30 setembro 2007

QUANDO O ORIENTE É VERMELHO MAS VERMELHO MESMO, ATÉ CHATEAR DE TANTA VERMELHIDÃO…

Corria o ano de 1970 e parecia que os maiores excessos da Revolução Cultural chinesa já haviam passado quando a 25 de Abril a agência noticiosa Nova China informava (com a linguagem castiça dos costume…) que a República Popular havia colocado em órbita o seu primeiro satélite artificial recorrendo (e aqui vinha a parte importante da notícia, sobretudo para os militares…) ao emprego de um dos seus novos foguetões, baptizados com o poético nome de Longa Marcha 1.
Depois da torrente ideológica, seguiam-se alguns detalhes técnicos importantes, como a sua órbita, que tinha um perigeu de 439 Km. e um apogeu de 2.384 Km. de altitude, demorando 114 minutos a realizar cada órbita terrestre. Mas o que verdadeiramente impressionava os especialistas era o peso do novo satélite chinês (acima, uma réplica), 172 Kg., o que representava sensivelmente o dobro do primeiro satélite de todos, o Sputnik 1 (84 Kg.), que fora lançado para o espaço pelos soviéticos 13 anos antes.
Aliás, muitos outros pormenores evocavam a disputa ideológica sino-soviética, então no seu auge: o satélite fora baptizado Dong Fang Hong 1 (O Oriente é Vermelho) e, em vez do bip-bip-bip em 20.005 e 40.002 MHz que tornara famoso o seu rival soviético, o satélite chinês emitia em 20.009 MHz o próprio hino O Oriente é Vermelho, levando para o espaço aquele portentoso cântico de devoção maoista, como se ele não fosse já suficientemente chato cá na terra…

Nota Final: O Dong Fang Hong 1 ainda lá está, orbitando a terra. Felizmente calou-se ao fim de um mês. A própria China demorou mais algum tempo a esgotar as pilhas...

29 setembro 2007

YUMZHGYIN TSEDENBAL, O LÍDER COMUNISTA AINDA MAIS BEM QUISTO QUE CUNHAL

Há assuntos que se propagam como as conversas que, como diz o ditado, são como as cerejas, mesmo quando já passou o seu tempo… A respeito de Yumzhgyin Tendenbal, aparecido no poste anterior, lembrei-me da fotografia de cima, que contém uma indesmentível dimensão histórica, porque se trata de uma das raras fotografias em que aparecem simultaneamente Staline e Mao. A ocasião em que foi tirada foi a da celebração oficial dos 70 anos do ditador soviético em Dezembro de 1949. Como todas as boas comemorações daquele tipo de regimes, a fotografia capta o momento mais aclamado da cerimónia, o das palmas colectivas que se batem mas não são dedicadas a ninguém em especial - Stalin também está a batê-las… É uma fotografia que também tem algumas histórias curiosas a ela associadas.

O primeiro pormenor pitoresco é que Stalin, naquela celebração dos seus 70 anos, já tinha 71 anos… A sua data oficial de nascimento era 21 de Dezembro de 1879 e as celebrações processavam-se de acordo com ela, mas actualmente acredita-se que ele nascera efectivamente a 18 de Dezembro do ano anterior (1878). Era portanto um ano mais velho do que constava na biografia. Enfim, ter uma data de nascimento oficial e outra real ainda hoje é um fenómeno frequente entre os portugueses mais velhos. Outro fenómeno muito português é o de mostrarmos curiosidade quanto à identificação dos convidados presentes nas festas de aniversário, especialmente aqueles que aparecem mais próximos do aniversariante.

Na fotografia de cima e da esquerda para a direita, aparecem sucessivamente em fervorosa actividade aplaudente, Lazar Kaganovich (?), Mao Zedong, Nikolai Bulganin, Stalin, Walter Ulbricht, Yumzhgyin Tsedenbal (com os óculos de nerd…) e Nikita Khrushchev. Vale a pena falar dos estrangeiros. Os três que aparecem naquele palco são Mao, que acabara de proclamar a República Popular da China um mês e meio antes (1 de Outubro de 1949), Ulbricht, que fizera o mesmo com a República Democrática Alemã (10 de Outubro de 1949) e o mongol Tsedenbal, o país menos populoso de todo o campo socialista naquele altura, cujas razões para o destaque da sua presença ali nunca vi explicadas satisfatoriamente*. Porque é garantido pelas regras da coreografia daquelas cerimónias que ele não estava ali por acaso…

É que, por muito internacionalismo proletário que devesse existir e por muita irmandade que houvesse entre os partidos comunistas, estar e parecer estar nas boas graças em Moscovo sempre foi um objectivo de qualquer partido comunista e esse estatuto era medido também na simbologia das posições relativas nestas cerimónias. Era como ter uma gramática própria, interpretando os lugares protocolares, em vez dos vestidos, como acontece nas fotografias da ¡Hola!... Naquele caso, além dos dirigentes dos novos estados socialistas da China e da Alemanha, era o representante da Mongólia que aparecia ali destacado em relação aos dirigentes de todos os países da Europa de Leste como a Polónia, a Checoslováquia, a Hungria ou a Bulgária, para já não falar dos dirigentes dos importantes (e poderosos) partidos comunistas francês e italiano…

Aliás, prova da importância que mesmo em Portugal se dava a isso, no PCP nunca se deixou de usar a carta do orgulho patriótico ao sugerir o grande apreço de que Álvaro Cunhal gozaria junto de alguns membros da cúpula soviética por causa das suas qualidades intelectuais (Mikhail Suslov era o membro do Politburo mais evocado, que se insinuava ser uma espécie de padrinho de Cunhal). Pois bem, se a ortodoxia pode superar o valor específico de cada partido, então Cunhal – que era apenas um ano mais novo do que o seu homólogo mongol – nunca teve uma distinção pública como a Tsedenbal, a de passar por íntimo do grande líder do movimento comunista mundial numa tal festa de aniversário!

Manda a verdade pura confessar que o ortodoxo e inquebrantável Tsedenbal acabou por ser afastado do poder muitos anos depois daquela fotografia (em 1984) por excesso de ortodoxia – até havia casado com uma russa muito militante…Enfim, nestas coisas se calhar nem devia haver verdades puras, apenas as da dialéctica, porque terá sido a dialéctica que fez desaparecer da fotografia oficial Shi Zhe, que era o intérprete de Mao naquela cerimónia. E ele estava no palco, porque Mao não falava uma palavra de russo, conforme se vê na ponta esquerda da fotografia abaixo, rigorosamente idêntica à anterior, mas antes de ser retocada**…
Remover das fotografias de aniversário aqueles que nelas aparecem por estarem a trabalhar (como criados, porteiros e, neste caso, tradutores) é que já não é um gesto assim tão comum… E sobretudo, parece-me um gesto muito pouco socialista…

* Mais intrigante, Tsedenbal nem era naquela época o líder do partido mongol.
** O retoque englobou também aqueles que apareciam mais atrás, incluindo a guarda de honra, ao fundo, que passou toda a segurar bandeiras – mas não o importantíssimo Tsedenbal!

28 setembro 2007

MONGÓLIA, O PAÍS COM A MENOR DENSIDADE POPULACIONAL DO MUNDO

Quando cheguei à idade de me começar a interessar pela geografia humana, um dos pormenores pitorescos que ainda recordo é que a Mongólia era o único país do mundo que tinha uma densidade populacional inferior a 1 habitante por Km²: nos finais dos anos 60, seriam cerca de 1,2 milhões os habitantes mongóis* num território ligeiramente maior a 1,56 milhões de Km². E havia ainda outros pormenores adicionais que o transformavam num país pitoresco, um dos quais as suas características continentais, que lhe davam um clima de extremos, de calor no Verão, de frio no Inverno. A capital Ulaanbaatar (que, com a capital do Alto Volta, era preciosa para o jogo do Stop, por começar pela letra U…) regista as temperaturas médias anuais mais baixas de todas as capitais do Mundo.
O pavilhão da Mongólia na Expo 98 em Lisboa foi uma enorme desilusão, chupista, a pedir preços impossíveis por qualquer mísero objecto e até tentando sacar dinheiro pela hipótese de se ser fotografado num Ger tipicamente mongol (acima - trata-se de uma tenda móvel também conhecida por Yurt). Devia ser o lado antipático daquele povo a evidenciar-se, o seu lado Gengis Khan, o criador do maior império terrestre contínuo da História da humanidade no Século XIII, um império que rapidamente se veio a fragmentar e a desaparecer, não deixando saudades entre os povos que dele fizeram parte. A sua outra faceta, que despontou depois dessa epopeia, a de um pequeno povo entalado entre dois colossos imperiais (Rússia e China) é muito mais simpática.
Esta Mongólia, formalmente conhecida por Mongólia Exterior, era a Mongólia que coubera à esfera de influência russa. A Mongólia Interior (mapa acima) do lado chinês, que se tornou numa região autónoma da China é ligeiramente menos extensa (1,18 milhões de Km²) mas muito mais povoada (24 milhões de habitantes), embora não por mongóis, que são apenas 4 milhões. Mas é por ter ficado debaixo da esfera de influência do império russo que a Mongólia, que foi berço de Gengis Khan, também se pode gabar de se ter tornado o terceiro estado de operários e camponeses (marxista-leninista) mais antigo do mundo, fundado em 24 de Novembro de 1924**: a República Popular da Mongólia, sob a orientação vanguardista do Partido Revolucionário Popular da Mongólia (PRPM).
Com a China a atravessar um período de desagregação (1911-49), invadida depois pelo Japão em 1931, a Mongólia, embora formalmente independente, nunca teve oportunidade de jogar um papel intermédio entre dois colossos e não passou de uma extensão do império soviético. O idioma mongol abandonou o seu alfabeto próprio para passar a ser escrito em cirílico, como o russo e todas as outras línguas da União Soviética (na Mongólia Interior manteve-se o alfabeto tradicional), e foi em solo mongol, ou nas suas fronteiras com a China que se travaram os grandes embates militares entre russos e japoneses, no princípio e no fim da Segunda Guerra Mundial, como já tive oportunidade de descrever neste blogue (Khalkhin-Gol e Tempestade de Agosto).
Nem a partir de 1949, com a proclamação da República Popular da China, nem depois de 1960, com a assunção às claras das divergências sino-soviéticas, a Mongólia alguma vez hesitou nas suas fidelidades: ao lado de outros líderes vacilantes (especialmente europeus), a ortodoxia de Yumzhagyin Tsedenbal (1916-91) era reputada, parecia ser de betão!... Depois foi a vez da União Soviética entrar em colapso e a Mongólia, por arrasto, também deixar de ser marxista-leninista. Entalada naquele lugar geográfico nada invejável, deve ser um dos raros países do mundo onde George W. Bush fez uma visita (Novembro de 2005) e foi genuinamente bem recebido… Por uma associação de ideias inconfessável, deixem-me apenas dizer que na Mongólia existem alguns dos mais importantes e interessantes depósitos de fósseis de dinossauros de todo o Mundo…

* Actualmente (2007) aproximar-se-ão dos 3 milhões.
** O segundo estado marxista-leninista (1921) mais antigo do Mundo, depois da própria Rússia, foi a remota e (em termos populacionais) pequena República Popular de Tuva, vizinha da Mongólia, também designada por Tanu-Tuva. Veio a ser absorvida pela União Soviética em 1944.

PEQUENOS EPISÓDIOS DAS VIDAS DE GRANDES HOMENS

Um dia, num daqueles salões londrinos do Século XIX, Lorde Melbourne, que era então o Ministro do Interior do Governo de Sua Majestade, perguntou a um jovem romancista (30 anos) de cabelo encaracolado e aspecto meridional a quem acabara de ser apresentado: - Então, o que é que desejais vir a ser? - Primeiro-Ministro, Sir! – foi a resposta pronta de um jovem Benjamin Disraeli, que já se apercebera que, naqueles meios, mais valia com que se rissem e dessem por ele do que correr o risco de passar desapercebido. Mas também não se tratava de uma descoberta particularmente arguta de Disraeli.
Alguns milénios antes, fora creditada a Alcibíades a decisão de cortar o rabo ao seu cão para que houvesse um assunto a seu respeito que circulasse pela sociedade da Atenas da Antiguidade. Note-se o preciosismo do objecto da notícia não ser o sacrifício do cão que ficara com o rabo capado, mas antes a pessoa do seu proprietário que o submetera a tal tortura: duvido que tenham anestesiado o bicho… Mas a grande Evidência destes dois acontecimentos que narrei é que a importância histórica dos dois nomeados em nada depende daqueles dois epifenómenos.
Enganam-se as pessoas que, como Pedro Santana Lopes, tendem a confundir a forma com o fundo… Assim, uma saída espectacular em directo de um estúdio de televisão, que seria um pequeno episódio da vida de um grande homem pode transformar-se num grande episódio da vida de um pequeno homem. Mas também não é preciso que haja outros que os ajudem naquela ilusão, como Ricardo Costa*, levando a sua obstinação ao limite da obtusidade: que tal Costa reconhecer que meteu água**?... Olhem, como Duarte Gomes, o árbitro do último Estrela Amadora – Benfica. O gesto ficou-lhe tão bem…

* Como muito bem nota aqui a Sofia, parece que Ricardo Costa é propenso a estas manias de grandeza, onde confunde o seu lugar na plateia (ainda que nas primeiras filas, para fazer perguntas aos que estão no palco…) com um lugar próprio seu de destaque no palco, como intérprete para as massas daquilo que os protagonistas dizem.
** É da tradição que numa situação destas de um unanimismo esmagador, há sempre quem veja na adopção de uma opinião discordante da multidão a recompensa do destaque para a sua pessoa. Neste caso, acontece com Eduardo Cintra Torres, que sustenta a sua opinião em pérolas de argumentação como Mourinho pode não ter dito nada de interessante, mas Santana Lopes não diz nada de interessante há 30 anos ou não é uma figura relevante na sociedade portuguesa como é Mourinho… Às vezes Cintra Torres, que se deve pensar uma figura mais relevante da sociedade portuguesa do que aquilo que de facto é, diz coisas interessantes mas quando não diz... tresanda a despeito e daquele despeito que se exprime de uma forma rasca.

27 setembro 2007

A MENINA DA FOTOGRAFIA

Depois de se ter clarificado a peripécia em que a criança alourada fotografada em Marrocos em Agosto passado por turistas espanhóis não tinha nada a ver com a outra que desaparecera três meses antes no Sul de Portugal, pergunto-me se só terá sido a mim que me ficou um travo desagradável de um racismo encapotado em toda aquela história?...
Por a criança ser alourada, por a criança ser marroquina, por que a suspeita foi levantada por turistas europeus (espanhóis)? Ficou a sensação que houve ali demasiada imaginação acompanhada de um indisfarçável preconceito… Tanto que fica a certeza quase absoluta que se o episódio se tivesse passado, por exemplo, na Dinamarca, não teria havido notícia… Só a Sul é que se roubam meninas pequenas...

AS BERMUDAS QUE PERMITIRAM A BARROSO VESTIR-SE A RIGOR PARA A OCASIÃO SOLENE

Se for verdade aquilo que se afirma no final de um artigo do DN de hoje, retirado por sua vez do jornal El Pais de língua castelhana, então a escolha dos Açores para local de realização da cimeira que desencadeou a guerra do Iraque teve muito mais a ver com a cacofonia associada ao nome do local originalmente previsto para a sua realização – a ilha Bermuda, também no meio do Atlântico – do que com o prestígio granjeado por Portugal, pelos Açores ou pela pessoa de José Manuel Barroso.
Às claras, a história é demasiado estúpida para ser totalmente inventada. Eventualmente, dada a origem espanhola da notícia, haverá o retoque florido de atribuir forçadamente a decisão do local da Cimeira a Aznar quando todos sabem que ele e a Espanha não passaram naquele trio de comparsas menores – e os factos posteriores vieram demonstrar que, quando uma história envolve os aliados dos Estados Unidos deste presidente Bush, o adjectivo menor quer dizer mesmo muito menor
Mas não restam dúvidas que se torna imensamente embaraçoso se se vier a descobrir à posteriori que o lugar da história de José Manuel Barroso (aqui, à esquerda de gravata vermelha) se deve à contingência de evitar que o nome da cimeira da Bermuda pudesse ser confundido com a peça de roupa homónima. Terá sido assim que o insigne primeiro-ministro português se tornou um anfitrião substituto de última hora do conhecidíssimo Alex Scott (abaixo), ministro-presidente (na época) do governo da colónia britânica da Bermuda (65.000 habitantes e 53 Km²)?
Se assim aconteceu, trata-se de um embaraço de causar arrepios! Em primeiro lugar para José Manuel Barroso, a confirmar-se um suplente sempre disponível (como aconteceu com a presidência da comissão europeia…), mas também para aqueles autores que, na altura, escreveram todos aqueles textos aprofundados sobre o significado do euroatlantismo e da escolha simbólica dos Açores para a realização daquela cimeira… Olha se Bush tivesse embirrado ao saber que açor era nome de pássaro?....

MAGALHÃES MOTA

Se aqui torno a evocar Magalhães Mota, agora com a notícia da sua morte, é para reflectir sobre uma das suas fotografias mais conhecidas, aquela em que aparece com Sá Carneiro e Pinto Balsemão em Maio de 1974, na conferência de imprensa de apresentação do PPD. Vale a pena especular sobre o que seriam as expectativas daqueles três políticos para o futuro do partido que acabavam de fundar. Melhor que isso, ainda resta Balsemão para poder falar na primeira pessoa a esse respeito.

Mas num aspecto arrisco: sendo já naquela altura reputados pelo seu percurso liberal antes de 74, pertencendo à classe média/alta urbana, dificilmente desejariam incorporar para o seu novo partido aquele espírito lusitano rural desenrascado, fura-vidas e pouco amigo das regras, que é o antepassado sociológico natural dos dois actuais contendores à liderança do PSD. Só que nesse mês de Maio de 74, esses antepassados de Mendes e Menezes andavam a tentar passar desapercebidos por terem pertencido à ANP ou à LP*, onde se haviam inscrito, não por convicção, mas para ganhar mais uns cobres

Uma nota final, distinta do assunto principal deste poste: certamente que o directo do funeral de Magalhães Mota** – a haver… – não vai interromper nenhuma entrevista… Pelas reacções que se vão sentindo (veja-se a caixa de comentários desta notícia) e expurgado o corporativismo da praxe, a SIC Notícias e, sobretudo, Ricardo Costa bem podem enfiar a viola no saco

* ANP: Acção Nacional Popular, o partido do regime deposto. LP: Legião Portuguesa, organização paramilitar do regime, também encarregue dos golpes sujos durante os actos eleitorais: manipulação de cadernos, votação dos ausentes e falecidos, etc. Soa a familiar, não é?...
** Recorde-se o do futebolista Miklós Fehér em 2004.

26 setembro 2007

O PANEGIRISTA

O panegírico era uma forma de discurso praticada na Antiguidade Clássica durante as ocasiões solenes, onde o conteúdo desse discurso era, simultaneamente, do mais retocado que se podia conceber do ponto de vista de estilo e gramatical e, por outro lado, extremamente elogioso. Ou, para exprimir de uma forma mais exemplificativa qual o estilo praticado, extremamente encomiástico ou laudatório… Transmitido dos gregos para os romanos, estes, com o sentido prático que se lhes reconhece, mantiveram o estilo oratório e o requinte literário, mas com o discurso apenas dirigido aos que estavam vivos (e eram poderosos)…
Os imperadores romanos tinham panegíricos a eles dedicados, assim como havia bustos seus e teria havido possivelmente retratos seus que não conhecemos porque não sobreviveram para a posterioridade. Um panegírico era também a imagem de um imperador e de um reinado. Claro que a evolução dos tempos conduziu, como seria de esperar, à banalização do panegírico: o que antes era concebido para ocasiões excepcionais tornou-se muito mais frequente. Tornou-se também um ganha-pão para os homens de letras da Antiguidade tardia (Século III a V d.C.): nem todos eram de origem senatorial com rendimentos próprios, como acontecera com Cícero
A crua verdade é que, esgotada a sua função, um panegírico é sempre um panegírico, um formato desinteressante, que produz obras secundárias. Usando um plebeísmo que propositadamente contraste com tanta erudição, é uma maneira de dar manteiga ou de engraxar alguém importante, tendo em vista a obtenção de vantagens materiais enquanto se mandam as convicções próprias às urtigas. Escolhendo, para exemplo, um autor típico da época dos panegíricos excessivos como Eusébio de Cesareia (275-339), que é considerado o primeiro teólogo de Corte (da de Constantino), ele produziu um conjunto de obras muito interessantes e… ainda vários panegíricos sobre Constantino-o-Grande.
Foi deste lado negro, mundano e mesmo venal de certos intelectuais, de quem ambiciona um qualquer prato de lentilhas, que me lembrei ao ler a prosa de hoje de Vasco Graça Moura no DN, mimoseando Luís Marques Mendes e o PSD que ele quer reconquistar com nacos de prosa tão laudatórios quanto O PSD voltou a ser um partido com credibilidade institucional e política. As lentilhas, neste caso, parecem ser moralmente parcas mas, pelos vistos, materialmente substanciais, para quem assina aquela prosa: a manutenção do lugar de eurodeputado em Estrasburgo para um independente que depende sempre das boas graças do presidente do partido para conseguir renovar o seu mandato…
A gigantesca lavagem de roupa suja em público por que o partido está agora a atravessar na fase final da campanha eleitoral interna (com a esmagadora maioria da culpa a pertencer à candidatura de Luís Filipe Menezes...), que parece estar a transformar a imagem das regras de funcionamento de toda a estrutura administrativa nacional do PSD num gigantesco Apito Cor-de-Laranja (dando a perceber retroactivamente porque Valentim Loureiro era tão bom nos dois apitos…), apenas torna mais gritantemente descabido o inoportuno e desastrado panegírico de Vasco Graça Moura. Os factos tornam-no ridículo a começar pelo título (O Ranger de dentes do PS...), mas um autor de panegíricos como ele, porque se dispõe a tudo, acaba por merecer tudo…

25 setembro 2007

THE SKEPTICAL ENVIRONMENTALIST*

Vale a pena começar por dizer que este livro é chato, muito chato mesmo, daquele formato académico aborrecido que se percebe mesmo que quem o escreveu não se preocupou minimamente em ser simpático para o leitor porque assumiu que quem o lê o faz por gosto da matéria ou tem de o fazer por recomendação (further readings…) do professor. Não fosse a controvérsia a ele associada e tê-lo-ia posto imediatamente de parte, em homenagem a todos os outros livros maçudos que fui obrigado a ler com aquele figurino, gráfico pós gráfico, sem uma prosa imaginativa para os amenizar.

Outra coisa é o conteúdo do livro. O autor chama-se Bjǿrn Lomborg, é dinamarquês e teve um percurso académico onde se especializou em Ciência Política até vir depois a leccionar estatística adaptada às Ciências Sociais. A maioria do material contido no livro são, aliás, análises estatísticas apresentadas em séries temporais, que mostram as evoluções dos mais variados indicadores, cujas interpretações apontam para evoluções muito mais conservadoras - quando não as desmentem totalmente… - do que as previsões de degradação acelerada do meio ambiente que costumam ser apresentadas pelos ambientalistas.

E, ao contrário de outras teses revisionistas (como o negacionismo do holocausto), a fundamentação e a interpretação dos dados ali contidos parece perfeitamente sólida e muito difícil de desmontar. Normalmente, na maioria dos assuntos que ali são abordados, as conclusões que dali se extraem atenuam ou mesmo contrariam as teses predominantes que estamos acostumados a ouvir sobre problemas ambientais. A começar pela evidência lapalissiana que raramente ouvimos constatada: nunca a Humanidade gozou, qualitativa e quantitativamente, de tão boas condições de bem-estar…

Será porventura o optimismo implícito contido em tal afirmação (que Lomborg procura demonstrar ser verdadeira) que a torna inimiga dos defensores dos programas políticos que se socorrem dos efeitos de choque do alarmismo para a defesa das suas causas? A verdade é que o que tenho lido sobre as controvérsias associadas a este livro (que só se desencadearam a partir do momento em que ele foi traduzido para inglês, em 2001) se baseiam muito mais na ferocidade cega contida nos ataques (alguns ad hominem) do que na substância da refutação científica da matéria nele contida.

Mas também é verdade que o livro é muito mais do que um mero trabalho de estatística ou mesmo de economia, ainda que sobre um assunto delicado, como Lomborg já tentou argumentar, querendo fazer-se passar por politicamente ingénuo, algo que ele não será, lembremo-nos da sua formação académica de base… Para mim, contudo, a grande revelação deste livro é a descoberta como os modernos problemas do ambiente, ao contrário das disciplinas que lhes estão na base (como a meteorologia…), são do âmbito das Ciências Sociais e como tal são discutidos. Isto para já não falar de quem os leva para os campos da teologia…

Assim, exemplificando e socorrendo-me de um caso recente entre nós, manifesto o meu maior cepticismo sobre a componente científica do debate a respeito dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM): tudo o que nele aparecer que se lhe assemelhe, não passará de um argumentário instrumental para reforço das opiniões formadas de antemão….

* O Ambientalista Céptico – o título do poste mantém o da designação do livro, de que não conheço tradução portuguesa.

24 setembro 2007

AS POLÍCIAS – 2

Embora haja sempre quem os conteste lavando a argumentação ao limite do disparate, os números e os indicadores numéricos, se não podem explicam tudo, podem ao menos conter elementos que abalam as nossas convicções mais profundas. Entre as áreas metropolitanas de Paris e de Nova Iorque, suponho que não haja dúvidas qual delas será considerada a mais policiada…
Pois bem, na grande Paris havia um polícia para 162 habitantes em 2001 (617 polícias por 100.000 habitantes). Mas em Nova Iorque, no mesmo ano, havia um polícia para 205 habitantes (488 por 100.000). Mais do que isso, os efectivos policiais novaiorquinos haviam aumentado substancial e recentemente de 29.500 em 1994 para 39.000 (+32%) em 2001, durante a administração de Rudolph Giulani
Ao contrário do que possamos pensar, os bonés dos cops (mais acima) são muito mais raros que os bonés dos flics (acima)…

23 setembro 2007

AS POLÍCIAS - 1

É com um certo orgulho que registo as diferenças de tratamento com que as patrulhas de trânsito costumam abordar os automobilistas em Portugal e Espanha. Geralmente – aqui há que forçosamente fazer generalizações – os elementos das patrulhas portuguesas dão mostras de uma cortesia e de um civismo no tratamento com os automobilistas que fazem os seus homólogos espanhóis passarem por arrogantes e mal-educados. É um dos raros casos em que, creio, beneficiamos por termos tido uma Revolução em vez de uma Transição, como aconteceu no caso espanhol.
A Revolução de 1974 em Portugal desmontou a relação (muito baseada no receio) entre a população e as polícias que vinha do regime anterior – quem não se lembra como, durante o PREC, era sempre preciso chamar os militares quando acontecia qualquer distúrbio? Foi depois preciso reconstruir essa relação em democracia, com a própria instituição policial a tomar consciência quanto a sua aceitação pela população é um elemento indispensável ao seu bom desempenho. Estou ocnvicto que essa será uma explicação longínqua porque o elemento da patrulha da BT me pede os meus documentos da viatura, por favor.
A Guardia Civil sempre pareceu ser um dos suportes do regime franquista em Espanha. A sua popularidade era correspondente: não era por acaso que os dirigentes iniciais da ETA escolhiam os seus membros para vítimas dos seus ataques terroristas… Como as Forças Armadas espanholas, a Guardia Civil era uma organização com ideologia, a quem se pedia apenas, durante a Transição da ditadura para a democracia, que não se opusesse a ela… Mesmo assim, tornou-se famosa a fotografia de um seu oficial superior (Tejero Molina - abaixo) de pistola em punho na Câmara de Deputados, a dar a cara pelo golpe anti-democrático falhado de 1981
Actualmente, ainda é muito fácil encontrar na Net panegíricos ao tenente-coronel golpista de há (mais de) 25 anos, escritos por quem pretende estar a falar em nome de toda a instituição… Não sei até que ponto essa imagem, associando a Guardia Civil e o autoritarismo político, ainda será verdadeira, mas a cortesia com que me mandam encostar numa autovia** estremenha reforça-ma… A verdade é que a Espanha continua a ser uma sociedade extremamente policiada. É o país que conta com mais efectivos policiais na Europa ocidental: existem ali 507 polícias por 100.000 habitantes, enquanto esse mesmo indicador para Portugal é mais de 30% inferior (340)*…

É caso para dizer que, comprovadamente, se não há dúvidas que a Espanha é uma democracia, também não as há que é uma daquelas democracias policialmente muito musculadas, onde as relações entre polícias e população não parecem ser das mais fraternas, onde esteja interiorizado que as primeiras estão ao serviço da segunda... É preferível o exemplo dos polícias portugueses onde, mesmo sendo proporcionalmente menos e, não tendo elementos para dizer se são melhores, pelos menos sei que me transmitem uma sensação de melhor segurança…

* Quid 2004. O mesmo indicador para outros países da União Europeia: França 396, Itália 364, Áustria 347, Bélgica 342, Alemanha 329, Irlanda 322, Reino Unido 303, Holanda 288, Suécia 286, Luxemburgo 250, Dinamarca 198 e Finlândia 154.
** Auto-estrada em castelhano.

22 setembro 2007

A NOTÍCIA

A pouco e pouco têm vindo a ser revelados os contornos de uma operação clandestina que foi desencadeada por Israel no passado dia 6 de Setembro onde, supostamente, uma esquadrilha dos seus aviões bombardeou de surpresa alvos que estavam situados no Nordeste da Síria, cuja natureza permanece difícil de explicitar. Os pormenores da história têm vindo a aparecer aos bochechos, especialmente contados pela parte israelita (depois transpostos na imprensa mundial), quando alegadamente não o deveria fazer, dado que nela tem o papel antipático do agressor não provocado.

A transparência do que terá acontecido não melhora com a queixa formulada pela Síria junto do Conselho de Segurança da ONU, de onde não fica nada claro quais são os danos de que se queixa… É do lado israelita – onde até já se ouviram proclamações congratulatórias sobre o raid vindas da extrema direita… – que se têm ouvido alusões a um programa nuclear da Síria em colaboração com a Coreia do Norte… De qualquer modo, é muito estranho a Síria não exibir uma enorme campanha de vitimização às garras de Israel como está tão em voga entre os árabes naquelas paragens e naquelas circunstâncias.

Salvaguardadas as distâncias, há nesta história misteriosa alguns elementos semelhantes aos da última fase da história do desaparecimento da Maddie: são casos envoltos num pseudo-secretismo, em que um dos lados (Israel e a PJ) vai municiando os jornalistas ao ritmo das suas necessidades e são casos onde é difícil fazer a distinção maniqueísta entre os bons e os maus. Mas não há o perigo de que o ataque israelita do passado dia 6 ocupe a primeira meia hora de um telejornal por dias a fio: falta-lhe o toque de humanismo e a notícia exige um grau de abstracção demasiado para que a notícia se torne popular (os sírios têm impedido o acesso das estações de TV ao local do crime…).

Ainda há imensos detalhes por perceber relacionados com esta operação israelita, que faz lembrar uma outra, desencadeada tambem por Israel em 1981, contra o reactor nuclear iraquiano de Osirak. Esta história do ataque israelita é um caso magnífico para estabelecer a diferença entre o que considero uma excelente notícia e as excelentes histórias que fazem vender mais e prender a atenção do público. O atributo das segundas está normalmente no acessório, raramente no essencial… Mas creio que é com o material das primeiras que se constroem as verdadeiras peças de qualidade do jornalismo…

Adenda: O Público de hoje resolveu reservar as suas duas páginas de destaque a este assunto. É muito mais razoável que as vicissitudes de Mourinho de ontem…

21 setembro 2007

O AVESTRUZ-BRAVO

Os três ingredientes tradicionais de uma chicotada psicológica clássica como aquela que se deu no Chelsea são um clube que começa a época com maus resultados desportivos (confere), um treinador com modos de sargento que começa a dizer coisas à comunicação social com o ar mais convicto possível (confere, sempre as disse...) e um dirigente desportivo de fortuna recente que disfarça a sua insegurança sobre o que há a fazer, fazendo aquilo que lhe dizem para fazer para dar o aspecto que se fez qualquer coisa (também confere).
Parece ser apenas uma diferença de escala, e não qualitativa, a que justifica o tratamento dado ao despedimento de José Mourinho, hoje brindado com duas páginas (2 e 3) de destaque num jornal como o Público... Provavelmente porque o clube é inglês, o treinador despedido ter uma boca ainda mais escancarada do que o habitual e o empresário-dono-de-clube ser ainda mais rico do que o costume. Pela dimensão, Abramovich não será um pato-bravo mas sim um avestruz-bravo e alguns de entre nós não passamos de saloios labregos a dar uma relevância desmesurada a toda aquela história…

20 setembro 2007

KATYUSHA, A DESIGNAÇÃO CARINHOSA DE UMA ARMA QUE O NÃO È

Não é preciso entender russo para desconfiar que Katyusha é capaz de se tratar de um diminutivo carinhoso do nome Catarina (ou Yekaterina, na língua russa). E é verdade. Contudo, as versões que levaram um nome tão fofinho a servir para baptizar um dispositivo de artilharia cujo destino principal é o de instalar o terror nas linhas do inimigo é que são variadas, embora a maioria delas sejam inverosímeis.

As pesquisas sobre foguetes que se desenvolveram na União Soviética no período de entre guerras culminaram, na época do começo da Segunda Guerra Mundial, no aparecimento dentro da arma de artilharia do exército vermelho de sistemas de fogo menos convencionais, baseados em rampas múltiplas de pequenos foguetes de combustivel sólido (um foguete tipo tinha 1,80 metros de altura, um calibre de 132 mm e um peso de 42 Kg).
Os Katyusha, conhecidos entre os alemães pelo nome menos extremoso de Órgãos de Staline por causa do barulho peculiar provocado pela saída dos foguetes das suas rampas de lançamento, tinham um alcance curto (cerca de 5 Km), mas um efeito (pela combinação do efeito sonoro e explosivo) tão moralizador entre os soldados do lado de onde saíam, como desmoralizador nos soldados do lado onde aterravam…

Sendo a maioria das rampas motorizadas, tornou-se um sistema muito versátil que permitia concentrar um extraordinário poder de fogo num qualquer local da frente de combate. O seu ponto fraco reside no facto de que o remuniciamento das rampas era muito mais vagaroso do que o da artilharia tradicional, o que tornava o sistema vulnerável a um contra-ataque por parte da artilharia inimiga. Daí o valor da mobilidade.
Juntamente com o carro de combate T-34 nos blindados e a pistola-metralhadora PPSh-41 na infantaria, o BM-13 (pela artilharia) fazem parte da troica dos ícones mais conhecidos do armamento soviético da Segunda Guerra Mundial. E, apesar de terem sido utilizados sistemas similares durante o conflito, quer no exército alemão, quer entre os aliados ocidentais, foi um sistema que ficou para sempre conotado com os soviéticos.

Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, foram ainda os soviéticos que o continuaram a desenvolver embora a NATO, ao fim de quase 40 anos (1983) se tenha decidido finalmente a adoptar um sistema aparentado – o M270, empregue com muito sucesso nas guerras do Golfo. Mas a técnica do bate e foge destes sistemas parece pertencer geneticamente aos princípios tácticos dos soviéticos e seus derivados.
Ainda recentemente, o exército russo empregou-os em posição de força para arrasar os quarteirões de Grozny* onde se entrincheiravam os rebeldes chechenos, no quadro das guerras que os russos ali travam (imagem acima), enquanto o Hezbollah libanês, esse estando em posição de fraqueza, os usou para flagelar o norte de Israel no âmbito do conflito para que arrastou o Tsahal** durante o Verão do ano passado (embaixo).
* Grozny é a capital da Chechénia.
** Forças armadas israelitas.

19 setembro 2007

O DALAI LAMA E O PRACHANDA

A pessoa do Dalai Lama (Tenzin Gyatso), que recentemente até visitou Portugal (desencadeando um episódio que, como é óbvio, demonstrou como as verdadeiras prioridades da política externa não são para ter moralidade nenhuma...), é uma daquelas figuras que tem uma verdadeira projecção mundial e uma imagem facilmente reconhecível.
A projecção e o reconhecimento de Prachanda (Pushpa Kamal Dahal), o dirigente supremo do Partido Comunista do Nepal (Maoista), são muitíssimo inferiores, quase desconhecidos. Mas não a sua importância, numa disputa surda que há décadas se trava entre a China e a Índia, sobre a linha das alturas da maior cordilheira do Mundo, a dos Himalaias.
Hoje foi notícia a saída dos comunistas nepaleses do governo de coligação formado no seguimento de uma quase ignorada guerra civil que ali tem vindo a ser travada. É uma maneira da China ameaçar o lado indiano (sul) da cordilheira. Do outro lado, a ameaça (para a China) ao Tibete são as deambulações do Dalai Lama pelo mundo…
Estas análises geopolíticas (acima o mapa do Tibete com a capital, Lhasa, a norte do Nepal, com a capital Katmandu), mesmo quando ultra simplificadas como neste caso, costumam fazer todo o sentido, mas têm aquele desagradável efeito secundário de estragar aqueles enredos onde há os bons e os maus que, quando publicados, fazem depois vender mais jornais…

18 setembro 2007

MARTIN MILAN

A evocação, desta vez, não é dirigida a um autor (chama-se Christian Godard, no caso) mas a uma personagem semi-desconhecida da BD, Martin Milan. Martin Milan é o herói de uma banda desenhada a meio caminho entre o traço figurativo e o realista, um piloto que ganha a sua vida como taxista do ar aos comandos do seu avião, baptizado de Velho Pelicano que, como se vê pela gravura abaixo, parece estar sempre em vias de se vir a desconjuntar no ar, para gozo dos seus colegas…
Mas por aqui se esgotam os elementos de comicidade primária à volta das aventuras de Martin Milan. Ao contrário das de Astérix, por exemplo, as histórias do piloto do Velho Pelicano não têm cenas de grandes pancadarias ou outras caricaturas óbvias que suscitem o entusiasmo infantil; provavelmente por isso, Martin Milan nunca pôde ser uma daquelas séries populares entre as audiências infantis e juvenis das revistas semanais de BD, como o Tintin (onde as conheci).
Porque, apesar da aparência do traço, Martin Milan é uma série de BD para adultos, onde nem sequer os laivos de humor são fáceis de compreender. Quem as conhece, sabe que as personagens centrais costumam ser pessoas socialmente disfuncionais (embora essa disfuncionalidade se exprima das mais diversas maneiras) que, por o serem, despertam a mais profunda simpatia (solidária?) do protagonista. E que, por causa do público a que se destinavam, as histórias também contêm uma moral e costumam acabar bem no fim.
Durante as aventuras, Martin Milan costuma funcionar mais como testemunha do que propriamente o catalisador da acção, e as personagens e situações imaginadas por Godard são de um estilo e qualidade ímpares: desde um emirato rico em água mas sem petróleo, rodeado de emiratos ricos em petróleo, mas sem água*, a um safari ao contrário, onde se trata de libertar na savana uma leoa criada em cativeiro** (acima), passando pela história de espionagem de uma nova espingarda (o betisooka - veja-se a prancha abaixo) que lança raios que transformam as pessoas em idiotas***.
Como o seu herói, Godard também é um sonhador desalinhado e as suas histórias têm a extensão do que ele quer contar: existem aventuras de Martin Milan em formato curto (5 a 7 pranchas) e outras mais extensas, as mais recentes no formato tradicional de 42 a 46 pranchas de álbum, mas também as há – incluindo duas das que citei – nos formatos ingratos de 12, 20 ou 30 pranchas… Resta esclarecer que uma boa parte das aventuras de Martin Milan encontram-se esgotadas, mesmo nas edições em língua original (francês)…

* O Emir dos Sete Beduínos (L'Emir aux Sept Bédouins), publicado na revista Tintin, entre o nº 18 e o nº 34 do 7º ano.
** Eglantine da minha Juventude (Eglantine de ma Jeunesse), idem, entre o nº 52 do 4º ano e o nº 9 do 5º ano.
*** A Emboscada (Destination Guet-Apens), idem, entre o nº 36 e o nº 50 do 5º ano.

17 setembro 2007

NÃO É SÓ NESTE PAÍS…

Não é só neste país, como canta Sérgio Godinho, que os casos de corrupção tendem a passar impunes, por muito que existam indícios fortíssimos a envolver os implicados. A Lockheed Co. era (desapareceu absorvida por uma rival) uma construtora aeronáutica norte-americana que era mais afamada pela agressividade que colocava nas técnicas de promoção dos seus produtos do que propriamente pela qualidade dos mesmos…
Contudo, curiosamente, o apogeu dos escândalos associados às recordações com que a Lockheed gratificava directa ou indirectamente os membros dos comités de selecção dos equipamentos a adquirir não rebentou na década de 1960, quando houve um mega concurso para o equipamento de caças interceptores para as Forças Aéreas dos países da NATO que foi ganho surpreendentemente pelo seu F-104 Starfighter (abaixo)…
Nesse concurso, a concorrência era constituída primordialmente por aparelhos militares europeus (como os Mirage franceses) e a ressaca que se costuma gerar depois destes concursos coincidia com as tradicionais rivalidades nacionais. Mas na disputa para o equipamento das Forças Aéreas na próxima geração (em 1975-76), foram concorrentes compatriotas da Lockheed que fizeram rebentar o escândalo no Senado americano.
As investigações então efectuadas fizeram desenterrar volumosos subsídios entregues ao ministro da defesa alemão (e dirigente regional bávaro) Franz-Jozef Strauss, ao primeiro-ministro japonês Kakuei Tanaka (acima), ao marido da Rainha da Holanda, príncipe Bernardo, entre muitos outros beneficiados, menos mediáticos, mas decisores que eram funcionários e militares de países tão variados como a Itália ou a Arábia Saudita.
O mega concurso da década de 1970 foi ganho pela General Dynamics e o seu F-16 (acima)… Franz-Jozef Strauss continuou a ser o patrão na Baviera e do seu partido regional, a CSU, uma espécie de Alberto João Jardim em alemão, mais a sério e mais poderoso, Kakuei Tanaka continuou a manipular o Partido Liberal Democrata no poder no Japão, só que agora nos seus bastidores, e a Rainha Juliana não se divorciou obviamente do seu Bernardo…
De toda esta história ficou uma constatação que os negócios envolvendo armamento (como o dos submarinos, por exemplo…) operam com margens tão abundantes que se prestam facilmente a bondosas distribuições de benefícios entre os envolvidos e obtêm-se resultados! A outra constatação é que, mesmo sem ser neste país, o seu desmascaramento não costuma ter consequências sérias para as carreiras políticas dos envolvidos…

16 setembro 2007

OPINIÃO DE ALGUÉM MENOS ENTENDIDO EM RÂGUEBI

Para os menos entendidos no râguebi, um score de 108-13 poderá significar uma humilhação e um desfecho para esquecer.

É assim que começa a crónica de hoje do Diário de Notícias sobre o Nova Zelândia 108, Portugal 13, disputado ontem para o Campeonato do Mundo de Râguebi. É uma frase intimidatória para com os adversários que possam achar que o resultado foi uma tareia das valentes (não percebem de râguebi…), num estilo que se assemelha a um típico jogo de avançados, sem a subtileza (e a espectacularidade) do jogo à mão das linhas atrasadas…
Compreende-se que seja necessário passar uma mensagem positiva ao conjunto e motivá-lo. Tenho é uma certa dificuldade em compreender que o mesmo espírito primário, a mesma densidade comunicativa de cabo incitando o seu grupo de forcados para a próxima pega durante uma corrida de touros, seja depois transposta para o estilo com que a comunicação social se exprime para o exterior, aproveitando a ignorância geral do público sobre râguebi…
É por isso que as descrições se concentram em particulares: o ar empenhado com que se canta A Portuguesa, o facto se ser a única selecção amadora no Mundial (não é bem assim…) ou o brio dos membros da Selecção em ter chegado ao Mundial… Entretanto, tenta-se contornar coisas óbvias: é que se a modalidade quiser progredir em Portugal haverá um longo caminho a percorrer, mas que não terá nada a ver com os amadores de apelidos sonantes que até aqui têm dominado a modalidade…
Aquilo são apenas jogos de râguebi mas as apreciações dos resultados da selecção nacional até agora, perante derrotas tão pesadas quanto 10-56 e 13-108 são de uma generosidade tal que, copiando Tomaz Morais, o seleccionador nacional, até o rei D. Sebastião de Portugal poderia ter tirado dali umas ideias para elaborar as suas apreciações sobre Alcácer Quibir depois da batalha (para os menos entendidos na arte militar, aquela até teria sido uma batalha para esquecer…), não se tivesse dado a circunstância de lá ter morrido…