos potenciais erros militares, a crença, só por si e sem atender à qualidade dos recrutas (que até agora não demonstraram nada…), que a expansão do dispositivo militar e policial do regime para mais de 400.000 efectivos irá criar uma malha que garanta a protecção das populações. Em Outubro de 1967, um estudo norte-americano avaliava as diversas forças (regulares e milícias) sul-vietnamitas em 732.000 homens que, com os 453.000 norte-americanos, se opunham a apenas 296.000 guerrilheiros vietcong e soldados norte-vietnamitas. O resultado final não terá sido uma questão de efectivos(***)…
(*) Expressão em inglês que se refere a uma figura de estilo em que o assunto em foco é subestimado quase até ao limite do absurdo.
(**) O que alienou definitivamente as simpatias por parte daqueles e de quase todos os outros opositores não comunistas do regime, isolando-o.
(***) O dispositivo militar sul-vietnamita, além de enorme, era caríssimo de operar, muito para além das capacidades económicas de um país pobre como o Vietname do Sul.
Para além do interesse geral que este artigo merece, pelo tratamento e oportunidade do tema, eu recomendá-lo-ia sobretudo aos admiradores das teses securitárias de Paulo Portas.
ResponderEliminarNão é assim tão simples António Marques Pinto, descartarmo-nos daquilo que designa por teses securitárias. Quando se faz parte de uma Aliança militar (como é o caso da nossa participação na NATO) por vezes tem que se engolir umas “pílulas amargas” por causa das cláusulas “contratuais”.
ResponderEliminarFoi assim, por exemplo, com a Austrália, que fazia parte da SEATO e que manteve um contingente de cerca de 5.000 homens no Vietname do Sul durante dez anos (1962-72) apesar de enormes discordâncias com a maneira como os Estados Unidos estavam a conduzir a Guerra.
Foi assim, por exemplo, com a Polónia, membro do Pacto de Varsóvia, quando contribuiu com 28.000 homens (15% do total) para a invasão da Checoslováquia em Agosto de 1968, apercebendo-se perfeitamente que estava a contribuir para o estabelecimento de um precedente político-militar que legitimaria uma possível intromissão soviética na sua política interna.