Possivelmente, uma das razões principais para que esta seja uma guerra esquecida foi porque se travou num país esquecido… O Iémen localiza-se no canto inferior esquerdo (sudoeste) da Península Arábica. E, contrariamente ao que acontece com os outros países peninsulares, existem ali desde há milénios grandes regiões adequadas à agricultura e a maioria da população iemenita cedo se tornou sedentária. E a região era conhecida pela sua prosperidade (conhecida por Arábia Félix pelos romanos), com os seus portos localizados idealmente como escala do comércio marítimo entre a Índia e o Egipto. Sabe-se que os romanos estudaram a hipótese de tornar o Iémen num protectorado, mas desistiram
Pela sua localização, o Iémen foi das regiões que mais cedo – ainda em vida de Maomé – caíram sobre controlo muçulmano e que mais depressa se islamizaram. Uma das características do Iémen de então (e que voltou a existir na actualidade) são taxas elevadas de crescimento demográfico, o que levou muitos iemenitas a emigrar: uma significativa proporção da colonização árabe nas regiões meridionais da Península Ibérica nos séculos VIII e IX, por exemplo, é atribuível a clãs de origem iemenita. Mas não tardou a que os particularismos iemenitas ressurgissem, com o aparecimento de uma dinastia local (zaídita) que, quase naturalmente, abraçou o xiismo…
Como os suíços na Itália medieval, os escoceses das terras altas da Escócia no Reino Unido ou os cossacos na Rússia, os iemenitas com um excesso tradicional de população jovem, tornaram a carreira das armas ao serviço dos estados muçulmanos numa tradição cultural sua. E quando essas fontes de recrutamento desapareciam momentaneamente o efeito fazia-se sentir imediatamente no aumento das lutas internas entre os clãs locais. No século XIX, o Iémen acabou repartido entre duas esferas de influência: ao norte, 40% do território mas 80% da população caíram sobre a tutela otomana e ao sul, os britânicos, pretendendo sobretudo ficar com o porto de Aden, crucial para a ligação com a Índia, ficaram com o restante.
No fim da Primeira Guerra Mundial, a repartição do Império Otomano deu origem ao aparecimento de vários estados árabes, alguns deles inéditos, como o Reino da Arábia Saudita (1932), que ficou com o controlo dos lugares santos do Islão: Meca e Medina. Mas também o soberano iemenita (Yahya Muhammad) proclamara o Reino do Iémen (do Norte) em 1926. Hoje não parece, mas era uma solução estrategicamente equilibrada. Não fosse o aparecimento das jazidas de petróleo saudita (descobertas na década de 1930, mas só exploradas depois da Segunda Guerra Mundial) e o Iémen (hoje com 21 milhões de habitantes) seria naturalmente o grande rival regional da Arábia Saudita (27 milhões).
A particularidade da Guerra Civil Iemenita é que se torna muito complicado de a descrever em função das facções intervenientes, bem no estilo do confronto entre clãs locais, quase na modalidade de quase todos contra quase todos… A única questão clara a seu respeito é que se tratou de uma guerra subversiva (e contra-subversiva...) como então parecia estar na moda (Vietname, colónias portuguesas). De resto, a guerra foi travada em dois estados simultaneamente (Iémen do Norte e do Sul), no primeiro caso entre 1962 e 1970 e no segundo entre 1963 e 1967, embora os dois estados não se confrontassem directamente. E quem promovia a subversão num deles estava aliado a quem fazia a contra-subversão no outro…
Mais concretamente, a confusão começara quando o Egipto, liderado por Gamal Abdel Nasser, havia fomentado um golpe de estado no Iémen do Norte em Setembro de 1962, extinguindo a Monarquia e proclamando a República, muito à semelhança do que acontecera em 1953 no próprio Egipto. Só que alguns clãs norte-iemenitas pronunciaram-se a favor do rei (que escapara ao golpe de estado) e este grupo recebeu desde logo o apoio material dos sauditas que não haviam apreciado particularmente a jogada egípcia. Mas o regime republicano recém instaurado não estava à altura de resistir a uma contra-ofensiva monárquica com apoio saudita: o Egipto teve de enviar tropas suas.
O contingente egípcio (que se crê ter chegado a atingir os 50.000 efectivos em 1967*) consolidou de facto o regime republicano, mas não conseguiu eliminar a ameaça das guerrilhas dos clãs monárquicos. Contudo, os egípcios passaram a estar geograficamente muito mais próximos para poderem apoiar materialmente os nacionalistas do Iémen do Sul que procuravam eliminar a presença britânica, num conflito colonial dos tradicionais. O que fizeram. A primeira acção dos nacionalistas sul-iemenitas da FLN (Frente de Libertação Nacional) foi em Dezembro de 1963 e foi particularmente espectacular, como seriam muitas outras nessa guerra desse lado da fronteira.
O Alto-Comissário, a figura mais importante da administração civil do território, foi vítima de um atentado à granada, onde morreu uma pessoa e mais cinquenta ficaram feridas… De facto, procurando num globo, é difícil encontrar um local onde, quer geograficamente, quer sociologicamente (como no faroeste americano, é da tradição local que qualquer homem adulto possua uma arma individual...), as condições sejam mais propícias à guerrilha… Para a continuação da nossa história, interessa saber que, o apoio egípcio às acções da FLN no Iémen do Sul, fez com que os britânicos apoiassem reciprocamente os rebeldes monárquicos do Iémen do Norte.
Ao longo deste conflito, a posição das duas superpotências foi algo distanciada, embora desde o princípio fosse perceptível o interesse da URSS em ganhar eventualmente uma posição estratégica num porto amigável que controlava a entrada do Mar Vermelho (Aden). Mas, para o fazer, os interesses soviéticos não coincidiriam completamente com os dos seus aliados egípcios, já engajados no Iémen do Norte em apoio das forças republicanas… Parcialmente por causa disso, mas também aproveitando a propensão dos clãs para se combaterem entre si, a oposição armada à presença britânica no Iémen do Sul cindiu-se em 1966 entre a FLN e a FLOSY (Frente de Libertação do Iémen do Sul Ocupado).
Como aconteceu em Angola (com o MPLA, a FNLA e a UNITA), uma guerra civil interpôs-se no meio de uma guerra subversiva. O Reino Unido viu-se forçado a antecipar as datas do calendário de retirada que estabelecera, perdendo o controlo da situação. Em Junho de 1967 houve um motim entre as forças militares e policiais de recrutamento local e o dispositivo de segurança britânico ficou reduzido às forças europeias. A capital, Aden, caiu nas mãos da FLN que expulsara a FLOSY. Pior do que aconteceu com Portugal em Angola em Novembro de 1975, só mesmo a reputação de que a cerimónia do arrear final da bandeira britânica, a 30 de Novembro de 1967, teve lugar já na segurança de um navio…
Vale a pena recordar, porque é um facto que não é normalmente levado em conta que, em Junho de 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, o Egipto tinha uma fracção dos seus recursos militares engajados na Guerra Civil do Iémen do Norte. A derrota egípcia de 1967 foi um dos factores a pesar na predisposição do Egipto para a negociação. Outro foi a vitória da FLN e das correntes mais pró-marxistas dentro dela na Guerra Civil do Iémen do Sul, em detrimento das correntes mais pan-árabes laicas, próximas do que se convencionou chamar nasserismo. O Egipto distanciou-se da URSS. Do outro lado, desde que haviam programado a sua saída da região, os britânicos haviam cessado o seu apoio aos monárquicos.
Depois de uma última ofensiva em 1968, em que os monárquicos chegaram a cercar a capital do Iémen do Norte, Sanaa, a Arábia Saudita acabou por reconhecer o regime republicano iemenita enquanto os egípcios retiravam completamente o seu contingente em 1970, pondo fim ao conflito. Tanto a norte como no sul, as forças convencionais egípcias e britânicas nas suas operações de contra-subversão e mesmo estando em lados opostos levaram ambas uma tareia das antigas**… Curiosamente, para uma região tão carregada de hostilidade, as relações entre os dois estados iemenitas sempre foram comparativamente pacíficas*** até à sua reunificação em 1990.
* Sensivelmente a mesma dimensão do dispositivo militar que Portugal tinha em Angola por essa mesma altura.
** É um episódio muito discretamente mencionado na historiografia militar britânica. Compreende-se porquê.
*** Mais cordiais do que as das duas Alemanhas, por exemplo, para não mencionar o exemplo das duas Coreias ou dos dois Vietnames…
Pela sua localização, o Iémen foi das regiões que mais cedo – ainda em vida de Maomé – caíram sobre controlo muçulmano e que mais depressa se islamizaram. Uma das características do Iémen de então (e que voltou a existir na actualidade) são taxas elevadas de crescimento demográfico, o que levou muitos iemenitas a emigrar: uma significativa proporção da colonização árabe nas regiões meridionais da Península Ibérica nos séculos VIII e IX, por exemplo, é atribuível a clãs de origem iemenita. Mas não tardou a que os particularismos iemenitas ressurgissem, com o aparecimento de uma dinastia local (zaídita) que, quase naturalmente, abraçou o xiismo…
Como os suíços na Itália medieval, os escoceses das terras altas da Escócia no Reino Unido ou os cossacos na Rússia, os iemenitas com um excesso tradicional de população jovem, tornaram a carreira das armas ao serviço dos estados muçulmanos numa tradição cultural sua. E quando essas fontes de recrutamento desapareciam momentaneamente o efeito fazia-se sentir imediatamente no aumento das lutas internas entre os clãs locais. No século XIX, o Iémen acabou repartido entre duas esferas de influência: ao norte, 40% do território mas 80% da população caíram sobre a tutela otomana e ao sul, os britânicos, pretendendo sobretudo ficar com o porto de Aden, crucial para a ligação com a Índia, ficaram com o restante.
No fim da Primeira Guerra Mundial, a repartição do Império Otomano deu origem ao aparecimento de vários estados árabes, alguns deles inéditos, como o Reino da Arábia Saudita (1932), que ficou com o controlo dos lugares santos do Islão: Meca e Medina. Mas também o soberano iemenita (Yahya Muhammad) proclamara o Reino do Iémen (do Norte) em 1926. Hoje não parece, mas era uma solução estrategicamente equilibrada. Não fosse o aparecimento das jazidas de petróleo saudita (descobertas na década de 1930, mas só exploradas depois da Segunda Guerra Mundial) e o Iémen (hoje com 21 milhões de habitantes) seria naturalmente o grande rival regional da Arábia Saudita (27 milhões).
A particularidade da Guerra Civil Iemenita é que se torna muito complicado de a descrever em função das facções intervenientes, bem no estilo do confronto entre clãs locais, quase na modalidade de quase todos contra quase todos… A única questão clara a seu respeito é que se tratou de uma guerra subversiva (e contra-subversiva...) como então parecia estar na moda (Vietname, colónias portuguesas). De resto, a guerra foi travada em dois estados simultaneamente (Iémen do Norte e do Sul), no primeiro caso entre 1962 e 1970 e no segundo entre 1963 e 1967, embora os dois estados não se confrontassem directamente. E quem promovia a subversão num deles estava aliado a quem fazia a contra-subversão no outro…
Mais concretamente, a confusão começara quando o Egipto, liderado por Gamal Abdel Nasser, havia fomentado um golpe de estado no Iémen do Norte em Setembro de 1962, extinguindo a Monarquia e proclamando a República, muito à semelhança do que acontecera em 1953 no próprio Egipto. Só que alguns clãs norte-iemenitas pronunciaram-se a favor do rei (que escapara ao golpe de estado) e este grupo recebeu desde logo o apoio material dos sauditas que não haviam apreciado particularmente a jogada egípcia. Mas o regime republicano recém instaurado não estava à altura de resistir a uma contra-ofensiva monárquica com apoio saudita: o Egipto teve de enviar tropas suas.
O contingente egípcio (que se crê ter chegado a atingir os 50.000 efectivos em 1967*) consolidou de facto o regime republicano, mas não conseguiu eliminar a ameaça das guerrilhas dos clãs monárquicos. Contudo, os egípcios passaram a estar geograficamente muito mais próximos para poderem apoiar materialmente os nacionalistas do Iémen do Sul que procuravam eliminar a presença britânica, num conflito colonial dos tradicionais. O que fizeram. A primeira acção dos nacionalistas sul-iemenitas da FLN (Frente de Libertação Nacional) foi em Dezembro de 1963 e foi particularmente espectacular, como seriam muitas outras nessa guerra desse lado da fronteira.
O Alto-Comissário, a figura mais importante da administração civil do território, foi vítima de um atentado à granada, onde morreu uma pessoa e mais cinquenta ficaram feridas… De facto, procurando num globo, é difícil encontrar um local onde, quer geograficamente, quer sociologicamente (como no faroeste americano, é da tradição local que qualquer homem adulto possua uma arma individual...), as condições sejam mais propícias à guerrilha… Para a continuação da nossa história, interessa saber que, o apoio egípcio às acções da FLN no Iémen do Sul, fez com que os britânicos apoiassem reciprocamente os rebeldes monárquicos do Iémen do Norte.
Ao longo deste conflito, a posição das duas superpotências foi algo distanciada, embora desde o princípio fosse perceptível o interesse da URSS em ganhar eventualmente uma posição estratégica num porto amigável que controlava a entrada do Mar Vermelho (Aden). Mas, para o fazer, os interesses soviéticos não coincidiriam completamente com os dos seus aliados egípcios, já engajados no Iémen do Norte em apoio das forças republicanas… Parcialmente por causa disso, mas também aproveitando a propensão dos clãs para se combaterem entre si, a oposição armada à presença britânica no Iémen do Sul cindiu-se em 1966 entre a FLN e a FLOSY (Frente de Libertação do Iémen do Sul Ocupado).
Como aconteceu em Angola (com o MPLA, a FNLA e a UNITA), uma guerra civil interpôs-se no meio de uma guerra subversiva. O Reino Unido viu-se forçado a antecipar as datas do calendário de retirada que estabelecera, perdendo o controlo da situação. Em Junho de 1967 houve um motim entre as forças militares e policiais de recrutamento local e o dispositivo de segurança britânico ficou reduzido às forças europeias. A capital, Aden, caiu nas mãos da FLN que expulsara a FLOSY. Pior do que aconteceu com Portugal em Angola em Novembro de 1975, só mesmo a reputação de que a cerimónia do arrear final da bandeira britânica, a 30 de Novembro de 1967, teve lugar já na segurança de um navio…
Vale a pena recordar, porque é um facto que não é normalmente levado em conta que, em Junho de 1967, durante a Guerra dos Seis Dias, o Egipto tinha uma fracção dos seus recursos militares engajados na Guerra Civil do Iémen do Norte. A derrota egípcia de 1967 foi um dos factores a pesar na predisposição do Egipto para a negociação. Outro foi a vitória da FLN e das correntes mais pró-marxistas dentro dela na Guerra Civil do Iémen do Sul, em detrimento das correntes mais pan-árabes laicas, próximas do que se convencionou chamar nasserismo. O Egipto distanciou-se da URSS. Do outro lado, desde que haviam programado a sua saída da região, os britânicos haviam cessado o seu apoio aos monárquicos.
Depois de uma última ofensiva em 1968, em que os monárquicos chegaram a cercar a capital do Iémen do Norte, Sanaa, a Arábia Saudita acabou por reconhecer o regime republicano iemenita enquanto os egípcios retiravam completamente o seu contingente em 1970, pondo fim ao conflito. Tanto a norte como no sul, as forças convencionais egípcias e britânicas nas suas operações de contra-subversão e mesmo estando em lados opostos levaram ambas uma tareia das antigas**… Curiosamente, para uma região tão carregada de hostilidade, as relações entre os dois estados iemenitas sempre foram comparativamente pacíficas*** até à sua reunificação em 1990.
* Sensivelmente a mesma dimensão do dispositivo militar que Portugal tinha em Angola por essa mesma altura.
** É um episódio muito discretamente mencionado na historiografia militar britânica. Compreende-se porquê.
*** Mais cordiais do que as das duas Alemanhas, por exemplo, para não mencionar o exemplo das duas Coreias ou dos dois Vietnames…
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