02 junho 2020

⅔ DE PUBLICIDADE E ⅓ DE PROPAGANDA

Para que não se reconstrua o passado como ele não foi, atentemos nesta página do Diário de Lisboa de há precisamente quarenta anos, dominado por um discurso (não comentado) de Álvaro Cunhal num ignoto evento do PCP (a Conferência sobre «Portugal e o Mercado Comum»...), preenchido na parte restante por publicidade do Banco Português do Atlântico. Vale a pena ler o conteúdo da «notícia» mais abaixo, mas com a consciência de que os líderes do PS (Mário Soares), PSD (Sá Carneiro) ou CDS (Freitas do Amaral) nunca tiveram oportunidade depois de 1974 de apareceram nas páginas deste jornal com a mesma mais ampla liberdade dissertativa de que Cunhal abaixo usufrui. 
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«A Aliança Reaccionária apodrece e o Governo Sá Carneiro/Freitas do Amaral perde terreno e caminha para a derrota» - esta a opinião de Álvaro Cunhal expressa sábado à noite no Palácio de Cristal, durante a sessão de encerramento da Conferência sobre «Portugal e o Mercado Comum» promovida pelo PCP.
Justificando aquela ideia o dirigente comunista considerou que o Governo tem sido «combatido pela poderosa vaga da luta popular e contrariado pelo funcionamento das instituições», que têm fracassado as suas «sucessivas e miseráveis golpaças», que as suas «leis subversivas» têm sido declaradas inconstitucionais, que a nível externo tem havido fiasco atrás de fiasco e que a AD está «roída por contradições na sua frágil maioria na AR» e «envolvida em casos de corrupção, escândalos e moralidades que tocam as altas instâncias do PPD e do CDS».
Perante esta situação Álvaro Cunhal afirmou que, «no quadro das instituições e da legalidade democrática, tudo devemos fazer para que antes das próximas eleições para a AR, Sá Carneiro vá para a rua». Mas se não for para a rua – acentuou - até às eleições, «é necessário que vá para a rua com o resultado das eleições». Temos de derrubar a reacção e colocá-la novamente em minoria na AR – acrescentou o secretário-geral do PCP, considerando que «nos meses que estamos a atravessar é a vida ou a morte da democracia que está em jogo». No seguimento desta afirmação Álvaro Cunhal apelou a todos os presentes – o pavilhão não registava a enchente de outras alturas, apesar do momento político que atravessamos – para a unidade «designadamente de comunistas e socialistas».
Na primeira parte da sua intervenção o dirigente do PCP abordou o problema da integração de Portugal no Mercado Comum , apontando múltiplos aspectos que demonstram que a integração «seria verdadeiramente desastrosa para a agricultura, silvicultura e pecuária, tal como o seria para a indústria» do nosso país. Neste sentido, Álvaro Cunhal considerou que a «economia portuguesa não está em condições de ser integrada» pelo atraso em que nos encontramos relativamente aos países do Mercado Comum. «A integração rápida e completa como proclama Freitas do Amaral seria oferecer a economia portuguesa desarmada à ofensiva de conquista e submissão dos monopólios do Mercado Comum» - frisou.
Depois de rebater os principais argumentos dos «propagandistas da integração», Álvaro Cunhal sublinhou que com ela «as forças reaccionárias não pretendem tão pouco (ao contrário do que dizem) a defesa e consolidação do regime democrático». O que procuram, acrescentou, no Mercado Comum, «são apoios e ajudas para levarem a cabo a sua operação anticonstitucional e subversiva , apoios e ajudas não para defender, mas para liquidar o regime democrático, para liquidar Portugal de Abril e as suas conquistas».
Recordando que «quando com o PS, começou a operação Mercado Comum contra as conquistas de Abril, gritava-se a Europa connosco», o secretário-geral do PCP disse que agora o que se grita é que «Portugal está com a Europa», pronto a dar-lhe a sua posição estratégica, «desde que a “Europa” ajude a reacção portuguesa a destruir Portugal de Abril». Concluindo que, nestes termos, a integração se torna «uma sórdida negociata», Álvaro Cunhal diria a seguir que «a ofensiva furiosa e brutal, inconstitucional e subversiva do Governo da Aliança Reaccionária contra a Reforma Agrária, as nacionalizações e os direitos e liberdades dos trabalhadores põe bem a nu o que significa para a reacção harmonizar as estruturas da economia portuguesa com as estruturas do Mercado Comum».

A propósito do agravamento da exploração dos trabalhadores portugueses como consequência da integração, o dirigente comunista disse que «Portugal não pode aceitar ser um país de recrutamento e exploração de um novo tipo de escravos pelos colossos capitalistas das multinacionais europeias». E terminou realçando a existência de uma alternativa: uma política verdadeiramente nacional, democrática e popular. Como exemplo apontou a «adopção de uma política que impulsione as várias formações económicas», e a necessidade de um «relançamento corajoso, firme e sem interrupções, dos grandes projectos nacionais, como o plano siderúrgico nacional, o aproveitamento do ferro de Moncorvo, das pirites alentejanas, e dos sienitos do Algarve, a Barragem do Alqueva, os projectos da Cova da Beira e do Vale do Mondego». No fim de contas, acentuou, «uma política que impeça o regresso à exploração do capitalismo monopolista, a uma tenebrosa ditadura dos grupos monopolistas e dos latifundiários e que assegure o prosseguimento do Portugal livre, democrático e independente que corresponde inteiramente aos interesses, às aspirações e aos objectivos do povo português».
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Visto a esta distância, percebe-se hoje como estes discursos eram uma colecção de vacuidades. O PCP opunha-se à entrada de Portugal para a CEE porque, do outro lado, estava o bloco soviético. Tive a atenção de sublinhar na notícia aquilo que o PCP então propunha como alternativa à opção pela adesão europeia, desde que aquilo que  propusesse se revestisse de algum aspecto de concreto. E, pelos padrões actuais da política, aquilo que Álvaro Cunhal então dizia é agora tão inane (cadê o financiamento para tanto investimento?), que bem posso imaginá-lo repetido por Jorge Coelho na Circulatura do Quadrado (...não é um elogio, nem para Álvaro Cunhal, nem para Jorge Coelho). A política tornou-se muito mais exigente. Como aconteceria com os grandes ídolos de futebol daquela época - Alves, Oliveira, Humberto Coelho - também os grandes craques da política de então hoje não passariam de jogadores medianos. 

4 comentários:

  1. Caro A. Teixeira,

    As criticas de Cunhal a integracao Portuguesa no Mercado Comum foram certeiras. Foram e permanencem extraordinariamente relevantes para o interesse nacional na CEE/UE.
    A distancia de 40 anos, desafio-o a encontrar uma mao cheia de analises por parte de um politico portugues tao certeiras e premonitorias sobre uma area de economia politica tao fundamental para Portugal.
    Quanto aos seus sublinhados amarelos, envelheceram muito pior, mas mais porque ele se concentrou na especializacao economica de Portugal a data, em vez de arriscar a listar areas de especializacao economica para onde canalizar investimento publico (e protecionismo Estatal) mais produtivas e dependentes de trabalho especializado - largamente inexpressivas no Portugal de ha 40 anos e ainda hoje em larga medida em grande falta.
    Seria uma lista arriscada, sucede porem que e esta a forma como todas as economias industriais ditas "avancadas" historicamente usaram para se enriquecer (e.g. deixam de minerar ferro ou petroleo para manufacturar automoveis, componentes plasticos para avioes ou material cirurgico etc...). Neste sentido tem toda a razao em as classificar de propostas profundamente mediocres.
    Quanto ao "cade o investimento?" ai, creio que labora em erro. Uma economia nacional nao e simplesmente uma economia familiar em ponto grande.
    Um Estado soberano (como ainda era entao Portugal) com moeda propria, financia-se a si proprio e nunca pode ir a falencia - no limite, se o auto-financiamento for excessivamente alem da capacidade produtiva, entra em hiper-inflacao e falhas de provisionamento.

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    1. Caro Lowlander

      Por esta vez, estamos completamente em desacordo. As críticas de Cunhal eram muito semelhantes a múltiplas análises que se faziam naquela mesma época a respeito dos perigos que se correriam no caso de uma integração demasiado apressada de Portugal na CEE. Daí o cuidado das equipas portugueses encarregues das negociações em Bruxelas em criar períodos de transição e regimes excepcionais para vários sectores débeis da economia portuguesa.

      A vantagem da argumentação política de Cunhal é que não tinha de fazer parte da solução, só estava interessado em fazer parte do problema. A nossa localização geográfica até o dispensava do frete - e do ridículo - de ter que defender uma hipotética adesão à «CEE alternativa» que dava pelo nome de Comecon. E é assim que pode empregar aquele slogan da «política verdadeiramente nacional, democrática e popular».

      O slogan de Cunhal é muito mais do que o «meu sublinhado amarelo», como o designa. As tais passagens que, segundo a sua caridosa apreciação, «envelheceram muito pior» são os exemplos escolhidos por Cunhal de uma alternativa à opção pela integração europeia dos restantes grandes partidos portugueses (acessoriamente, também o PS, os tais da unidade, «designadamente de comunistas e socialistas»).

      E como alternativa, seja por que perspectiva a encaremos (estratégica, económica), aquela lista nem sequer envelheceu mal, aquela lista já não era nada na época em que foi brandida. Parece uma lista dos empreendimentos de um plano quinquenal do Estaline. Mais do que isso, hoje percebe-se claramente que eram apenas objectos de arremesso político. Tome-se o exemplo da barragem do Alqueva, lá mencionada - andou pelo discurso do PCP durante décadas, foi construída, completada em 2004, e no PCP deixou-se de falar do assunto...

      A verdade é que, 34 anos depois da nossa adesão, a posição do PCP a respeito da União Europeia é a de uma enguia besuntada de manteiga: farta-se de dizer mal mas nada de promover e encabeçar um «movimento patriótico, democrático e popular» que promova a nossa saída da UE... Se calhar, Álvaro Cunhal não estava assim tão «certo e premonitório» quanto isso. Uma coisa é certa: sobre a URSS é que ele não foi nada premonitório...

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  2. Caro A. Teixeira,

    Sobre o desacordo total ja suspeitava... dai ter hesitado uns dias em comentar... (:-D)
    Pouco havera a acrescentar. Apenas umas notas rapidas e uma pergunta:
    - Que a critica de Cunhal e do PCP esta besuntada em imenso cinismo politico e meridianamente obvio, mas isso nao lhe retira substancia. Explico-me: nao e por os EUA terem um mega sistema de vigilancia electronica dos seus cidadaos (e estrangeiros) que as denuncias que eles fazem ao sistema de vigilancia Chines deixam de ser menos verdadeiras ou informadas... apenas significa que na realidade essas denuncias sao, no amago, queixas pueris de que outros estao "a brincar com os meus brinquedos" - os EUA preferiam brincar sozinhos.
    - Ora neste caso, o facto do Cunhal ter por objective ultimo fazer de Portugal um Estado Vassalo do Imperio Sovietico nao invalida que estivesse incorrecto acerca das intencoes ultimas do "Projecto Europeu" - alias, significa que falava com conhecimento de causa...
    - Errata: em vez de "envelheceram muito pior" leia-se "sao imortais" - no sentido em que, aquilo que nasce morto nao pode morrer :-D

    - Mais seriamente: Um importante mas. O seu comentario faz-me aperceber que posso estar a comentar com base num equivoco ou falha grave num importante pressuposto:
    Uma das bases do meu comentario e a nocao pessoal de que, nao houve outro partido com assento parlamentar relevante (para la de uma mota ou va la um taxi...) em Portugal a criticar tao veementemente como o PCP a "opcao Europeia" desde o inicio - estou errado?
    E o pressuposto de que, se assim era no parlamento entao poucos grupos de pressao existiriam a opor-se a integracao Europeia ate porque prometia (e cumpriu por alguns anos) fortes injeccoes de capital estrangeiro na economia sem contrapartidas excessivas. Mas nao estudei.

    O A. Teixeira, que tem mais bagagem historica que eu (circunflexao) e e mais lido em historia contemporanea sugere logo ao inicio que esta critica do Cunhal era na realidade comum ha 40 anos. Pode elaborar por favor? Tambem nao quero ser estupido a vida inteira.

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    1. Caro Lowlander

      Esta já não será a primeira vez em que pretende levar o que é discutido à volta de um poste muito para além do que era a percebida intenção inicial - no caso, a atitude a atitude preferencial e mesmo deferencial e reverencial do Diário de Lisboa em 1980 a tudo o que Cunhal dizia. Cunhal até poderia ter falado sobre todo um outro tema que a denúncia do meu poste é que ele teria uma página toda só para si e sem contraditório.

      - Eu concordo que a crítica de Cunhal (e a eventual crítica dos EUA no exemplo que nos dá) têm substância. O problema, a meu ver, é que não vale a pena testá-las, às críticas, quanto à consistência, porque ambos sabemos de antemão que as opiniões vão dar uma volta de 180º se as circunstâncias se inverterem. Para mim os princípios valem: eu não gosto que se criem incidentes de suspeição das arbitragens apenas quando é o nosso clube a sair prejudicado...

      - Finalmente, parece-me que está a fazer uma embalagem "vidal sassoon" (shampoo e amaciador, os dois num só...) de duas atitudes distintas: adoptar a opção europeia CEE e ser um entusiasta por ela, para trazer para Portugal os «grandes capitais», como Cunhal atemorizava, embrulhando tudo.

      a) Quanto à opção CEE, a geografia não nos deixava grandes opções; aliás, na Europa Ocidental, só a Suíça e a Noruega optaram por outro percurso que não a integração e havemos de concordar que ambos os países dispõem de uma robustez económica que dispensa a evocação da «potencialidade» da «riquezas dos sienitos algarvios» (uma treta!). Como já disse antes, Cunhal podia ser crítico porque não fazia, nem queria fazer parte da solução e podia assim descrever sem que se rissem dele uma espécie de Albânia - muito patriótica! - isolada e desalinhada no meio de um dos dois blocos europeus.

      b) As críticas não eram comuns, porque inconvenientes, mas os receios eram mais do que muitos e nessa mesma altura em que Cunhal dizia estas coisas. Num debate promovido pela Comissão de Planeamento da Região Centro (CPRC) em Coimbra, por exemplo, concluía-se que «com a entrada de Portugal na CEE aumentariam os riscos para as zonas mais desfavorecidas do país». Presentes, entre outros, Eurico de Melo, ministro da Administração Interna do governo AD e dois secretários de Estado do mesmo governo, entre uma data de gente de direita...e da esquerda democrática. O presidente da CPRC que promove o debate é Manuel Lopes Porto, futuro eurodeputado (1989-99) eleito pelo PSD. Mais «bonito» ainda: o jornal que notícia esta visão tão precavida do "Portugal na CEE" é o mesmo Diário de Lisboa (6/6/1980) que transcreveu tão meticulosamente os pensamentos do Dr. Cunhal. Não lhe concedeu (às conclusões do debate), foi todo um terço de página... Mas posso mandar-lhe uma cópia da notícia se me mandar um endereço.

      Não são verdadeiramente críticas à adesão à CEE. Mas não é o euroentusiasmo descrito por Cunhal. Uma boa atitude nestas circunstâncias é não se pôr à espera do comboio na paragem do autocarro...

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