Há ocasiões onde as divisões da geografia política, não ajudam e até se tornam mesmo um obstáculo à definição de um espaço geográfico preciso. Nas grandes regiões asiáticas onde, no passado, China e Índia alternaram na sua influência cultural – indicativo que poderão ser áreas de disputa futura – conta-se a grande região onde predominam os malaios, que engloba a península da Malásia e a Indonésia Ocidental, com as suas ilhas principais de Java e Sumatra. Estas duas ilhas concentram cerca de 80% da população da Indonésia (222,8 milhões de habitantes em 2005), enquanto na península malaia habitam também cerca de 80% da população do estado malaio (26,8 milhões de habitantes em 2006). No extremo Sul da península, como uma evocação das cidades estado da Grécia clássica e da Itália renascentista, situa-se a cidade estado moderna de Singapura, com 4,3 milhões de habitantes (2005).
Procurando por todo o globo é difícil encontrar uma península que seja mais ínsula (ilha) do que a península malaia. O seu ponto mais estreito, o istmo de Kra, ainda em território tailandês, tem apenas 44 Km. de extensão. Desde há muito que existem ideias para ali abrir um canal de navegação, à semelhança dos que se construíram no Suez ou no Panamá, embora os ganhos em tempo que ali se obteriam sejam visivelmente menores aos verificados nos outros locais mencionados. E se a península malaia é uma quase ilha maciça de 132.000 Km2 (só na parte malaia), Sumatra é uma verdadeira ilha maciça de 473.000 Km2 (5 vezes a extensão de Portugal) e Java, outra grande ilha, com 132.000 Km2. O clima é tropical e equatorial com duas monções por ano, que alimentam uma flora tropical exuberante (70% da península malaia e a grande maioria de Sumatra estão cobertas de uma imponente floresta tropical) e uma agricultura de arroz com altos rendimentos: a densidade populacional na ilha de Java aproxima-se dos 940 habitantes por Km2, a segunda mais elevada de todo o mundo.
Outra das características da geografia física daquela região é a sua enorme instabilidade geológica. Numa lista de vulcões assinalam-se 35 localizados em Sumatra e mais 44 em Java e nos seus arredores. Outra consequência dessa enorme instabilidade geológica são os terramotos e maremotos como o de 26 de Dezembro de 2004 que se estima tenha causado a morte a 230.000 pessoas, 168.000 das quais na Indonésia e destas, a esmagadora maioria na ilha de Sumatra, o local mais próximo do epicentro do fenómeno. Em resultado da acção vulcânica sobre as ilhas, os locais mais elevados também impressionam pela sua altitude: se na Malásia o pico dominante atinge apenas os 2.187 mts. (200 mts. acima da torre da Serra da Estrela), em Java o monte Semeru tem 3.676 mts. e em Sumatra o monte Kerinci 3.805 mts. – são quase duas Serras da Estrela (1.991 mts.) sobrepostas!
Sensivelmente 2/3 da população de Java (rondando os 130 milhões) pertencem à etnia javanesa. Correspondendo a cerca de 45% do total da população indonésia, os javaneses constituem uma espécie de núcleo duro do Estado Indonésio. Outro grande grupo étnico e linguístico de Java são os sundaneses, que se estima serem uns 30 milhões. Outros grupos étnicos e linguísticos mais pequenos são os do madureses (de Madura, uma ilha de 4.000 Km2, adjacente a Java), com 8 a 10 milhões de falantes e os balineses (de Bali, outra ilha de 6.000 Km2, nas mesmas circunstâncias da anterior). Note-se que o idioma oficial da Indonésia (o bahasa indonésia), embora aparentado com qualquer dos idiomas acima citados, é distinto de qualquer um deles, e empregue normalmente como segunda língua de comunicação. Mais de 90% da população de Java é muçulmana, mas existem vestígios espalhados pela ilha de comunidades cristãs (católicas e protestantes), budistas e especialmente hindus, que, no caso das duas últimas, outrora predominaram na ilha. Os hindus, provavelmente a maior das minorias religiosas de Java, concentram-se sobretudo no Leste, junto à ilha de Bali, onde constituem a esmagadora maioria da população da ilha.
Se a descrição étnica, linguística e religiosa de Java já foi extensa, apesar dos esforços para a simplificar, a de Sumatra teria de ser maior… Embora muito menos habitada do que Java (cerca de 47 milhões de habitantes), a sua maior extensão e a cobertura luxuriante tornam a sua população muito mais heterogénea: ao todo existem 52 línguas diferentes, mas todas pertencentes ao grande grupo malaio. Os muçulmanos também são a esmagadora maioria (mais de 90%), com as mesmas minorias (cristãs, budistas e hindus) e com a curiosidade da existência dum grupo do interior (os Batak – que são na realidade uma designação genérica de grupos étnicos distintos) que são predominantemente protestantes.
Em contrapartida, na Malásia, a identificação de grupos étnicos torna-se muito mais fácil: esquecendo as especificidades distintivas entre malaios – que constituem 60% da população – há ainda que contar com os chineses (30%) e com os indianos (8%). A chegada destes dois últimos grupos é, contudo, um fenómeno relativamente recente, do Século XIX, quando o Império Britânico precisou de mão-de-obra para as suas plantações de borracha e a começou a importar das possessões próximas que possuía na Ásia: a Índia e Hong-Kong. É a mesma razão que explica a composição étnica da cidade estado de Singapura: 77% de chineses, 14% de malaios e 8% de indianos. Em termos religiosos, a esmagadora maioria dos malaios, como na Indonésia, são muçulmanos, os chineses repartem-se entre as religiões tradicionais da China (Budismo, Taoismo e Confucionismo) e os indianos, como acontece no subcontinente, são maioritariamente hindus, embora com uma significativa minoria (1/3) muçulmana. De notar como a presença colonial britânica se faz sentir no número de cristãos: são 9% na Malásia e mais de 12% em Singapura.
Esta descrição complexa da actualidade tem todavia uma evolução histórica muito semelhante a que já foi traçada para as outras regiões. Pouco dela se sabe até ao Século VII da nossa era, mas já lá existiam reinos indianizados. Curiosamente, não se sabendo qual foi a religião que iniciou o processo de evangelização, se terá sido o hinduísmo ou o budismo, a verdade é que os divulgadores tanto duma quanto doutra, vindos todos originalmente da mesma região geográfica (Índia), por séculos disputaram os favores das elites locais nos seus esforços de conversão.
Fontes escritas chinesas mencionam no Século VII o porto de Srivijaya (Palembang no Sul de Sumatra), um centro religioso budista e também o centro das conexões de um império comercial, que assegurava as ligações marítimas com a China e a Índia, mas o seu feito mais espectacular foi o de projectar a sua influência até à ilha de Madagáscar! Enquanto a Malásia e Java ocidental dependiam deste império, no centro de Java, muito mais fértil, aparecia um reino budista no Século VIII que se viu suplantado no século seguinte por dinastias hindus oriundas do Leste da ilha. Até aos finais do Século XIII, com oscilações, é esse o mapa político que prevalece, embora o império comercial tenha vindo a enfraquecer progressivamente – chegou a ser atacado a Ocidente pelo potentado indiano tamil (do Sul da Índia) no Século XI – e com a infiltração progressiva do Islão (vindo também da Índia como as outra religiões) a partir do fim do Século XIII.
O Islão está na génese de um novo império comercial, lançado em bases renovadas – uma rede que abrange a China, a Índia, mas também todas as ilhas importantes do arquipélago indonésio, incluindo as Filipinas - e sedeado em Malaca, a partir do Século XV. Considerando todos os seus efeitos, a conquista de Malaca em 1511 por Afonso de Albuquerque é capaz de ter sido a sua proeza mais importante, superando todas as suas outras conquistas. Mais do que a localização estratégica do porto, controlando o Estreito com o seu nome, Albuquerque apropriou-se do local onde se concentravam quase todas as rotas comerciais para Oriente e Ocidente. Circunstancialmente, o Islão tornou-se o catalisador da oposição ao monopólio que os portugueses quiseram impor: a maioria dos estados que se lhes opunham eram ou tornaram-se sultanatos.
A substituição dos portugueses pelos holandeses a partir do Século XVI obedece à lógica das vantagens comparativas que permitiram às potências protestantes do Atlântico substituírem-se com vantagem às duas potências ibéricas católicas: concentração na rentabilidade das actividades económicas, abandono de qualquer veleidade de proselitismo religioso e controle discreto dos detentores do poder formal. Como aconteceu com os britânicos na Índia, apenas por inércia, por volta de 1790 já os holandeses se haviam apoderado de vastas parcelas das ilhas da Indonésia e da península da Malásia. As Guerras Napoleónicas na Europa permitiram aos britânicos atribuírem-se (a Holanda tinha sido ocupada por Napoleão) alguns territórios que consideravam importantes para o seu império mundial.
Foi assim com Ceilão, foi assim com a África do Sul e foi assim com a Malásia onde fundaram em 1815, no extremo Sul da península, uma cidade - Singapura – destinada a substituir Malaca como entreposto central do comércio sino-indiano. Recorde-se que em 1842 os britânicos vieram a adquirir Hong-Kong à China, no seguimento de uma Guerra do Ópio, que os britânicos queriam exportar da Índia para a China, mas que estes, compreensivelmente, não queriam importar. Singapura é uma cidade verdadeiramente moderna porque, ao contrário de Malaca, está rodeada de pântanos o que a impede de dispor dos recursos agrícolas que possam alimentar uma população numerosa: desde o princípio, praticamente tudo o que Singapura consome tem de ser importado.
Já houve oportunidade de descrever como a importação de mão-de-obra deu lugar a uma alteração substancial do panorama étnico na Malásia, com uma importante minoria chinesa (30%) que até é maioritária em Singapura (77%). Na Indonésia, especialmente em Java, também existe uma importante comunidade mercantil urbana chinesa, parte da qual já está enraizada no país desde há séculos mas cuja dimensão é difícil de estimar devido a perseguições políticas no passado recente. Oficialmente, um número que se considera normalmente estar subestimado os chineses étnicos serão um pouco mais de 2 milhões.
A conquista da região pelos japoneses em 1941-42 afundou o prestígio dos europeus e tornou a sua manutenção enquanto potências coloniais praticamente impossível. A Indonésia tornou-se independente da Holanda em 1949 e a Malásia do Reino Unido em 1960, não sem antes a China Popular ter ensaiado uma das suas primeiras projecções de poder no exterior, fomentando entre os seus na Malásia um movimento de subversão cujo auge durou de 1948 a 1954. Também o predomínio dos chineses entre os quadros do Partido Comunista Indonésio (PKI) levou a uma associação entre ideologia e nacionalidade que teve o efeito perverso de, durante um Golpe de Estado militar na Indonésia, em 1965, a perseguição ao PKI se ter transformado numa gigantesca perseguição sangrenta contra a comunidade chinesa.
Este último troço das regiões da Ásia que se dispõem entre os dois colossos do futuro, contém, curiosamente, o único país, fora naturalmente a República Popular da China e a Formosa, onde existe uma maioria populacional chinesa: Singapura. Nessa perspectiva pode ser vista como mais um elo de uma cadeia de grandes cidades chinesas como Xangai e Hong-Kong. E, de facto, o actual fluxo do desenvolvimento económico sopra decididamente de Leste. É para aí que as economias tem de se virar. Mas, se a religião dos malaios servirá de indicação da sua neutralidade numa qualquer disputa ideológica entre o seu Leste e o seu Oeste, pelo menos os precedentes históricos – com o valor restrito que esse facto possa ter – apontam para que ali se estivesse estado sempre mais disposto a receber as ideias que vêm de Ocidente do que as do Oriente…
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