16 novembro 2006

A ÁSIA ENTRE OS DOIS COLOSSOS DO FUTURO – 1


A BIRMÂNIA (MYANMAR)

Pais que permanece como candidato à promoção ao Eixo do Mal por esta Administração norte-americana, a Birmânia (ou Myanmar, como passou a ser a sua designação oficial desde 1989) é um dos exemplos mais acabados do país estranho, tradicionalmente vedado ao exterior, com muito pouca popularidade internacional, governado por uma oligarquia militar e por um regime repressivo desde 1962, e sobre o qual se sabe muito pouco porque também há muito pouco interesse em obter informação sobre ele. E em contraste com todo este isolamento e antipatia é, até 1 de Janeiro de 2007 quando o coreano Ban Ki-Moon tomar posse, o país de origem do único secretário-geral da ONU de origem asiática, U Thant, que desempenhou o cargo entre 1961 e 1971.

É um país relativamente grande (677.000 Km2, o que fará dele sete vezes maior que Portugal), com quatro grandes vizinhos: o mar (1.930 Km. de costas), a China (2.185 Km. de fronteira), a Índia (1.463 Km.) e a Tailândia (1.800 Km.). Contudo as fronteiras com a China e sobretudo as com a Índia, onde as cadeias montanhosas chegam a atingir os 4 a 5 mil metros de altitude (o ponto mais alto da Birmânia tem uma altitude de 5.881 mts…) isolam a Birmânia do contacto com os seus dois colossais vizinhos. E, como acontece frequentemente na Ásia continental, o núcleo do país está organizado à volta de um grande delta agrícola, neste caso o rio é o Irrawaddy, tem quase 2.000 Km. de extensão, 1.650 de navegabilidade e a sua bacia hidrográfica ocupa sensivelmente 1/3 da Birmânia.

As estimativas da população actual da Birmânia rondam os 50,5 milhões de habitantes (2005), muito embora a heterogeneidade da população transforme os recenseamentos num escaldante problema político, pela possibilidade de atribuir maior ou menor importância a cada um dos grupos que a compõem. O último censo realizado data de 1983, mas o último censo fiável data do período colonial britânico (1930)… No entanto, desde logo é possível concluir que a Birmânia é um país demograficamente menor do que a Tailândia (vizinha e grande rival histórica), com 65,5 milhões, o Vietname, com 84,2 milhões, para não falar do Bangladesh com 147,4 milhões e nem mencionando os colossos indiano e chinês.

Mas o grande problema não se põe sobre quantos são os birmaneses mas em quem são os birmaneses. E, rigorosamente, os birmaneses são apenas um dos grupos que constituem a população da Birmânia, daí a mudança politicamente correcta do nome do país em 1989 para Myanmar. É verdade depois acontecem os lapsos da prática, da mesma forma que continuamos a tratar por ingleses todos os súbditos de Isabel II… Contudo a analogia acabará por aí se nos dermos conta que nem escoceses, nem galeses têm grupos terroristas, guerrilheiros e mesmo exércitos de guerrilha em revolta contra o poder central como acontece com grande parte das minorias birmanesas… Os birmaneses propriamente ditos concentram-se na bacia do Irrawaddy e correspondem a cerca de 68% do total da população, as minorias estão fragmentadas (Shan 9%, Karen 7 a 8%, Kayin 7% e Rakhine 4% mencionando apenas as maiores) e habitam as regiões mais recuadas e inacessíveis, dificultando a imposição do poder central. A isto há que adicionar pequenas comunidades comerciais de chineses (2%) e indianos. Religiosamente a grande maioria da população é budista theravada (85%), com o cristianismo, o islamismo e o hinduísmo como confissões minoritárias. Mas a religião também contribui para a acentuação das fracturas internas porque as minorias religiosas tornam-se significativas entre as minorias étnicas: entre os Karen (a Leste) e os Kachin (a Noroeste), por exemplo, os cristãos representam entre 30 a 40% da população.


Existe uma história da Birmânia relativamente bem documentada desde o Século IX da nossa era, embora se consiga constatar a forte influência das civilizações vindas da Índia para o longo período anterior, seja na religião (o budismo é dali oriundo) seja na cultura (o característico alfabeto birmanês é visivelmente inspirado no alfabeto indiano do sânscrito). Uma síntese do milénio que decorre entre o Século IX e o XIX, onde ocorre a imposição do poder britânico, poderá fazer lembrar vagamente os primórdios da história do Egipto, onde existe uma disputa entre dois núcleos de poder ao longo do grande rio (o Irrawaddy), designados pela Alta e a Baixa Birmânia (a zona do delta), intercaladas com disputas com uma potência exterior do mesmo grau de sofisticação (o Sião, actual Tailândia) e com incursões de povos menos sofisticados (as actuais minorias) que fundam regimes e dinastias que acabam por ser absorvidos na corrente principal.

Na lógica da descrição anterior, a chegada dos europeus (britânicos) no Século XIX teria sido apenas mais um pormenor, não fosse a sua importância para explicar a configuração actual do país e os problemas com que ele se confronta actualmente. Oriundos de Bengala, onde estava instalada desde o Século XVIII, a Companhia das Índias britânica começou por declarar guerra e anexar a baixa Birmânia em 1824. Mais tarde, já extinta a Companhia, foi o governo das Índias que anexou (mais outra guerra) a alta Birmânia em 1885. Como seria de prever, a administração colonial britânica, para dividir os interesses dos colonizados, separou e autonomizou os canais administrativos dos birmaneses dos das minorias, fomentando a autonomia destas últimas, numa relação que até aí tinha sido de suserania feudal por parte do núcleo birmanês. Outra razão de queixa destes últimos consistia no facto de, dependendo a Birmânia da Índia, todo o aparelho administrativo estar guarnecido de indianos – ultrapassando o meio milhão nas vésperas do começo da 2ª Guerra Mundial – o que fazia da Birmânia, paradoxalmente, também uma espécie de colónia indiana…

Não é de estranhar que o nacionalismo birmanês fosse um dos que, na Ásia, maior animosidade manifestasse contra o poder colonial europeu e que acolhesse de braços abertos os japoneses quando estes invadiram a Birmânia em 1942. Um nacionalismo birmanês que era popularmente hostil aos indianos, intelectualmente hostil aos britânicos e que, com o decorrer do tempo de ocupação, se tornou também progressivamente cada vez mais hostil aos japoneses. Apesar disso, estes últimos ajudaram os birmaneses a criar um exército de libertação nacional que, concebido para os auxiliar, acabou por se virar contra eles em 1945. Sobretudo, o nacionalismo birmanês passou a contar com um braço armado que, desde aí, nunca mais deixou de assumir uma grande preponderância na condução dos assuntos políticos.

Mais do que a vontade britânica em a atrasar, foi a sobretudo a preocupação com a obtenção de um equilíbrio político interno quase federal entre os diversos grupos nacionais o que mais atrasou a independência da União da Birmânia, que se deu em Janeiro de 1948. Como noutros países asiáticos em que a consistência da identidade nacional não existe ou é muito fraca (o Paquistão ou o Iraque são disso exemplo…), os militares saltaram para a condução dos destinos do país progressivamente, mas formalmente desde 1962, não o tendo largado desde então. Desastrados como costumam ser geralmente os regimes militares na gestão da sua imagem internacional, contam na oposição com uma laureada com o Nobel da Paz (Aung San Suu Kyi) entre muitas outras acusações de inépcia na gestão do desenvolvimento económico e de falta de respeito pelos direitos humanos.

Um dos poucos países – com o Paquistão, o Butão e o Nepal – a compartilhar fronteiras simultaneamente com a China e com a Índia, alguma coisa se deverá a essa localização geográfica delicada, os cuidados postos pelas potências vizinhas (e não só…) em evitar a sua implosão e a cuidar da manutenção de um regime que, evidentemente, não consegue solucionar politicamente a existência do país nos moldes actuais.

2 comentários:

  1. Vale a pena apssar por aqui. (refiro-me ao blog, não à Birmânia)

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  2. Obrigado, caro João Moutinho, pelo elogio que é também um incentivo.

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