31 agosto 2008

A PISTOLA-METRALHADORA THOMPSON, "ESTRELA" DE CINEMA

Qualquer bom filme de gangsters da época da proibição e da depressão não pode dispensar uma daquelas cenas em que um automóvel e os seus ocupantes são devida e saturadamente metralhados com os tiros dos seus rivais armados de uma ou várias das pistolas-metralhadoras Thompson.
Contudo a história da arma é um pouco mais complexa, e começa ainda nos finais da Primeira Guerra Mundial, quando o exército norte-americano andava à procura de uma arma com uma grande cadência de fogo em detrimento do alcance ou da precisão para a infantaria a usar na luta pelas trincheiras.
Quando a Guerra acabou, a arma ainda se encontrava na fase de protótipo, mas o exército desinteressou-se naturalmente dela. Contudo, os financiadores do projecto pensaram em reduzir o prejuízo continuando a avançar com ele mas agora concebido como arma para venda a particulares e a forças policiais (abaixo).
Mas o preço final da arma era muito elevado e os gangsters dos anos 20 não seriam assim tantos para trazer prosperidade económica” ao projecto, mas há que reconhecer que se tratou de um daqueles momentos mágicos em que se encontraram uma arma e uma clientela que estavam precisamente à procura uma da outra.
A Thompson não exigia grande destreza para ser operada mas, especialmente quando equipada com o tambor de munições (abaixo) que podia levar 50 ou 100 cartuchos, tinha uma cadência e um poder de fogo impressionante quee podia transformar num figurão temível aquele que até ali apenas fora o mais trivial rufia de bairro…
Ao mesmo tempo que a arma adquiria essa notoriedade, quer pelo preço, quer por se destinar a uma utilização demasiado específica em termos militares, a arma continuava a ser um relativo fiasco junto dos exércitos tradicionais. O próprio exército norte-americano tardou até 1938 para a pôr ao seu serviço.
A Segunda Guerra Mundial começou no ano seguinte e, obviamente, deixou de ser tempo para se ser esquisito quanto à selecção das armas. O exército britânico rapidamente também a adoptou como arma regulamentar, e uma fotografia de Churchill com uma delas (abaixo) correu mundo, melhorando-lhe a reputação - a da arma, claro...
Mas foi só a partir de 1942, quando uma nova versão designada por Thompson M1 (abaixo) passou a ser fabricada (simplificando o processo de fabrico e reduzindo os custos de produção) que a arma veio a ganhar a divulgação que a tornou por sua vez indispensável de figurar nos filmes de guerra da Segunda Guerra Mundial…
A diferença das armas originais para estas nota-se pela modificação do formato da pega dianteira, pelo abandono dos carregadores em tambor por outros convencionais e pela modificação do mecanismo de disparo a arma, que se identifica exteriormente pela mudança da pega da culatra que passa da parte de cima da arma para o seu lado direito.
Começando a ser produzida em muito maior quantidade, a arma passou a ser atribuída normalmente no exército norte-americano tanto aos chefes de secção (sargentos) como aos comandantes de pelotão (oficiais subalternos) das unidades de infantaria, distinguindo-os do armamento dos seus subordinados (acima, Tom Hanks salvando o soldado Ryan).

30 agosto 2008

ZOROASTRISMO – 2

Com o predomínio muçulmano sobre a Pérsia começou um processo de conversão gradual dos seus habitantes ao Islão. Sabe-se que os muçulmanos não eram impositivos aos que professavam as religiões do Livro (i.e. os judeus e os cristãos), mas as opiniões dos historiadores modernos dividem-se quanto à abordagem que o novo regime terá adoptado quanto aos seguidores do Zoroastrismo. Não sendo tecnicamente uma religião do Livro era, apesar de tudo, a predominante na Pérsia, e a sabedoria política aconselharia que se tivesse tido uma abordagem pragmática com os seus fiéis.

Contudo, na falta de provas escritas que o possam atestar, crê-se que foi a partir dessa altura (Século VII) que se começou a instalar uma comunidade de seguidores do Zoroastrismo nas regiões costeiras ocidentais da Índia. Como acontecia simultaneamente com os judeus na Europa, ao longo dos tempos a comunidade acentuou os seus traços de identidade dedicando-se predominantemente ao comércio e casando entre si. Entre os primeiros relatos de europeus referentes a essa comunidade, conta-se o do médico e naturalista português Garcia de Orta (abaixo, c. 1500-1568) no Século XVI.
Segundo esse relato, pelos hábitos e actividade, os próprios portugueses costumavam confundi-los com os judeus, mas o próprio Garcia de Orta (que era de origem judaica) esclareceu essa dúvida tratando-os por uma corrupção aproximada do termo com que deviam ser conhecidos coloquialmente, (es)parsis onde, na raiz da palavra, se identificava claramente uma corrupção do seu país de origem, a Pérsia. Por causa de séculos de casamentos consanguíneos, os parsis identificavam-se por serem nitidamente de uma tez mais clara do que a da população indiana em geral.

Para o observador mais desatento e menos experimentado, muitos parsis podem passar por pertencer ao tipo mediterrânico, o que justifica a confusão feita pelos portugueses em os terem tomado inicialmente por judeus e essa confusão ainda seria objecto de muitas outras situações equívocas no futuro... É que, na sociedade indiana, sempre tendeu a estratificar-se em função da cor da pele do indivíduo. Com a Índia Britânica, os britânicos apenas se limitaram a levar essa hierarquização ao seu corolário extremo. E, como costuma acontecer nessas situações, são sempre os mais medíocres a aplicar essas regras com mais rigor…
Devem ter sido inúmeras as vezes em que um britânico menos precavido numa dessas formalíssimas recepções oficiais de que o Império das Índias guarda o segredo, deve ter iniciado uma conversa de circunstância com um outro convidado, que supunha ser europeu, embora de origem meridional*, para depois vir a descobrir, horrorizado, que afinal estivera a falar com um nativo. Muitos parsis haviam sido extremamente rápidos a adaptarem-se aos costumes ocidentais, nomeadamente no vestuário e, além disso, a comunidade registava uma taxa elevada de conversões ao cristianismo.

Em contraste, algumas práticas religiosas ancestrais que eles haviam trazido da Pérsia tornavam-nos exóticos, mesmo numa terra onde se estava muito habituado aos exotismos. Ao lado de comunidades que incineravam os seus mortos (a maioria hindu), os enterravam em cerimónias simples (os muçulmanos) ou mais elaboradas (os cristãos), os parsis, por sua vez, deixavam os seus em exposição em edifícios isolados designados por Torres do Silêncio (abaixo) onde os elementos e as aves necrófagas se encarregavam da decomposição dos corpos.
Mas, no computo global, esta comunidade indiana dos que professam o Zoroastrismo, que havia muito havia ultrapassado numericamente os seus congéneres do país de origem da religião (Irão) numa proporção estimada de 4 ou 5 para 1, adaptou-se extremamente bem à integração que a Índia efectuou para a era do comércio global no período em que esteve sob a tutela britânica. Fundado no Século XIX, aquele que é hoje um dos maiores, senão mesmo o maior conglomerado de empresas da Índia, por exemplo, o Grupo Tata, pertence a uma família parsi do mesmo nome.

E, apesar de apenas representarem 0,006% da população indiana total, a proeminência da comunidade faz-se sentir em muitos outros campos de actividade, com uma notoriedade reconhecida não apenas na Índia mas até em termos mundiais. São os casos do Marechal-de-Campo Indiano Sam Manekshaw (1914-2008), o vencedor de Guerra Indo-Paquistanesa de 1971, o Maestro Zubin Mehta (1936- ) ou ainda, embora não nascido na Índia mas oriundo de uma família parsi vivendo no estrangeiro, o cantor Farrokh Bulsara (1946-1991), muito mais conhecido pelo seu nome artístico de Freddie Mercury…
* Não esquecer que os portugueses também tinham colónias na Índia.

Nota: Embora não identificada no texto, refira-se que a terceira fotografia deste poste é de Rattanbai Petit (1900-1929), uma parsi que se veio a casar em 1918 com Muhammad Ali Jinnah (1876-1948), de quem teve a única filha daquele que ficou conhecido como o fundador do Paquistão moderno, de seu nome Dina (1919- ). Dina veio a casar-se com um parsi (Neville Wadia) contra a vontade paterna e, em conflito com ele, permaneceu em Bombaim depois da partição de 1947 que separou a Índia e o Paquistão. Paradoxalmente, todos os descendentes directos de Jinnah são hoje parsis e têm a nacionalidade indiana…

29 agosto 2008

ZOROASTRISMO – 1

Se, pelos exemplos de Confúcio, Lao-Tse, Buda ou Mahavira, se comprova quanto costuma ser difícil precisar as datas em que terão vivido os profetas fundadores das grandes religiões, então no caso de Zaratustra, aquele que foi o fundador do Zoroastrismo na região que é hoje o Irão, essa dificuldade ainda consegue ser superior. Datas anteriormente dadas como certas (os Séculos VII ou VI a.C.) são hoje bastante contestadas, com opiniões que defendem a sua antecipação em cerca de duzentos anos e outras que, pelo contrário, as atrasam cerca de quinhentos!

Como acontece nas outras religiões, aqui também se presta a que haja confusão entre a vida e os ensinamentos do seu fundador com a actividade dos seus discípulos imediatos, bem como as tarefas da transmissão e fixação da doutrina da religião até ela vir a ficar consolidada por escrito. Existe Deus, Ahura-Mazda, único, infinitamente grande e poderoso. Ele está rodeado de uma corte de servidores, os génios do bem em luta contra as forças do mal. Disputa existente desde a criação do Mundo, o Homem é o participante e o objecto deste interminável combate:
Ora na origem estavam os dois espíritos,
Que proclamaram como seus princípios gémeos e autónomos,
Em pensamento, palavra, acção, um o melhor, o outro o mal,
E entre os dois, os inteligentes escolhem o bem,
Não os tolos.

Trata-se de uma religião onde não se exigem sacrifícios nem oferendas. O símbolo religioso mais importante é o fogo. O importante é o amor à verdade e a promoção da justiça. A avaliação final do indivíduo por Ahura-Mazda far-se-á pelos actos sociais e não pelas manifestações piedosas. Trata-se de uma construção religiosa exigente pela necessidade de abstracção para a compreender e abraçar. Objectivamente é uma religião de elites, ter-se-ia extinto nos dois mil anos transcorridos e ser-nos-ia hoje, muito provavelmente desconhecida, não se tivesse ela transformado na religião oficial do Império Persa.

Para adquirir popularidade as cerimónias ganharam aqueles adereços de coreografia indispensáveis para o desempenho da função política que dela se esperava. A classe sacerdotal, que se vestia sempre de branco, passou a desempenhar cerimónias religiosas cada vez mais complexas e, criou-se uma teogonia mais complexa mas mais explícita, a Ahura-Mazda juntou-se Mitra, o Deus da Luz que dirigia os génios do bem, no eterno confronto com Arimânio, que era o dirigente dos génios maldosos. A compilação dos hinos transmitidos oralmente também se fez por essa altura (Século III d.C.).

Pela forma transparente como colocava o dilema do bem e do mal, pela importância que atribuía às exigências do dever e da pureza, como religião oficial e como instrumento político, o Zoroastrismo do Império Persa situava-se muito acima da religião oficial pagã do vizinho Império Romano daquela mesma época. Há nele conceitos morais que praticamente não se diferenciam dos do Cristianismo ou do Judaísmo. No entanto, e também como acontecia com o Império Romano, toda aquela extensa época que vai do Século I d.C. ao Século VII parece ter sido uma de incessantes experiências quanto a novas religiões.

Nas pegadas de Zaratustra, Mani (c. 210 – 276 d.C.) foi um outro profeta iraniano que, como Jesus Cristo, terá tentado reformar a religião predominante. Como Jesus Cristo, também Mani acabou executado por influência do clero dominante (zoroastriano), muito embora a religião que pregava, que também tomou o seu nome (Maniqueísmo), continuasse a prosperar, inclusive em territórios do Império Romano. É um daqueles factos a que a ninguém interessa dar grande destaque que Santo Agostinho (354-430), considerado um dos grandes Doutores da Igreja, um dos maiores vultos do Cristianismo, foi um maniqueísta até aos 33 anos.

Nos finais do Século VI, em cima dos ensinamentos do Zoroastrismo e do Maniqueísmo, ainda veio a haver um outro movimento religioso e político de relevo na Pérsia, chamado Masdaquismo, cujos princípios pode fazer lembrar estranhamente os dos hippies dos anos 60: fim da propriedade privada, negação da importância das formalidades religiosas incluindo o casamento, substituído pelo amor livre, a procura de viver uma vida com moral mas ascética, sem comer carne, ser simpático e bondoso com o próximo e viver em paz com os outros…

Todas estas experiências e dissidências religiosas que se verificaram tanto a Ocidente como a Oriente terminaram no Século VII com o aparecimento do último Profeta, Muhammad (570-632) e do gigantesco movimento religioso que ele veio a encabeçar. As dissidências e tentativas de reformas religiosas, que tinham parecido ser tão importantes até então, tornaram-se em notas de rodapé da História. A Cristandade passou a ter de pensar em si como um bloco contra o Islão, e as elites do Império Persa conquistado que não quiseram abjurar da sua fé tiveram de emigrar para a Índia.

(Continua)

28 agosto 2008

EUROPAS...

Crianças alemãs: futuros inventores da Europa!

Enquanto homens corajosos combatem nos campos de batalha pela vitória que coroará uma Europa unida e feliz, a frente doméstica da Alemanha já hoje está a trabalhar em planos para o benefício dos povos libertados. A juventude alemã está-se a preparar para as grandes tarefas da paz e da reconstrução. Concebem e constroem modelos, empenhados num ensino orientado e criativo. Seja na aula de trabalhos manuais na escola, aos serões em casa ou enquanto participam nas organizações de juventude, a UHU está em todo o lado. Uma cola especial desenvolvida pela empresa alemã Kunststoff-Chemie, é procurada como um produto indispensável.
Nas estradas da Europa, os camiões Ford alemães dão testemunho do trabalho da indústria germânica. O ágil, confiável e fácil de manter camião da Ford será uma ajuda bem vinda para resolver as enormes tarefas que esperam o nosso continente depois da guerra.

Acima podemos ver dois anúncios de imprensa alemães típicos do período da Segunda Guerra Mundial (recolhidos aqui) com a devida mensagem publicitária. Para além da surpreendente familiaridade com os produtos que são anunciados (trata-se da conhecida cola UHU e dos camiões Ford, que continuaram a ser produzidos apesar da Alemanha e dos Estados Unidos estarem em guerra), atente-se à estranha modernidade da linguagem, com o recurso constante à ideia de Europa e da (re)construção europeia…

27 agosto 2008

ORADOUR-SUR-GLANE

Oradour-sur-Glane (há três povoações na região do Limousin que têm o mesmo nome de Oradour, distinguindo-se pelo curso de água que lhes passa próximo) é uma aldeia francesa situada a cerca de 25 km a Noroeste da cidade de Limoges. O destino dos seus habitantes durante a Segunda Guerra Mundial é um episódio cada vez mais esquecido, mas que permanece, ainda hoje, como um testemunho eloquente das consequências não só dessa Guerra, como de todas as guerras. Vale a pena contar aqui a sua História...

No seguimento do desembarque aliado na Normandia (6 de Junho de 1944) e do apelo dos Aliados à Resistência francesa para que esta dificultasse a progressão das unidades alemãs, um desses grupos clandestinos de guerrilheiros (conhecidos quando operavam em zonas rurais como maquis), organizou um golpe de mão em 9 de Junho em que se apoderou do Sturmbannführer SS (Major) Kämpfe e correu a notícia – que chegou naturalmente aos alemães – que os captores o pretendiam executar numa cerimónia pública.
A notícia, incluindo o local da suposta execução (Oradour-sur-Vayres, que fica a 28 km a Sul-Sueste de Oradour-sur-Glane) era falsa porque, como se veio depois a descobrir, Kämpfe fora executado pelos resistentes imediatamente depois da captura. Contudo, o oficial que ficou encarregue de investigar o caso, o Sturmbannführer SS Adolf Diekmann, pertencente à mesma unidade de elite de Kämpfe (a 2ª Divisão Blindada SS Das Reich - acima), acabou por confundir as duas localidades e conduziu o seu batalhão até Oradour-sur-Glane.

Estava-se a 10 de Junho de 1944, era um Sábado, fazia Sol, servia-se o almoço nos dois hoteis do centro da aldeia, o Hotel Abril e o Hotel Milord. Alguns citadinos, vindos de Limoges, andavam às compras daquelas provisões que tanto escasseavam naqueles tempos de racionamento. Mas, deixo o resto da descrição do que se passou a seguir para o trecho de introdução dos documentários da série O Mundo em Guerra (com a locução de Laurence Olivier):
Vindos desta estrada, num dia soalheiro de 1944… os soldados chegaram. Agora, ninguém cá vive. Ficaram apenas por umas horas. Quando partiram, a comunidade que aqui vivera por mil anos… morrera. Isto é Oradour-sur-Glane, em França. No dia em que os soldados chegaram, os habitantes foram reunidos. Os homens foram levados para garagens e celeiros, as mulheres e crianças foram levadas por esta estrada… e conduzidas… para esta igreja. Aqui ouviram os tiros enquanto os seus homens eram mortos. Então… também elas foram mortas. Algumas semanas depois, muitos dos que haviam matado tinha sido mortos por sua vez em combate. Nunca se reconstruiu Oradour. As suas ruínas são um memorial. O seu martírio representa os milhares e milhares de outros martírios na Polónia,… Rússia,… Birmânia,… China,… num Mundo em Guerra...*

O massacre fez 642 vítimas, com idades compreendidas entre os dezoito dias e os oitenta e cinco anos. Sobreviventes houve sete: uma mulher, cinco homens e uma criança. Valha a verdade que o episódio foi severamente condenado entre os alemães: o superior hierárquico de Diekmann, o Standartenführer (Coronel) Stadler mandou abrir contra ele um processo judicial. Mas a morte de Diekmann 19 dias depois do massacre, a derrota das tropas alemãs na Normandia e o veto de Hitler conduziram os resultados desse processo a nada. Só oito anos e meio depois do massacre (em Janeiro de 1953) é que o caso veio a ser julgado em tribunal, em Bordéus. Dos cerca de 150 a 200 participantes apenas 21 estavam no banco dos réus (abaixo). Além da ausência daqueles que haviam entretanto morrido (especialmente durante a Guerra), tanto a Alemanha Federal como a Alemanha Democrática haviam-se recusado a extraditar os seus nacionais envolvidos nos acontecimentos. E de uma forma que se revelava completamente paradoxal, dos 21 réus, havia 14 que eram franceses!

Tratava-se de franceses originários da Alsácia, a região que havido sido francesa desde os tempos de Luís XIV até 1871, que se tornara alemã entre 1871 e 1918, voltara a ser francesa de 1918 a 1940 e que novamente fora anexada pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Os seus naturais (que habitualmente até falam um dialecto germânico) tinham-se tornado dessa forma cidadãos do Reich e foi assim que muitos se viram incorporados nas unidades militares alemãs – os chamados malgré nous**. O julgamento assumiu assim um carácter político de confronto entre duas regiões de França, com o Conselho de Guerra a pronunciar em Março de 1953 duas condenações à morte (uma de um alsaciano) e ainda doze penas de trabalhos forçados, seguidas de um enorme clamor de protesto na Alsácia, seguidas de discretos despachos administrativos comutando as penas, seguidos de outro enorme clamor de protesto no Limousin... Até aos últimos actos, o massacre de Oradour-sur-Glane nunca se libertou das suas contradições.
Ao contrário de Auschwitz, com cuja escala nem se compara, Oradour-sur-Glane é um memorial que pode transcender a evocação da Segunda Guerra Mundial. É que massacres como aquele podem ter tido lugar em muitos outros locais – quem se recordará hoje do que aconteceu em Kragujevac (Sérvia), Marzabotto (Itália) ou Kortelisy (Ucrânia)? – e em quase todas as Guerras: não poderão os próprios soldados franceses ter procedido posteriormente de uma forma idêntica em alguns locais da Indochina ou da Argélia? Em Oradour-sur-Glane, conhecendo-se a sua História, trata-se da guerra em todo o seu absurdo. Começando por questionar se aquela operação de rapto de um mero oficial superior, quando foi desencadeada pelos maquis, valeria militarmente o risco das previsíveis retaliações alemãs?... Continuando pela troca dos nomes das povoações feita por Diekmann que acabou por massacrar a aldeia errada… E terminando tudo com um processo de apuramento de responsabilidades que teve que ser suavizado por razões superiores de Estado…

* Down this road, on a summer day in 1944. . . The soldiers came. Nobody lives here now. They stayed only a few hours. When they had gone, the community which had lived for a thousand years. . . was dead. This is Oradour-sur-Glane, in France. The day the soldiers came, the people were gathered together. The men were taken to garages and barns, the women and children were led down this road . . . and they were driven. . . into this church. Here, they heard the firing as their men were shot. Then. . . they were killed too. A few weeks later, many of those who had done the killing were themselves dead, in battle. They never rebuilt Oradour. Its ruins are a memorial. Its martyrdom stands for thousands upon thousands of other martyrdoms in Poland, in Russia, in Burma, in China, in a World at War... ** A tradução da expressão, não literal, será apesar da nossa vontade. Note-se contudo que no total dos 642 mortos em Oradour-sur-Glane, se contam 9 pertencentes a 3 famílias alsacianas que ali se tinham refugiado por causa da guerra.

26 agosto 2008

OS DESLUMBRADOS

Embora isto possa parecer um anacronismo para os mais novos, nos anos 60 e 70 os restaurantes chineses em Portugal eram raros e normalmente tidos como locais sofisticados, onde se praticavam preços que se destinavam a uma clientela correspondente a essa pretensa sofisticação. Em contraste, já nessa época na maioria dos outros países europeus, talvez por influência norte-americana, a comida chinesa era geralmente considerada como um tipo de comida de preço acessível, concorrente com as outras alternativas de fast food (hambúrgueres, frangos, pizzas, etc.).
O carácter paroquial e ensimesmado da sociedade portuguesa da época seria de tal ordem que nem sequer parecia beneficiar do facto de Portugal ser um dos dois únicos países europeus ainda com possessões na China*, causa para que o consumo de comida chinesa pudesse ser considerado entre nós como uma coisa mais banal. Os tempos passam, a comida chinesa, que outrora se fazia cobrar a sério, já é hoje uma trivialidade de fast food como no resto da Europa, mas um enorme letreiro numa caixa de supermercado fez-me lembrar como o mesmo tipo de deslumbramento saloio, pode continuar na moda do dia.

Como outrora era requintado ir comer chinês, parece que agora é requintado ser-se verde. E, claro, que para se ser verde é preciso pagar mais para se o ser… Já nem vale a pena falar do absurdo do papel reciclado (e de pior qualidade) que afinal é mais caro do que o papel original… Quem o usa não tem qualquer vantagem objectiva em o usar, a não ser a de demonstrar socialmente quanto se é verde. Na mesma onda, agora também há uma caixa no supermercado onde, ao invés das outras, onde os sacos são normais e grátis, se compram sacos oxodegradáveis a 2 cêntimos a unidade para embrulhar as compras…
Confesso que me irritam um pouco estas instituições que parecem mostrar-se sempre tão preocupadas com o ambiente, mas que só encontram soluções onde a manifestação dessas preocupações corre sempre por conta do cliente… Também descobri que os ditos sacos oxodegradáveis também podem ser controversos quanto ao processo de degradação… E, sobretudo, não consegui deixar de associar a pose de superioridade com que alguns saíam da tal caixa com os tais sacos, à pose de entendidos com que outros, há muitos anos, abriam os menus e escolhiam logo o chop-suey...

Pela pose, pelo dispêndio suplementar de dinheiro (dificilmente justificável) com que se comprou o direito a ter aquela pose, será possivelmente para recordar no futuro os primeiros com o gozo com que agora nos recordamos dos últimos…

* Tratava-se de Macau e o outro país europeu com uma possessão na China era o Reino Unido (Hong Kong).

25 agosto 2008

A RICA TEVE UM MENINO, A POBRE PARIU UM MOÇO

De uma forma mais discreta, o assunto das maternidades, que tanto brado tinha dado há uns tempos atrás por causa do encerramento de algumas delas em variadas regiões do interior, parece ter voltado agora à actualidade. Só que, desta vez, o tema recentrou-se na imposição de que as unidades privadas só possam operar satisfazendo um tipo de requisitos semelhante aqueles que haviam levado à concentração das unidades públicas. Algumas ter-se-ão que se fundir e associar. O que me parece tão justo e tão certo que o assunto se assume como incontroverso.

O Editorial do Diário de Notícias de hoje não compartilha essa minha tranquila leitura. Quem o escreve chega a aventar a hipótese que por detrás do estabelecimento destes requisitos que equiparam o grau de exigência técnica das maternidades privadas às públicas possa estar uma perseguição aos serviços privados, sector que não é da predilecção da ministra. Pelos vistos, o aumento da procura de serviços privados de saúde vai inevitavelmente trazer mais partos para esse sector, mas há quem ache que as condições de exploração não deviam ser equivalentes…

Por detrás deste disparate hipócrita, parece-me que existe uma outra realidade que anda escamoteada daqueles dois artigos do DN: é que o negócio das maternidades, tal qual existiu até agora, deverá ser um dos mais interessantes do sector privado da saúde. Para quem queira ter o menino numa maternidade privada, costumam-se gabar as qualidades da hotelaria e da restauração, mas esquecem-se de avisar que, em caso de uma urgência pediátrica séria, o recém-nascido é logo transferido para um dos Hospitais públicos, para junto dos moços paridos pelas pobres…

Claro que, mesmo sabendo isso, creio que haverá sempre clientes para as maternidades privadas. Lembrem-se das pessoa que preferem viajar em avião em classe executiva. Afinal, embora pagando mais, também ali os benefícios apenas se resumem a questões de conforto e restauração; o avião cumpre o mesmo horário e, em caso de emergência, o destino dos passageiros costuma ser o mesmo, independentemente da classe em que se viaja… No entanto, suponho fosse aborrecido, caso existissem pára-quedas, informar o passageiro de executiva que tinha que comprar um bilhete de turística…

JORNALISMO E BLOGUES©

Como se torna cada vez mais recorrente, temos hoje um artigo no Diário de Notícias que parece ter sido rigorosamente decalcado daquela ideia que já aqui tive oportunidade de me referir num poste anterior: a de somar as medalhas recebidas por todos os países da União Europeia. As ideias que o autor do artigo quis passar eram previsíveis: que a União Europeia esteve muito bem e, sobretudo que, quando em comparação com os outros parceiros europeus (o desporto retrata quase exactamente alguns outros índices económicos e sociais), Portugal é um país na cauda da Europa…
Foi pena que o jornalista, autor do artigo, pareça não ter descoberto aquele pormenor técnico para o qual chamei a atenção no meu poste sobre a limitação do número de concorrentes por país que afecta drasticamente as comparações que se queiram extrair entre as prestações de um país isolados e de um conjunto de países... A ideia que quero passar também é previsível: a correr assim atrás de assuntos que já foram abordados na blogosfera mas sem qualquer rigor adicional no seu tratamento, estamos perante uma qualidade de jornalismo equivalente à classificação que o autor deu ao nosso país…

24 agosto 2008

O ASPECTO CARLA BRUNI DA POLÍTICA ACTUAL

Vale a pena recordar os comentários, como sempre, impiedosos, produzidos por Medina Carreira numa entrevista recente na SIC Notícias. Neles, referindo-se à descida de 1% da taxa do IVA e a propósito do gesto do ministro da economia, Manuel Pinho, que na altura foi, e arrastou consigo a comunicação social, a um supermercado, fingindo que fazia uma verificação no terreno da taxa praticada naquela grande superfície, Medina Carreira manifestou mais do que uma profunda discordância, sentia-se mesmo um indisfarçável desprezo pelo estilo do titular da pasta da economia. Será fruto, sem dúvida, dos quase 30 anos de evolução que separam o desempenho das respectivas funções ministeriais*.
Parece-me que Medina Carreira ainda conceberá o objectivo principal de uma sua equipa como o da procura das melhores soluções para os problemas económicos e financeiros com que o país se esteja a defrontar enquanto que para Manuel Pinho a importância da descoberta de quaisquer soluções se situará num pé de igualdade (senão secundário) com a procura da forma como elas poderão vir a ser mais eficazmente transmitidas. É verdade que Medina Carreira mostra não ter qualquer cuidado em embelezar o que diz, os seus comentários televisivos são normalmente muito deprimentes, mas também é verdade que o que Manuel Pinho costuma ter para nos dizer - como no caso do IVA -normalmente não tem importância nenhuma…

De resto, quando Manuel Pinho dá entrevistas onde profere declarações que eu creio se podem levar a sério, como Nenhum político sério pode garantir que o desemprego vai baixar, elas acabam por se revelar uma desautorização implicita de quase tudo o que o próprio ou o seu chefe de governo disseram ou viriam a dizer… Mas, mais ridículo que tudo isso, é agora o seu aparecimento recorrente nas páginas dos jornais de férias. Hoje, no Diário de Notícias fica-se a saber como Manuel Pinho nadou na piscina ao lado de Michael Phelps (com direito a fotografia de primeira página e tudo...), enquanto no Público me contam que ele havia jantado esta semana com Catherine Deneuve
O que impressiona nestes episódios fúteis é que o teor destas notícias nem sequer parece ser assim tão distinto em seriedade das notícias com aquelas declarações habituais de Manuel Pinho, seja por ocasião das inaugurações de grandes unidades fabris ou então as promessas a propósito dos encerramentos de outras grandes unidades fabris... É que mesmo depois da ascensão e queda de Santana Lopes, parece que continuamos rodeados pela mesma lógica em que a comunicação política parece ser completamente desprovida de substância. É que se só resta a imagem, aí, tenham paciência, Manuel Pinho é feio e a Carla Bruni é muito melhor. Até o Dalai Lama, que é santo mas não é parvo, sabe disso!
* Henrique Medina Carreira foi Ministro das Finanças entre 1976 e 1978 e Manuel Pinho é Ministro da Economia desde 2005.

23 agosto 2008

QUEM GANHOU ESTES JOGOS OLÍMPICOS?

Houve alguém que já se entreteve aqui pela blogosfera a estimar qual seria o total de medalhas ganhas por uma hipotética potência desportiva discreta que desse pelo nome de União Europeia… Nessas contas, mas actualizadas, adicionando as medalhas que foram ganhas pelos atletas dos seus 27 países constituintes (em que houve 24 que alcançaram medalhas), mais do que bater a concorrência norte-americana e chinesa, o resultado da União Europeia seria esmagador: um total de 280 medalhas (87 de ouro, 101 de prata e 92 de bronze), ou seja quase 30% de todas as medalhas atribuídas! As conclusões políticas que o autor do poste quer extrair é que já não seriam minhas…
Continuando no domínio dos mesmos cenários hipotéticos, lembrei-me de reconstituir a antiga União Soviética, e calcular como poderia ter sido a sua prestação nestes Jogos Olímpicos de Pequim. Procedendo como no exemplo acima, o somatório das medalhas ganhas pelos atletas de 14 das 15 antigas repúblicas soviéticas atingiria as 171 (43 de ouro, 45 de prata e 83 de bronze), um resultado também muito acima dos resultados dos norte-americanos (110) ou dos chineses (100). Também daqui se poderia extrair a conclusão política, que costuma ser tão cara aos membros do nosso partido comunista, que Mikhail Gorbachev terá feito uma grande asneira ao ter desencadeado aquela perestroika
Contudo, há um cuidado a ter para quem se disponha a levar estas análises demasiado a sério e queira depois extrair conclusões delas. Trata-se de um pormenor técnico mas muito importante: há uma cláusula que limita o número de concorrentes inidviduais que cada país pode inscrever em cada prova dos Jogos Olímpicos. Esse número pode variar com a modalidade (no atletismo o máximo são três atletas, na natação são dois nadadores), mas a cláusula força as potências desportivas (acontece com os Estados Unidos e acontecia com a União Soviética) a realizar disputadíssimas provas prévias de selecção, excluindo muitos desportistas excelentes de participar nos Jogos.
Ora para as contas sobre os resultados desportivos destas duas Uniões virtuais (a Europeia e a Soviética) não se leva em conta essa restrição… Podendo apresentar muito mais competidores por cada prova (por força da adição dos participantes britânicos, alemães, franceses, italianos, etc., num dos casos, e de russos, ucranianos, bielorrussos, arménios, etc., no outro) é evidente que aumentam as probabilidades que eles se encontrem entre os vencedores e os mais bem classificados das provas. E é esse efeito que transforma essas equipas nessas potências discretas que têm o ligeiro defeito de não terem ninguém a puxar por elas.

22 agosto 2008

O SOVIÉTICO QUE ESTEVE QUASE A SER PAPA

O filme As Sandálias do Pescador (abaixo) foi um relativo sucesso na década de 60. Baseado num livro homónimo (talvez ainda mais bem sucedido que o filme) de Morris West, contava a história de um arcebispo de nacionalidade soviética pertencente a uma Igreja de rito oriental não especificada, possivelmente a Igreja Greco-Católica Ucraniana*. O filme começava com a sua libertação (chamava-se Cirilo e era interpretado por Anthony Quinn) de um campo de trabalho soviético na Sibéria, continuava com a sua chegada a Roma onde era nomeado cardeal, realçava-se a sua falta de adaptação ao mundo ocidental e prosseguia com a sua eleição quase acidental como Papa.
O resto da história já não nos interessa, mas existem várias referências às inspirações e à presciência de Morris West na elaboração do enredo. A inspiração maior parece ter sido Josif Slipyj (1892-1984), um verdadeiro arcebispo e cardeal oriundo da Igreja Greco-Católica Ucraniana, que esteve preso e exilado na União Soviética depois da Segunda Guerra Mundial, só tendo vindo a ser definitivamente libertado em 1963. A presciência de West anuncia-se na forma como antecipou em 15 anos (o seu livro foi publicado em 1963) a eleição de um Papa eslavo e originário de um país do bloco socialista, como veio a acontecer em 1978 com João Paulo II (1920-2005).

Mas, nem o cardeal Slipyi se veio instalar em Roma depois de libertado, nem João Paulo II era originalmente bispo de uma Igreja de rito oriental. É provável que West possa ter tido uma outra fonte de inspiração, que raramente é mencionada: o cardeal Agagianian (abaixo, 1895-1971), que era o Patriarca da Igreja Católica Arménia**, embora tivesse nascido na Geórgia e fosse, por isso, cidadão soviético… A parte que é quase coincidente com o enredo de As Sandálias do Pescador é no facto do Patriarca Arménio ter estado muito bem colocado para vir a ser eleito Papa no conclave que se realizou em 1958 por ocasião da morte de Pio XII.
O conclave é a assembleia magna de cardeais que se reúne depois da morte de um Papa para eleger o seu sucessor. Só os cardeais é que podem eleger o Papa mas, por sua vez, foram os Papas anteriores que escolheram e nomearam os cardeais. As regras de funcionamento de um conclave são bastante estritas, com os eleitores isolados do exterior até ao seu fim, que ocorrerá previsivelmente com a eleição do novo Papa. A maioria requerida para a eleição é de ⅔ dos votos e os cardeais procedem a sucessivas votações (até 4 por dia) em que se tentam sondar as hipóteses de sucessivos candidatos favoritos (designados por papabili***) em função da evolução dos resultados que eles vão obtendo de uma eleição para outra.

Por causa do rigor das regras, torna-se muito difícil reconstituir posteriormente a evolução dos escrutínios num conclave. Os próprios intervenientes estão obrigados a uma atitude de reserva em relação ao que lá se passou, sob pena de excomunhão, e as notas que eles tomaram e os próprios boletins de voto são queimados após cada votação – é aliás a queima desses papéis que torna o fumo negro na chaminé (abaixo, o fumo branco), informando que ainda não há Papa… Todas as narrativas do que poderá ter sucedido num conclave costumam assentar em conjecturas, deduções e em alguns episódios pontuais que alguns dos participantes venham a deixar escapar
No conclave de 1958, não apareceu nenhum papabile*** que conseguisse congregar os ⅔ de votos necessários para a sua eleição nas primeiras eleições e os cardeais partiram na busca de soluções mais improváveis de entre os quais parece que a disputa final foi entre o referido cardeal Agagianian e o cardeal Roncalli, que veio a ser eleito e a tomar o nome de João XXIII (abaixo, 1881-1963). Muito mais tarde, em visita aos seminaristas do colégio arménio de Roma, este último terá comentado: Não sabem que o vosso cardeal e eu organizámos uma espécie de dueto durante o conclave de Outubro passado? Os nossos dois nomes alternavam-se, subindo e descendo como grãos-de-bico em água a ferver…

Para os que gostam de especulações históricas, eis aqui uma bem interessante, parecida com a do enredo de As Sandálias do Pescador: a de imaginar qual teria sido o impacto da eleição em 1958 de um Papa originário de uma das Igrejas orientais, ainda para mais possuindo a cidadania soviética… Sendo o Papa o último dos soberanos absolutos que não tem de prestar contas dos seus actos a ninguém (pelo menos, na Terra…), não tenho dúvidas que as diferenças de personalidade teriam provocado uma evolução diferente no que diz respeito aos assuntos religiosos do próprio Vaticano. Mas, dado o seu diminuto peso específico no quadro geoestratégico da época, creio nada de substancial se teria alterado em termos mundiais…

* A Igreja Greco-Católica Ucraniana respeita o ritual ortodoxo (bizantino) mas integra-se e respeita a hierarquia do Vaticano.
** O mesmo acontece com a Igreja Católica Arménia, que também tem um ritual próprio (arménio), mas que também se integra e respeita a hierarquia do Vaticano.
*** Papabile no singular e papabili no plural, poder-se-ia traduzir para um português não muito feliz como papável e papáveis.

21 agosto 2008

A MEDALHA DE OURO "PARA PORTUGAL"

Em Linda-a-Velha existe um Centro Comercial que costumo frequentar (Central Parque) que possui um par de enormes ecrãs na área central das esplanadas. Tradicionalmente, não há transmissão de um grande jogo de futebol que não passe naqueles ecrãs, suponho que com o objectivo de atrair público ao centro. Fugindo um pouco à tradição, a direcção do centro decidiu-se mesmo a usá-los para a transmissão dos jogos da selecção nacional de râguebi no Mundial da modalidade que se disputou no ano passado.

Foi inédito, mas sentia-se que na assistência havia muito mais entusiasmo do que propriamente entendimento de quais eram as regras do râguebi, tal qual como acontecia com os jornalistas, o que terá levado a comunicação social a concentrar-se no enaltecimento dos aspectos folclóricos e acessórios dos jogos (como o entusiasmo com que os jogadores portugueses cantavam o hino nacional…) em detrimento de uma apreciação técnica do expectável fraco desempenho da selecção nacional de râguebi durante o torneio.

Hoje fui almoçar ao Central Parque na esperança que, dada a importância do evento, os ecrãs talvez pudessem estar ligados para transmitirem a final olímpica de atletismo do triplo salto, onde participava como favorito a um lugar do topo (um concorrente às tão badaladas medalhas…) o atleta Nelson Évora. Como seria de antecipar, e porventura numa correcta interpretação por parte da direcção do sentimento popular a respeito das variadíssimas e bizarras modalidades olímpicas, os ecrãs estavam gloriosamente apagados…

Estabelecido este simbólico interesse geral sobre os acontecimentos olímpicos, há que fazer a distinção entre o interesse técnico pela modalidade (escasso) e o interesse pelo resultado da competição (geral) que se costuma sintetizar nas perguntas tradicionais: o Nelson Évora ganhou ou não uma medalha? E qual? Na altura que escrevo já se sabe que foi a medalha de ouro. É isso que interessa ao mundo da informação e não será muito difícil prever qual será a notícia de abertura dos telejornais da noite ou como serão os cabeçalhos dos jornais de amanhã…

Porém, o que o público em geral não fez, ao contrário de muitos órgãos da comunicação social com elementos destacados para Pequim, foi terem-se posto a emitir comentários condenatórios do desempenho dos atletas em modalidades nas quais davam a compreender que por detrás das críticas muitas vezes havia a ignorância de nem se saberem os rudimentos das regras da modalidade que o atleta praticava… É que conhecer essas regras sempre nos ajuda a perceber as contingências e a aleatoriedade sempre associadas à qualquer acontecimento desportivo…

Veja-se o caso do futebol, onde todos percebem as regras e onde nem é preciso perder muito tempo em explicações como às vezes a sorte contribui para o resultado porque a bola bate na barra ou no poste e não entra na baliza… Mas é por tudo isso que me causa um incómodo terrível o uso do colectivo na expressão usada nestas ocasiões festivas: Portugal ganhou uma medalha… Não, a verdade é que essa medalha é de Nelson Évora e, por tudo o que aqui foi descrito, creio que lhe assiste o direito de decidir se a quer compartilhar ou não…

Adenda: Esquecida neste poste, convém relembrar que também na blogosfera houve quem se tivesse associado ao ambiente geral, quer na ignorância crítica, quer na comemoração.

20 agosto 2008

AINDA MAIS JOGOS OLÍMPICOS…

Uma das impressões mais antigas que guardo da minha descoberta de que havia uma lógica distinta na forma como os comunistas transpunham as suas convicções para alguns aspectos do quotidiano está associada a uns Jogos Olímpicos, os de 1976 em Montreal. A televisão transmitiu a final do torneio olímpico de voleibol entre a Polónia e a União Soviética, um jogo disputadíssimo a que eu assistia – como era habitual no Verão – num daqueles televisores de café, rodeado de uma assistência atenta. Quanto a escolher por quem torcer, aquele jogo até fugia à lógica da Guerra-Fria que era predominante na altura para decidir por qual dos países escolher: os dois países pertenciam ao bloco socialista.

Mas depois desse, usavam-se os critérios de hoje e de sempre para optar por quem se torcia, e as simpatias naturais iriam para a Polónia. Porque era o país mais pequeno e o mais fraco é-nos sempre mais simpático, e porque era o país que nos era mais próximo, regra que entre nós se cumpre quase sempre, com a notável excepção da Espanha. Mas o auditório que seguia entusiasmado aquele jogo de voleibol estava claramente dividido entre quem torcia pela Polónia e uma minoria que torcia pela União Soviética. Porque se viviam outros tempos de desenvoltura da conversa política, depressa deu para me aperceber que os torcedores pelos soviéticos eram simpatizantes comunistas.

Para a história ficou a vitória e a medalha de ouro para a equipa polaca por uns cerradíssimos 3-2, mas para a minha memória ficou um trecho da frase de consolo, dita por um dos apoiantes da equipa soviética a um seu correligionário no fim do jogo: apesar de tudo, a Polónia também era um país socialista… Claro que se tratava de uma época de excessos, o PREC acabara de terminar e aquele café não seria o local mais indicado para encontrar detentores de uma cultura política muito sustentada, mas não me deixei de interrogar que imposições de disciplina ou outros quaisquer processos de raciocínio levariam a endeusar assim a superpotência do bloco socialista em detrimento dos seus aliados…

É que parecia haver ali toda uma outra escala de valores, distinta da do resto do espectro político. Ainda recentemente pude tornar a constatar essa diferença no blogue Hoje há conquilhas, ao autor do qual (Tomás Vasques) enviaram uma questão, que creio se pretendia embaraçosa, sobre as relações do PS (partido no qual milita) com partidos de origens menos recomendáveis, como a antiga Roménia, o antigo Iraque ou a Coreia do Norte. O interessante da história nem é a resposta – demarcando-se dessas posições do seu partido – mas a lógica de quem terá pensado que aquela questão, por poder provocar uma crítica ao seu próprio partido, podia ser embaraçosa para o destinatário…

19 agosto 2008

OS LOUCOS E OS EXCÊNTRICOS, LES UNS ET LES AUTRES

Quando Muammar al-Gaddafi promoveu o Golpe de Estado que o levou ao poder na Líbia, em 1 de Setembro de 1969, o seu novo regime foi inicialmente bastante bem acolhido pelos Estados Unidos. Lembro-me de ler um artigo muito elogioso a seu respeito nas Selecções do Reader´s Digest da época. No artigo, os elogios incidiam sobre a sua sobriedade (ao contrário dos militares golpistas africanos tradicionais, Gaddafi não se auto-promovera imediatamente ao posto de general…) e sobre a sua preocupação com o povo (qual Harun al-Raschid*, também Gaddafi tinha fama de percorrer incógnito as ruas assistindo aos oprimidos, castigando os poderosos e fazendo justiça sumária**).
Se a sobriedade se ia inspirar directamente ao exemplo de Gamal Abdel Nasser, que permaneceu coronel para o resto da sua vida na condução dos destinos do vizinho Egipto, a verdade é que os comportamentos bizarros eram bastante frequentes entre os governantes árabes da época. Para usar um exemplo engraçado, o do Koweit, foi preciso esperar pela chegada ao trono do Emir Sabah Al-Salim Al-Sabah em 1965 para que houvesse uma distinção entre o que era tesouro do monarca e o que era o Tesouro do Koweit. E adoptando uma medida para se tornar popular, o seu primeiro-ministro diminuiu em 1966 o seu salário anual de 28 para apenas 22,4 milhões de dólares…
Mas esses gestos não impediam outras proezas, como a viagem (já na década de 70) do Emir (viria a morrer em 1977), das suas mulheres e concubinas e restante comitiva num enorme Boeing 747 para irem às compras a Paris… No regresso acabaram por vir dois Boeings 747: um trazendo a comitiva, o outro, na versão cargueiro, trazendo todas as compras… Como disse acima, os governantes dos países árabes eram muito propensos a excentricidades… O que tornou Gaddafi diferente da maioria foi a renegociação que ele e o novo regime líbio impuseram às diversas companhias petrolíferas que operavam então na Líbia que culminou com a sua nacionalização em 1 de Setembro de 1973.
Trata-se de um episódio normalmente desconhecido, mas a verdade é que antecipadamente aos outros países da OPEP, a Líbia gozava de condições contratuais que os restantes países membros só vieram a adquirir depois da Crise de Outubro de 1973. Ao contrário daquilo com que estavam habituados a lidar, as grandes petrolíferas não conseguiram accionar a arma do suborno (Gaddafi nunca se mostrou venal), nem conseguiram explorar fragilidades dentro do regime que pudessem levar ao seu derrube porque Gaddafi o dominava com mão de ferro. Parece-me evidente a razão porque, em vez de ser mais um árabe excêntrico, a imagem internacional de Gaddafi passou a ser a de um louco…
É que a loucura e os pormenores pitorescos do regime líbio de Gaddafi (as tendas, as amazonas na segurança...) parecem não ter nada de semelhante com o que acontecia com o Uganda de Idi Amin, por exemplo. Por analogia, e aproveitando a fotografia acima (Gaddafi cumprimentando Sarkozy), confesso que me intriga a aura de má publicidade constante que parece rodear o presidente francês. Percebo, por um lado, que em Bruxelas não se aprecie Sarkozy por ele se mostrar muito menos complacente com as posições alemãs*** do que acontecia com o antecessor Chirac. Por outro, tenho certa dificuldade em perceber as causas de tanto noticiário negativo a seu respeito, quando em Itália existe uma figura chamada Silvio Berlusconi…
* Califa abássida do Século VIII, protagonista do livro de Contos das Mil e Uma Noites.
** Uma das histórias do artigo era a de um médico ocidental que se recusava a ver um doente a meio da noite e foi expulso da Líbia no dia seguinte.
*** Normalmente, no noticiário originário ou inspirado por Bruxelas prefere-se a expressão posições europeias...