Quem consultar o palmarés dos Campeonatos Mundiais de Atletismo de 2007, realizados recentemente em Osaka, no Japão, constata que, para além da tradicional Rússia, a grande potência capaz de desafiar a hegemonia norte-americana não é a Alemanha, herdeira das tradições atléticas da saudosa RDA do passado, nem a emergente China do futuro, mas o prosaico Quénia, cujos atletas conquistaram 5 títulos mundiais, de um total de 13 medalhas averbadas pela sua equipa naquele certame.
Como é tradicional nos países da África sub-sahariana, a história da nação é recente, embora se possa fazer remontar a da região que hoje constitui o país a alguns séculos atrás. No caso do Quénia, os primeiros registos escritos existentes acerca da região são árabes, datam do Século VII e concentram-se sobre as povoações costeiras – destinadas a tornarem-se portos disputados no futuro – que os comerciantes muçulmanos visitavam e onde se começaram a registar algumas conversões à fé.
No entanto, as relações comerciais entre as costas orientais de África, a Arábia, o Egipto e a Índia devem ter-se iniciado em data muito anterior, possivelmente no Século I da era cristã. Mas os conhecimentos que existem sobre a evolução dos acontecimentos que ali foram tendo lugar até ao Século XIX estão muito distorcidos pelo destaque dado ao que aconteceu na sua província costeira – que apenas representa 1/7 da área total do Quénia moderno, albergando menos de 9% da sua população.
Assim, a chegada dos portugueses, nos princípios do Século XVI, que capturaram quase todos portos comerciais ao longo da costa oriental como Mombaça, Melinde, Zanzibar ou Quiloa, acabou por não ter reflexos significativos na situação política que regia entre as populações do interior, que mantiveram o mesmo padrão de comércio (ouro, marfim e escravos) já existente. A mesma lógica se aplica quando os omanitas – que também estiveram sobre suserania portuguesa – recuperaram as suas posições originais, nos finais do Século XVII.
Contudo, se a disputa pelo controlo das feitorias comerciais se travou entre estrangeiros, a língua franca na qual se passou a comerciar era distintamente local, o suaíli, de origem banto na sua estrutura e gramática, embora possuísse inúmeros vocábulos de origem árabe, persa, portuguesa, gujarati, tamil ou malaiala (as três últimas são línguas indianas). Escrita originalmente em caracteres árabes (Século XVI), foi já nos inícios do Século XX que se criou uma pronúncia de referência (a de Zanzibar), usando o alfabeto latino.
O conhecimento do interior por parte dos europeus só começou verdadeiramente na segunda metade do Século XIX. Os nomes de baptismo dos lagos Vitória e Alberto, então soberana (1837-1901) e príncipe-consorte do Reino Unido servem de registo quanto a presença britânica naquelas regiões tem menos de 200 anos. Mas as condições climáticas afiguraram-se promissoras para a colonização europeias e entregues a uma companhia britânica: apesar de situado sobre o Equador, boa parte do Quénia é um planalto de clima temperado, devido à altitude (1.600 metros em média).
Em 1895 o Quénia tornou-se um protectorado e em 1920 passou a ser uma Colónia da Coroa. A capital fora transferida em 1905 da insalubre Mombaça, na costa, para a muito mais confortável (para os europeus…) Nairobi, situada a 1.660 metros de altitude. Foram os tempos gloriosos dos pioneiros europeus que se arriscavam em projectos agrícolas tal qual foram descritos por Karen Blixen em Out of Africa, livro depois passado para o cinema…Mas a sociedade do Quénia colonial era bastante mais complexa do que a descrita no filme de Sidney Pollack…
Havia evidentemente a sociedade europeia, anglófona, proprietária de terras e com o controlo político exclusivo, que chegou a atingir mais de 100.000 pessoas. Depois havia, evidentemente, a sociedade africana negra, numericamente de uma maioria esmagadora – talvez mais de 97% da população. No filme, a ameaça da sua revolta é sublimada no aparecimento dos indomáveis caçadores masai. Mas havia também a comunidade de descendentes dos comerciantes árabes que, dificeis de identificar porque quase completamente assimilados, continuava a dominar informalmente a sociedade no litoral.
E, finalmente, havia uma outra remessa de imigrantes, estes indianos e que, também membros do Império Britânico, haviam substituído a comunidade anterior apropriando-se de quase todo o pequeno comércio no Quénia. Como acontecia com quase todas as colónias da África Oriental em relação às suas homólogas da costa atlântica (com Moçambique em relação a Angola, por exemplo), também o Quénia do período colonial tinha uma composição populacional muito mais cosmopolita do que era comum às colónias africanas.
A revolta anti-colonial no Quénia é precoce a assumir um carácter subversivo (1952), mas trata-se de uma subversão suave, quando em comparação com outras a que o continente assistiria (Argélia, Guiné-Bissau, Moçambique, Zimbabué…), que foi baptizada pelos britânicos de Revolta dos Mau-Mau. Terminada em 1956, o episódio faz hoje parte, com o da Malásia, da galeria de sucessos em contra-subversões que os britânicos tanto gostam de mostrar, ao invés dos fracassos que gostam de esconder, como os do Iémen e de Chipre*…
No entanto, para vencer a subversão foi preciso estabelecer um calendário de transferência do poder da minoria branca para a maioria negra, protagonizado por Jomo Kenyatta, pertencente ao grupo étnico mais numeroso do Quénia, o dos Kikuyu. Em 1963, o Quénia tornou-se independente e tornou-se numa República no ano seguinte, com Kenyatta como presidente. Durante o período da Guerra-Fria, onde as fidelidades de quase todos os países africanos oscilaram entre o Ocidente e o Leste, a do Quénia manteve-se firme, pró-ocidental.
Respeitador escrupuloso das encenações eleitorais, muito apreciadas no Ocidente, o Quénia foi pioneiro em mostrar, ainda na década de sessenta, o entendimento muito particular que as culturas africanas podem dar às cerimónias eleitorais, ao elegerem, por mais do que uma vez, o candidato que havia entretanto falecido, mas que pertencia ao clã e à tribo certa… Compreende-se facilmente porque é que as eleições quenianas não costumam ser acontecimentos inesperados…
Jomo Kenyatta foi presidente de 1964 até à sua morte em 1978, sucedeu-lhe o seu vice-presidente Daniel arap Moi, que foi sendo sucessivamente reeleito e ainda lá estaria se não tivesse sido impedido de se reapresentar por imperativo constitucional em 2002… Na única eleição verdadeiramente aberta que o Quénia terá tido desde a sua independência, Mwai Kibaki venceu a eleição presidencial, com 62% dos votos contra os 31% recebidos por Uhuru Kenyatta, filho de Jomo, o primeiro presidente.
Como curiosidades finais, refira-se que a língua nacional do Quénia é o suaíli**, um dos raros casos em que um país da África sub-sahariana não tem um idioma europeu por língua nacional. E que o segredo para a obtenção de tantas medalhas no atletismo reside no facto de que uma boa parte da sua população vive no planalto e a altitudes superiores e desenvolvem, desde a nascença, capacidades respiratórias invulgares que favorecem os atletas quenianos nas provas de resistência.
* O que comprova que, ao contrário do que por vezes se pretende fazer crer, não existe ainda nenhuma receita comprovada para vencer uma guerrilha subversiva.
** O inglês também é língua oficial.
Como é tradicional nos países da África sub-sahariana, a história da nação é recente, embora se possa fazer remontar a da região que hoje constitui o país a alguns séculos atrás. No caso do Quénia, os primeiros registos escritos existentes acerca da região são árabes, datam do Século VII e concentram-se sobre as povoações costeiras – destinadas a tornarem-se portos disputados no futuro – que os comerciantes muçulmanos visitavam e onde se começaram a registar algumas conversões à fé.
No entanto, as relações comerciais entre as costas orientais de África, a Arábia, o Egipto e a Índia devem ter-se iniciado em data muito anterior, possivelmente no Século I da era cristã. Mas os conhecimentos que existem sobre a evolução dos acontecimentos que ali foram tendo lugar até ao Século XIX estão muito distorcidos pelo destaque dado ao que aconteceu na sua província costeira – que apenas representa 1/7 da área total do Quénia moderno, albergando menos de 9% da sua população.
Assim, a chegada dos portugueses, nos princípios do Século XVI, que capturaram quase todos portos comerciais ao longo da costa oriental como Mombaça, Melinde, Zanzibar ou Quiloa, acabou por não ter reflexos significativos na situação política que regia entre as populações do interior, que mantiveram o mesmo padrão de comércio (ouro, marfim e escravos) já existente. A mesma lógica se aplica quando os omanitas – que também estiveram sobre suserania portuguesa – recuperaram as suas posições originais, nos finais do Século XVII.
Contudo, se a disputa pelo controlo das feitorias comerciais se travou entre estrangeiros, a língua franca na qual se passou a comerciar era distintamente local, o suaíli, de origem banto na sua estrutura e gramática, embora possuísse inúmeros vocábulos de origem árabe, persa, portuguesa, gujarati, tamil ou malaiala (as três últimas são línguas indianas). Escrita originalmente em caracteres árabes (Século XVI), foi já nos inícios do Século XX que se criou uma pronúncia de referência (a de Zanzibar), usando o alfabeto latino.
O conhecimento do interior por parte dos europeus só começou verdadeiramente na segunda metade do Século XIX. Os nomes de baptismo dos lagos Vitória e Alberto, então soberana (1837-1901) e príncipe-consorte do Reino Unido servem de registo quanto a presença britânica naquelas regiões tem menos de 200 anos. Mas as condições climáticas afiguraram-se promissoras para a colonização europeias e entregues a uma companhia britânica: apesar de situado sobre o Equador, boa parte do Quénia é um planalto de clima temperado, devido à altitude (1.600 metros em média).
Em 1895 o Quénia tornou-se um protectorado e em 1920 passou a ser uma Colónia da Coroa. A capital fora transferida em 1905 da insalubre Mombaça, na costa, para a muito mais confortável (para os europeus…) Nairobi, situada a 1.660 metros de altitude. Foram os tempos gloriosos dos pioneiros europeus que se arriscavam em projectos agrícolas tal qual foram descritos por Karen Blixen em Out of Africa, livro depois passado para o cinema…Mas a sociedade do Quénia colonial era bastante mais complexa do que a descrita no filme de Sidney Pollack…
Havia evidentemente a sociedade europeia, anglófona, proprietária de terras e com o controlo político exclusivo, que chegou a atingir mais de 100.000 pessoas. Depois havia, evidentemente, a sociedade africana negra, numericamente de uma maioria esmagadora – talvez mais de 97% da população. No filme, a ameaça da sua revolta é sublimada no aparecimento dos indomáveis caçadores masai. Mas havia também a comunidade de descendentes dos comerciantes árabes que, dificeis de identificar porque quase completamente assimilados, continuava a dominar informalmente a sociedade no litoral.
E, finalmente, havia uma outra remessa de imigrantes, estes indianos e que, também membros do Império Britânico, haviam substituído a comunidade anterior apropriando-se de quase todo o pequeno comércio no Quénia. Como acontecia com quase todas as colónias da África Oriental em relação às suas homólogas da costa atlântica (com Moçambique em relação a Angola, por exemplo), também o Quénia do período colonial tinha uma composição populacional muito mais cosmopolita do que era comum às colónias africanas.
A revolta anti-colonial no Quénia é precoce a assumir um carácter subversivo (1952), mas trata-se de uma subversão suave, quando em comparação com outras a que o continente assistiria (Argélia, Guiné-Bissau, Moçambique, Zimbabué…), que foi baptizada pelos britânicos de Revolta dos Mau-Mau. Terminada em 1956, o episódio faz hoje parte, com o da Malásia, da galeria de sucessos em contra-subversões que os britânicos tanto gostam de mostrar, ao invés dos fracassos que gostam de esconder, como os do Iémen e de Chipre*…
No entanto, para vencer a subversão foi preciso estabelecer um calendário de transferência do poder da minoria branca para a maioria negra, protagonizado por Jomo Kenyatta, pertencente ao grupo étnico mais numeroso do Quénia, o dos Kikuyu. Em 1963, o Quénia tornou-se independente e tornou-se numa República no ano seguinte, com Kenyatta como presidente. Durante o período da Guerra-Fria, onde as fidelidades de quase todos os países africanos oscilaram entre o Ocidente e o Leste, a do Quénia manteve-se firme, pró-ocidental.
Respeitador escrupuloso das encenações eleitorais, muito apreciadas no Ocidente, o Quénia foi pioneiro em mostrar, ainda na década de sessenta, o entendimento muito particular que as culturas africanas podem dar às cerimónias eleitorais, ao elegerem, por mais do que uma vez, o candidato que havia entretanto falecido, mas que pertencia ao clã e à tribo certa… Compreende-se facilmente porque é que as eleições quenianas não costumam ser acontecimentos inesperados…
Jomo Kenyatta foi presidente de 1964 até à sua morte em 1978, sucedeu-lhe o seu vice-presidente Daniel arap Moi, que foi sendo sucessivamente reeleito e ainda lá estaria se não tivesse sido impedido de se reapresentar por imperativo constitucional em 2002… Na única eleição verdadeiramente aberta que o Quénia terá tido desde a sua independência, Mwai Kibaki venceu a eleição presidencial, com 62% dos votos contra os 31% recebidos por Uhuru Kenyatta, filho de Jomo, o primeiro presidente.
Como curiosidades finais, refira-se que a língua nacional do Quénia é o suaíli**, um dos raros casos em que um país da África sub-sahariana não tem um idioma europeu por língua nacional. E que o segredo para a obtenção de tantas medalhas no atletismo reside no facto de que uma boa parte da sua população vive no planalto e a altitudes superiores e desenvolvem, desde a nascença, capacidades respiratórias invulgares que favorecem os atletas quenianos nas provas de resistência.
* O que comprova que, ao contrário do que por vezes se pretende fazer crer, não existe ainda nenhuma receita comprovada para vencer uma guerrilha subversiva.
** O inglês também é língua oficial.
Tive oportunidade de conhecer alguns quenianos e parecem ser talhados para as provas de atletismo que requeiram boa capacidade respiratória e um peso ligeiro.
ResponderEliminarNeste aspecto já são muito diferentes dos africanos ocidentais, bastante mais corpulentos.