O filme As Sandálias do Pescador (abaixo) foi um relativo sucesso na década de 60. Baseado num livro homónimo (talvez ainda mais bem sucedido que o filme) de Morris West, contava a história de um arcebispo de nacionalidade soviética pertencente a uma Igreja de rito oriental não especificada, possivelmente a Igreja Greco-Católica Ucraniana*. O filme começava com a sua libertação (chamava-se Cirilo e era interpretado por Anthony Quinn) de um campo de trabalho soviético na Sibéria, continuava com a sua chegada a Roma onde era nomeado cardeal, realçava-se a sua falta de adaptação ao mundo ocidental e prosseguia com a sua eleição quase acidental como Papa.
O resto da história já não nos interessa, mas existem várias referências às inspirações e à presciência de Morris West na elaboração do enredo. A inspiração maior parece ter sido Josif Slipyj (1892-1984), um verdadeiro arcebispo e cardeal oriundo da Igreja Greco-Católica Ucraniana, que esteve preso e exilado na União Soviética depois da Segunda Guerra Mundial, só tendo vindo a ser definitivamente libertado em 1963. A presciência de West anuncia-se na forma como antecipou em 15 anos (o seu livro foi publicado em 1963) a eleição de um Papa eslavo e originário de um país do bloco socialista, como veio a acontecer em 1978 com João Paulo II (1920-2005).
Mas, nem o cardeal Slipyi se veio instalar em Roma depois de libertado, nem João Paulo II era originalmente bispo de uma Igreja de rito oriental. É provável que West possa ter tido uma outra fonte de inspiração, que raramente é mencionada: o cardeal Agagianian (abaixo, 1895-1971), que era o Patriarca da Igreja Católica Arménia**, embora tivesse nascido na Geórgia e fosse, por isso, cidadão soviético… A parte que é quase coincidente com o enredo de As Sandálias do Pescador é no facto do Patriarca Arménio ter estado muito bem colocado para vir a ser eleito Papa no conclave que se realizou em 1958 por ocasião da morte de Pio XII.
O conclave é a assembleia magna de cardeais que se reúne depois da morte de um Papa para eleger o seu sucessor. Só os cardeais é que podem eleger o Papa mas, por sua vez, foram os Papas anteriores que escolheram e nomearam os cardeais. As regras de funcionamento de um conclave são bastante estritas, com os eleitores isolados do exterior até ao seu fim, que ocorrerá previsivelmente com a eleição do novo Papa. A maioria requerida para a eleição é de ⅔ dos votos e os cardeais procedem a sucessivas votações (até 4 por dia) em que se tentam sondar as hipóteses de sucessivos candidatos favoritos (designados por papabili***) em função da evolução dos resultados que eles vão obtendo de uma eleição para outra.
Por causa do rigor das regras, torna-se muito difícil reconstituir posteriormente a evolução dos escrutínios num conclave. Os próprios intervenientes estão obrigados a uma atitude de reserva em relação ao que lá se passou, sob pena de excomunhão, e as notas que eles tomaram e os próprios boletins de voto são queimados após cada votação – é aliás a queima desses papéis que torna o fumo negro na chaminé (abaixo, o fumo branco), informando que ainda não há Papa… Todas as narrativas do que poderá ter sucedido num conclave costumam assentar em conjecturas, deduções e em alguns episódios pontuais que alguns dos participantes venham a deixar escapar…
No conclave de 1958, não apareceu nenhum papabile*** que conseguisse congregar os ⅔ de votos necessários para a sua eleição nas primeiras eleições e os cardeais partiram na busca de soluções mais improváveis de entre os quais parece que a disputa final foi entre o referido cardeal Agagianian e o cardeal Roncalli, que veio a ser eleito e a tomar o nome de João XXIII (abaixo, 1881-1963). Muito mais tarde, em visita aos seminaristas do colégio arménio de Roma, este último terá comentado: Não sabem que o vosso cardeal e eu organizámos uma espécie de dueto durante o conclave de Outubro passado? Os nossos dois nomes alternavam-se, subindo e descendo como grãos-de-bico em água a ferver…
Para os que gostam de especulações históricas, eis aqui uma bem interessante, parecida com a do enredo de As Sandálias do Pescador: a de imaginar qual teria sido o impacto da eleição em 1958 de um Papa originário de uma das Igrejas orientais, ainda para mais possuindo a cidadania soviética… Sendo o Papa o último dos soberanos absolutos que não tem de prestar contas dos seus actos a ninguém (pelo menos, na Terra…), não tenho dúvidas que as diferenças de personalidade teriam provocado uma evolução diferente no que diz respeito aos assuntos religiosos do próprio Vaticano. Mas, dado o seu diminuto peso específico no quadro geoestratégico da época, creio nada de substancial se teria alterado em termos mundiais…
* A Igreja Greco-Católica Ucraniana respeita o ritual ortodoxo (bizantino) mas integra-se e respeita a hierarquia do Vaticano.
** O mesmo acontece com a Igreja Católica Arménia, que também tem um ritual próprio (arménio), mas que também se integra e respeita a hierarquia do Vaticano.
*** Papabile no singular e papabili no plural, poder-se-ia traduzir para um português não muito feliz como papável e papáveis.
Mas, nem o cardeal Slipyi se veio instalar em Roma depois de libertado, nem João Paulo II era originalmente bispo de uma Igreja de rito oriental. É provável que West possa ter tido uma outra fonte de inspiração, que raramente é mencionada: o cardeal Agagianian (abaixo, 1895-1971), que era o Patriarca da Igreja Católica Arménia**, embora tivesse nascido na Geórgia e fosse, por isso, cidadão soviético… A parte que é quase coincidente com o enredo de As Sandálias do Pescador é no facto do Patriarca Arménio ter estado muito bem colocado para vir a ser eleito Papa no conclave que se realizou em 1958 por ocasião da morte de Pio XII.
O conclave é a assembleia magna de cardeais que se reúne depois da morte de um Papa para eleger o seu sucessor. Só os cardeais é que podem eleger o Papa mas, por sua vez, foram os Papas anteriores que escolheram e nomearam os cardeais. As regras de funcionamento de um conclave são bastante estritas, com os eleitores isolados do exterior até ao seu fim, que ocorrerá previsivelmente com a eleição do novo Papa. A maioria requerida para a eleição é de ⅔ dos votos e os cardeais procedem a sucessivas votações (até 4 por dia) em que se tentam sondar as hipóteses de sucessivos candidatos favoritos (designados por papabili***) em função da evolução dos resultados que eles vão obtendo de uma eleição para outra.
Por causa do rigor das regras, torna-se muito difícil reconstituir posteriormente a evolução dos escrutínios num conclave. Os próprios intervenientes estão obrigados a uma atitude de reserva em relação ao que lá se passou, sob pena de excomunhão, e as notas que eles tomaram e os próprios boletins de voto são queimados após cada votação – é aliás a queima desses papéis que torna o fumo negro na chaminé (abaixo, o fumo branco), informando que ainda não há Papa… Todas as narrativas do que poderá ter sucedido num conclave costumam assentar em conjecturas, deduções e em alguns episódios pontuais que alguns dos participantes venham a deixar escapar…
No conclave de 1958, não apareceu nenhum papabile*** que conseguisse congregar os ⅔ de votos necessários para a sua eleição nas primeiras eleições e os cardeais partiram na busca de soluções mais improváveis de entre os quais parece que a disputa final foi entre o referido cardeal Agagianian e o cardeal Roncalli, que veio a ser eleito e a tomar o nome de João XXIII (abaixo, 1881-1963). Muito mais tarde, em visita aos seminaristas do colégio arménio de Roma, este último terá comentado: Não sabem que o vosso cardeal e eu organizámos uma espécie de dueto durante o conclave de Outubro passado? Os nossos dois nomes alternavam-se, subindo e descendo como grãos-de-bico em água a ferver…
Para os que gostam de especulações históricas, eis aqui uma bem interessante, parecida com a do enredo de As Sandálias do Pescador: a de imaginar qual teria sido o impacto da eleição em 1958 de um Papa originário de uma das Igrejas orientais, ainda para mais possuindo a cidadania soviética… Sendo o Papa o último dos soberanos absolutos que não tem de prestar contas dos seus actos a ninguém (pelo menos, na Terra…), não tenho dúvidas que as diferenças de personalidade teriam provocado uma evolução diferente no que diz respeito aos assuntos religiosos do próprio Vaticano. Mas, dado o seu diminuto peso específico no quadro geoestratégico da época, creio nada de substancial se teria alterado em termos mundiais…
* A Igreja Greco-Católica Ucraniana respeita o ritual ortodoxo (bizantino) mas integra-se e respeita a hierarquia do Vaticano.
** O mesmo acontece com a Igreja Católica Arménia, que também tem um ritual próprio (arménio), mas que também se integra e respeita a hierarquia do Vaticano.
*** Papabile no singular e papabili no plural, poder-se-ia traduzir para um português não muito feliz como papável e papáveis.
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