

Mas a história das três regiões era completamente distinta: enquanto as duas primeiras já tinham tido contacto com os europeus (a começar pelos portugueses) desde o século XV, tendo-se desenvolvido um intenso comércio com eles desde aí (sobretudo de escravos…), o protectorado que estabelecera a supremacia britânica no Norte da Nigéria datava de 1901… O Norte era maioritariamente muçulmano mas no Sul predominavam os cristãos. Mas o historial dos estados dos Yoruba (como o do Benin***), que habitavam junto àquela que os portugueses designavam por Costa dos Escravos, era muito mais evoluído e distinto dos Ibo, que dominavam as zonas da Costa da Pimenta.
E há que ter em conta que esta descrição apenas pretende dar organização a uma realidade muito mais complexa: na verdade, a Nigéria tem mais de 250 grupos étnicos distintos e sensivelmente o dobro desse número em idiomas e dialectos e a indicação das suas regiões de origem não pode fazer esquecer como as etnias se acabam por misturar nas regiões mais férteis e nas grandes cidades, como acontece em quase todos os países africanos. A maior complexidade nigeriana advém apenas do facto de ser o mais populoso país do continente. E para a gerir, os britânicos tinham criado para o novo país uma Constituição cuidadosamente cheia de equilíbrios políticos regionais, para ajudar Sir Abubakar.
Sir Abubakar era um nortista. Por imperativos demográficos (a região continha cerca de metade da população nigeriana), o primeiro-ministro nigeriano teria de o ser. Mas o funcionamento das instituições obrigaria a que o partido predominante entre os Hausa se coligasse com outra organização de outra região. Assim se fez: durante os primeiros cinco anos o país foi governado por uma coligação entre o NPC (Congresso Popular da Nigéria) dos Hausa e o NCNC (Convenção Nacional dos Cidadãos Nigerianos) dos Ibo. A oposição era composta pelo AG (Grupo de Acção) dos Yoruba. Depois, toda essa estrutura não resistiu a uma mudança de alianças no governo federal e tudo explodiu...
O exército imiscuiu-se na política e a situação começou a degradar-se por causa de um golpe de estado dado por um grupo de oficiais, onde predominavam oficiais de origem Ibo, que derrubou o governo federal, assassinando o primeiro-ministro, Sir Abubakar, em Janeiro de 1966. Houve um contra golpe, seis meses depois, onde predominavam os oficiais nortistas, que foi acompanhado de manifestações populares e de perseguições contra os Ibo residentes fora da sua região. O exército acabou por se fracturar etnicamente, considerando os Ibo que podiam declarar a secessão da sua região da Nigéria, contando com a riqueza das jazidas petrolíferas que entretanto haviam sido descobertas no delta do rio Níger.

Só que já serão poucos os que conhecem o que podia vir a estar em causa com o sucesso da secessão do Biafra e quem apoiava, de forma aberta ou encapotada, cada um dos lados então em conflito. É que os apoios cortavam transversalmente o bloco Ocidental, escavacando a lógica da Guerra-Fria e isso era coisa difícil de explicar. Os apoios ao governo federal nigeriano eram assumidos, enquanto o apoio à secessão do Biafra era muito mais discreta. E quase tudo se podia explicar através da questão do petróleo: começando pelos britânicos e pelas suas companhias petrolíferas que, reforçados pelas norte-americanas e pelos norte-americanos, apoiavam o governo federal da Nigéria.

Do outro lado estavam, descaradamente, aqueles países que questionavam o status quo africano da época da pós descolonização, como eram os casos da África do Sul e de Portugal (apoio logístico a partir de São Tomé) e, de forma encapotada, os interesses das petrolíferas francesas e, de forma mais genérica, um bloco que se pode identificar como o eixo franco-alemão que prosseguia em África uma estratégia frequentemente distinta da das duas potências anglo-saxónicas. Essa distinção é visível no apoio material que aqueles dois países davam ao equipamento do exército português em África: a G-3, os helicópteros Allouette III, os Fiat G-91, as Berliets e os Unimogs…
O peso dos números e dos apoios, no entanto, estava do lado federal e o auxílio que chegava ao lado biafrense tinha de ser dissimulado, como os mercenários que instruíam e enquadravam as forças rebeldes ou os voos clandestinos que as reabasteciam em artigos vitais. Pelo contrário, os novos aparelhos fornecidos pelos soviéticos à Força Aérea Nigeriana eram pilotados por egípcios destacados por Nasser para esse efeito. Mesmo assim, entre os federais não havia capacidade de pôr fim directamente à rebelião e houve que esperar que os efeitos do bloqueio se fizessem sentir. Por outro lado, sendo certa a vitória federal no desfecho da Guerra, o seu prolongamento perdia todo o sentido.

Só que o problema das consequências do hipotético êxito da secessão do Biafra seria a abertura de uma verdadeira Caixa de Pandora à escala continental: além da implosão imediata da Nigéria, o efeito multiplicado de múltiplas secessões que poderiam acontecer em quase todos os países africanos é arrepiante de imaginar… A Nigéria é hoje uma federação de 36 estados, suficientemente pequenos para que a secessão de um deles não seja levada a sério. A presença dos militares na vida política nigeriana faz parecê-la uma espécie de Turquia africana: em caricatura, ou eles estão no poder, ou acabaram de estar, ou preparam-se para dar um golpe de estado para o recuperar...
* Selecções do Reader´s Digest: revista generalista norte-americana, publicada em vários idiomas, e que se alinha normalmente com as posições republicanas.
** Kwame Nkrumah (1909-72): primeiro dirigente político do primeiro estado africano a tornar-se independente do domínio britânico (Ghana em 1957), com um passado de luta política contra a tutela colonial.
*** O Benin histórico data do século XV, fica na Nigéria actual e não tem nada a ver com o país que tem hoje com a mesma designação, que fica na região que era conhecida pelo nome de Daomé (colónia francesa).
No livro Dembos- A Floresta do Medo, (Angola - 1969 a 1971),Editado pela Terramar/2007, o autor, no 1º capítulo cujo título é «Jesus Cristo Airways», dá a conhecer uma das intervenções portuguesas na guerra do Biafra. A partir de São Tomé, como protagonista,o autor descreve uma operação efectuada em Setembro de 1969,da qual resultou um dos contributos do nosso país: armamento, munições e alimentos.
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