30 novembro 2006

DESTE LADO DOS HIMALAIAS - 1


Depois de termos falado da formação das grandes correntes de pensamento religioso e filosófico na China, vale a pena atravessar os Himalaias e verificar o que se passou na Índia. Entre as religiões da Índia actual, para além daquelas que têm um relevo sociológico evidente na sociedade indiana actual – os Hindus (77,5%), Muçulmanos (16.7%), Cristãos (2,3%) e Sikhs (2,0%) – há duas outras religiões que, ali nascidas, hoje apenas recolhem uma fracção ínfima de seguidores entre a população indiana: são os budistas (0,77%) e os jainistas (0,41%). Mesmo assim e dada a dimensão da Índia, os seus seguidores contam-se por milhões, oito, no primeiro caso e mais de quatro, no segundo.

As duas religiões compartilham as origens, tanto temporal (Século VI a.C.) como geograficamente (o Estado indiano de Bihar, no Norte da índia, com 94.000 Km2 e 83 milhões de habitantes em 2001). Tendo os seus dois fundadores antecedido em cerca de uma centena de anos o desabrochar das Cem Escolas de Pensamento da China, os processos de sedimentação dos ensinamentos dos vários mestres (Buda e Mahavira, Confúcio e Lao-Tse) que se prolongaram por várias centenas de anos para além das suas mortes, acabaram por se virem a sobrepor no tempo, mas de uma forma independente, conforme o lado onde se encontravam em relação à grande barreira divisória dos Himalaias.

JAINISMO

Admite-se que as ideologias embrionárias do jainismo já estivessem em circulação por volta do Século VII a.C., mas atribui-se normalmente a Mahavira (entre 599 – 527 a.C. e 549 – 477 a.C.), portanto no século seguinte, a autoria da estruturação da religião e dos ensinamentos que deram origem à sua rápida expansão e organização. A biografia de Mahavira refere que, com a idade de trinta anos (portanto algures entre 570 e 520 a.C., dada a incerteza de datas nesta época), ele renunciou à família e tornou-se um asceta. Por doze anos vagueou pelas regiões do vale do Ganges em busca da Verdade e da Iluminação.

Os seus ensinamentos, originalmente preservados na forma oral, e assim transmitidos de geração em geração, só foram redigidos e compilados por escrito no Século III a.C., tendo mesmo evoluído depois disso até uma versão final datada sensivelmente já do Século V da nossa era. Uma boa parte do que iremos descrever pode ser percebido como muito semelhante às características que associamos ao hinduísmo. Existem duas causas para essa semelhança aparente. Uma das razões para isso é porque o jainismo emergiu numa sociedade onde o hinduísmo – mais antigo – já existia como religião organizada, e assim influenciou-o assim na fase do seu nascimento. Outra das razões, registada muito mais tarde, foi a reacção do próprio hinduísmo quando se sentiu ameaçado pela expansão do jainismo e incorporou nele muitos dos conceitos da nova religião.

Para o jainismo o Universo funciona de acordo com uma lei eterna em que se submete a um ciclo sempre repetido de vagas cósmicas de avanços e recuos. Nesse Universo, a existência ou não de um Deus é uma questão irrelevante, mas tudo o que nele existe possui uma alma. O objectivo da vida é a purificação da alma porque só a alma pura se liberta para atingir a felicidade suprema. Mas, ao contrário do que ensinavam alguns textos mais antigos do hinduísmo, essa pureza não se pode alcançar apenas com o conhecimento, que é uma qualidade apenas relativa. Conforme a parábola dos cegos que, tocando partes diferentes do elefante, o viam de maneira diferente, também o valor do conhecimento é apenas fragmentário e insuficiente para a salvação da alma. A purificação da alma obriga a uma vida equilibrada, o que, seguindo as instruções de Mahavira, só podia ser atingido vivendo uma vida monacal. O voto de não-violência e a preservação da vida alheia é quase obsessiva e levada a um ponto tão extremo que mesmo a morte involuntária de um pequeno insecto é considerado um pecado…

Estas peculiaridades fizeram do jainismo uma religião de elites (qualquer agricultor se torna um pecador ao matar involuntariamente os insectos do subsolo com o seu arado…), marcada também pelo culto da frugalidade, e confinada sobretudo a actividades que hoje consideraríamos pertencerem ao sector dos serviços como o comércio ou o ensino. Essa característica acabou por transferir a área de influência principal do jainismo das regiões de origem do vale do Ganges onde hoje se situam os modernos estados indianos de Bihar e de Uttar Pradesh, onde predominavam as sociedades agrícolas, para as regiões da Índia onde a actividade económica estava mais desenvolvida e onde esta fosse mais elaborada (houve uma época em que a actividade bancária na Índia se tornou quase um exclusivo dos jainistas). Essas regiões tradicionalmente ficavam na Índia Ocidental - o que actualmente tornou a acontecer.

Mais de 80% dos jainistas indianos concentram-se num núcleo de cinco estados da Índia Ocidental: Maharashtra (onde se localiza a capital económica do país, Bombaim), Rajasthan, Madhya Pradesh, Gujarat e Karnataka. Mas, mais importante do que o seu número de seguidores actual, será a influência que o jainismo terá tido para o pensamento indiano contemporâneo. Muito possivelmente, o estado que terá sido mais influenciado pelo jainismo terá sido o de Gujarat, onde influenciou, visivelmente, a sua cozinha tradicional, vegetariana, e onde se evita o recurso a vegetais de sabores fortes como o alho e a cebola.

Mas, outra forma, muito mais significativa de identificar essa influência, será na pessoa e obra daquele que será, muito provavelmente, o mais famoso gujarati de sempre, Mohandas K. Gandhi, apercebendo-nos – depois desta descrição e apesar dele ser hindu – onde o Mahatma poderá ter ido buscar inspiração para a não-violência e frugalidade de que fez a bandeira da sua forma de estar na vida.

Uma curiosidade final: um dos símbolos mais sagrados do jainismo é a cruz suástica.

3 comentários:

  1. Depois desta brilhante lição, é quase uma ofensa esboçar um comentário irónico dizendo que, no fundo, bem lá no fundo, talvez algumas organizações de extrema direita pretendam (afinal e simplesmente) passar mensagens de não-violência e de frugalidade. Será?

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  2. A suástica, no jainismo (eu pensava que era mesmo no hinduismo), é um símbolo de equilíbrio, de harmonia, como os seus preceitos ensinam e tão bem foram aqui explicados - penso também que a suástica "original" tinha/tem os braços invertidos em relação à sua "adaptação" nazi, estou certo?

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