31 outubro 2016

OS PIRATAS E A PIRATARIA DA FORMAÇÃO DA OPINIÃO

Porque se trata de um país tão remoto quanto a Islândia, há um punhado de semanas eu nem imaginava que um partido conhecido por Partido Pirata mostrava hipóteses de ganhar as próximas eleições legislativas islandesas. Mais, se em vez de semanas, eu conseguisse o distanciamento de regressar alguns anos ao passado, eu consideraria impensável que uma formação política com uma tal designação pudesse ter mais ambições do que exprimir o seu protesto anti-sistema. E contudo, depois de alcançar 14,5% dos votos nas eleições legislativas de ontem, triplicando a votação anterior, a revista The Economist consegue explicar-nos, ainda nesse mesmo dia (abaixo), quanto esse Partido Pirata sofrera uma grande derrota... contra as sondagens. Estivesse-se na Guerra Fria e tratasse-se de um Partido Comunista Islandês e os 14,5% deixariam os redactores da The Economist cheios de comichões. Aqui e ali apercebe-se cada vez mais que esta coisa de deixar as pessoas continuar a votar está a tornar-se cada vez mais incómoda... E por isso cada vez irá ser mais necessário defender a Democracia - a genuína.

«HALLOWEEN 2016»

Entendam-me: eu até gosto de ver estes fenómenos culturais da globalização, mas aprecio-os mais quando eles se exprimem em toda a pujança da sua reciprocidade. Acho ridículo, mas esforço-me por compreender, a desdita daquelas dançarinas brasileiras, tão cheias de ritmo quanto transidas de frio, que enfeitam os nossos corsos de carnaval e que bem se esforçam por se sacudir ao som de uma celebração - agora diz-se um evento - que foi evidentemente concebida para outras temperaturas. Mas enfim, como é com o povo irmão, aplica-se ao disparate a benevolência dos casos de família. Agora, que eu saiba, aos norte-americanos não os costumo encontrar na noite da consoada, e por isso não são cá da família. Não estou para ser tão disponível com os costumes norte-americanos.
A pretexto de uma coisa chamada Halloween, aparecem-me uns putos a bater à porta aos dizeres de doçura ou travessura. É como li no comentário de alguém, ontem: o Halloween tem tanto a ver connosco como os Santos Populares têm a ver com os americanos. Se querem que adoptemos os deles, porque não experimentam eles também os nossos costumes e quando se chegar a Junho, por exemplo, fecham Times Square (abaixo) e organizam ali um arraial enfeitados de manjericos e com sardinha assada. Depois digam-me se continuam na disposição de manter - ou se preferem reconverter - o McDonalds ali da esquerda... Experimentem isso, que eu aí de bom grado e reciprocamente passo a arrecadar algumas guloseimas nestas alturas para os putos chatos do Halloween...

AS RAZÕES HISTÓRICAS PARA QUE AS REPUTAÇÕES DOS «SCHÄUBLES» SEJAM SEMPRE DE DESCONFIAR

Na semana passada referi-me aqui no Herdeiro de Aécio a dois casus belli que os norte-americanos deliberadamente ignoraram na segunda quinzena de Outubro de 1941, evitando os pretextos do ataque (e afundamento) de dois dos seus navios de guerra por submarinos alemães para se passarem a confrontar abertamente com a Alemanha (e a Itália). Hoje passa a efeméride (75 anos) de um desses dois incidentes, precisamente o mais grave, o afundamento do USS Reuben James, o que é um belo pretexto para que falemos da carreira do comandante do submarino alemão que cometeu a proeza, o capitão-tenente Erich Topp. Erich Topp conta-se entre um dos mais reputados comandantes de submarinos da Kriegsmarine durante a Segunda Guerra Mundial: considerando o ranking com a tonelagem dos navios afundados pelos submarinos que comandaram, Topp classificar-se-á em terceiro lugar e é, simultaneamente, um dos oficiais mais novos da lista. Curiosamente não terá começado a sua carreira da melhor forma, porque os seus dois primeiros afundamentos no Verão de 1940 foram de navios suecos (um país que era e permanecerá neutral até ao fim do conflito). Talvez a ponderação não fosse o seu forte... Mas o resultado da sua actuação nos dois anos que se seguiram àquela estreia destacam-no muito acima dos seus pares. Tornado numa das referências da arma e do ramo, a sua existência foi preservada recatadamente em funções de instrução no Báltico. a partir de 1942. Em 1945, com o fim da Guerra e durante um hiato de 13 anos, Topp reconverteu-se à vida civil tendo-se formado e trabalhado como arquitecto. Em 1958 reingressou na Marinha de Guerra da República Federal Alemã (Bundesmarine) com a patente de Capitão de Mar e Guerra, sendo depois promovido a Comodoro e Contra-Almirante (acima, à direita). Um dos nossos, no conceito da Guerra Fria. Desempenhou funções na NATO e esteve colocado como adido em Washington. Passou à reserva em 1969, com 55 anos. Foi trabalhar com a HDW, uma construtora naval de Kiel com vocação para a área militar. É um daqueles alemães da sua geração em que é inegável o reconhecimento do mérito pessoal e profissional, mas sem se poder descartar o desconforto quando se sabe que se trata de um militante do partido nazi desde 1933 e membro das SS desde 1934... Wolfgang Schäuble tinha dois anos e meio quando a Guerra acabou e é improvável que o pai, qual benfiquista furioso, também o tivesse feito membro do partido nazi desde pequenino... Mas, durante décadas, os exemplos como este de Erich Topp abundaram, gente muito capaz mas politicamente muito pouco confiável, conferindo aquela impressão que se perpetua até hoje, que diante de qualquer alemão de destaque é perigoso ir vasculhar-lhe o passado, porque há uma alta probabilidade de aparecer uma qualquer história sórdida de nazismo.

30 outubro 2016

«NÃO VENHAS TARDE»

Já se tornaram, mais do que cansativos, caricatos estes recorrentes vai-e-vens de Rui Rio. Fazem lembrar a letra do velhinho fado de Carlos Ramos, mais do que o apelo para que ele (Rui Rio) não viesse tarde, quando é rematado pelo temor dos dois versos finais: »Que eu chegue cedo algum dia, e seja tarde demais!»

29 outubro 2016

«CARA A LA SOMBRA, ¡ Y CON LA CAMISA VIEJA !»

Há precisamente 63 anos o regime franquista enchia um estádio com falangistas para cantarem o hino Cara al Sol dedicando-o a Francisco Franco (abaixo). Passados todos estes anos, o pressuposto do homem providencial parece persistir e dominar a Espanha conservadora como acontecia nesses tempos maduros do franquismo, pois a resolução de uma arrastada crise política, com uma obrigatória abertura ao centro moderado, nunca pareceu poder passar - nem valia a pena sugerir o assunto... - pela substituição da pessoa de Mariano Rajoy, apesar dos variados escândalos que o tinham vindo a rodear.

Em contraste, a Espanha constitucional tem o precedente de Adolfo Suárez, que se demitiu da chefia do governo em Janeiro de 1981. Mas o actual PP, Mariano Rajoy e também o seu antecessor José Maria Aznar representam uma direita tão retrógrada, que nem me parecem gentes dispostas a reclamarem-se herdeiros de quem procedeu a Transição (não o são, de facto). Resignaram-se a aceitá-la e há até momentos em que quase se fazem passar por suas vítimas...

O «BRIN» ANTES DO «BREXIT»

Há cinquenta anos (28 de Outubro de 1966) o general de Gaulle dava (mais) uma das suas solenes conferências de imprensa. Os temas - que, recorde-se, haviam sido preparados de antemão com os jornalistas que aparentemente colocavam as questões - foram predominantemente vocacionados para a política externa mas, mesmo assim, extremamente variados: a independência da França, tanto em relação ao bloco Ocidental quanto ao de Leste, a Guerra do Vietname e a política norte-americana para o Sudeste asiático, a admissão do Reino Unido na Comunidade Europeia, a nova política da França em relação à NATO, a force de frappe (nuclear) francesa, o destino da colónia francesa de Djibuti, o comportamento da economia francesa e as reacções da bolsa de Paris, finalmente as eleições legislativas que teriam lugar na Primavera do ano seguinte (Março de 1967). A dissertação (disfarçada) de de Gaulle tomou bem quase uma hora e meia (veja-se abaixo a transmissão integral) e os jornais do dia seguinte - mesmo os portugueses - dedicavam um extenso espaço das suas páginas a descodificá-la - porque nem o Ricardo Costa, nem a SIC ainda eram nascidos. Sobretudo, a sua extensão merecia uma versão sintética, algo que já não é assim tão pertinente nos dias que correm - raramente há acontecimentos onde o protagonista pontifique por hora e meia, com excepção de um palco ou de um campo de futebol... Entre as conclusões mais marcantes destacava-se a convicção mostrada por de Gaulle de que os britânicos adoptavam uma política externa que se limitava a ser uma extensão europeia dos interesses norte-americanos; por ele, manter-se-ia o veto à admissão do Reino Unido na Comunidade Europeia. Meio século depois o episódio torna-se irónico. Menos conhecido, mas não menos irónico, é um comentário proferido por de Gaulle a respeito do comportamento das bolsas, « Em 1962, a bolsa estava excessivamente boa, em 1966 está excessivamente má. Mas, sabem, a política da França não se faz a gosto do freguês.» (« En 1962, la Bourse était exagérément bonne ; en 1966, elle est exagérément mauvaise. Mais, vous savez, la politique de la France ne se fait pas à la corbeille.») Só lá faltava tentar impressionar uma raposa velha como de Gaulle com uma versão precoce das opiniões políticas de Os Mercados. Em França isso não conta nada...

28 outubro 2016

PELO CENTENÁRIO DA MORTE DE OSWALD BOELCKE

Oswald Boelcke (1891-1916) foi, com Max Immelmann (1890-1916), um dos dois primeiros ases da aviação alemã da Primeira Guerra Mundial. Receberam ambos a mais alta condecoração prussiana, a Pour Le Mérite (que veio a ser displicentemente designada depois por Blauer Max entre os pilotos) no mesmo dia. Foram os percursores daquele que veio a ser o mais famoso piloto de guerra daquele conflito, o barão Vermelho, Manfred von Richthoffen (1892-1918). Immelmann e Boelcke morreram no mesmo ano, 1916. Durante o primeiro semestre desse ano houve uma disputa entre os dois quanto ao número de aviões inimigos abatidos. Quando Max Immelmann morreu em combate em 18 de Junho de 1916, havia conseguido alcançar 15 vitórias confirmadas e foram as próprias autoridades alemãs que impediram Oswald Boelcke de voar missões de combate nos tempos mais próximos, considerado o impacto conjugado das mortes dos dois ases em termos propagandísticos. O estilo dos dois homens diferenciava-os mas também os complementava: Immelmann era um virtuoso da acrobacia aérea, ainda hoje a manobra de Immelmann o recorda; Boelcke era um tático do combate aéreo com intenções pedagógicas, que compilou metodicamente os seus conhecimentos num manual que ficou conhecido por Dicta Boelcke. Quando morreu, há precisamente cem anos, 28 de Outubro de 1916, os quatro meses de intensa actividade nos ares que haviam decorrido desde Junho, haviam-no feito distanciar-se enormemente das proezas de Immelmann: Boelcke contava com 40 vitórias aéreas no dia em que morreu. Manfred von Richthoffen era um dos pilotos que o acompanhava na patrulha, mas era ainda apenas um maçarico cuja primeira vitória ocorrera apenas um mês antes - abatera 5 aviões até então. Como se pode ver pela pequena história ilustrada da imagem, Oswald Boelcke morreu em combate mas não foi abatido por um inimigo: a asa superior do seu avião foi atingida acidentalmente pelo trem de aterragem do avião de um dos seus camaradas (Erwin Böhme) e o avião despenhou-se, causando a sua morte. Boelcke tinha 25 anos, a mesma idade de Immelmann quando este morreu, e também a mesma idade que Richthoffen terá por ocasião da sua morte nas mesmas circunstâncias em 21 de Abril de 1918.

TV NOSTALGIA - 89


Quando a RTP se estreou a emitir no período da hora de almoço (12:45-14.30), nos finais de Maio de 1970, as duas séries nucleares da emissão, que se alternavam diariamente eram Ele & Ela (He & She) e Uma Mãe para Eddie (The Courtship of Eddie's father). Para os revivalistas mais rigorosos estes genéricos têm o inconveniente de serem a cores.

27 outubro 2016

E AS PERSPECTIVAS DAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NORTE-AMERICANAS... (5)

Quem tem acompanhado o mapa dos Estados Unidos que aqui se tem publicado a ilustrar como se apresentam as perspectivas das próximas eleições presidenciais nos Estados Unidos aperceber-se-á que o número de estados coloridos a cinzento (indecisos) aumentou desde a última vez. Estados em que a vantagem parecia substantiva (superior a 3%) para um dos candidatos no cálculo do conjunto das sondagens, tornaram-se mais disputados. Liderando, Hillary Clinton foi a mais penalizada com essa recessão nas intenções de voto (Florida, Ohio, Carolina do Norte ou Nevada), mas o fenómeno também se propagou a estados que estavam a cair para Donald Trump, como a Georgia ou o Alaska (que não aparece neste mapa). Um caso marginal mas curioso é o que estará a ocorrer no estado do Utah, onde a maioria da população é mórmon: na ausência de se disporem a escolher entre um candidato que é uma mulher e um outro que é um mulherengo, os eleitores tradicionalmente conservadores daquele estado estão a anunciar optar em cada vez maior número por um terceiro candidato de última hora chamado Evan McMullin. Para já superou Hillary como rival mais bem colocado para roubar a vitória a Trump no Utah. E o destaque já se propagou, embora com menos exuberância, ao estado vizinho do Idaho. Se acontecer que um terceiro candidato presidencial vença nalgum estado, será algo inusitado e que não acontece desde 1968. No computo global, nas contas que continuo elaborando e de que aqui tenho dado conta, Hillary Clinton conta ainda com 273 delegados virtuais, o que representa ainda a maioria absoluta e a vitória, mas representa um recuo de 39 delegados desde a minha última contagem de há 11 dias; Donald Trump também perdeu 19 delegados, agora tem 161 delegados sólidos e o que mais que duplicou foram as dúvidas, de 46 para 104, representantes dos agora oito estados considerados indecisos. Será um bom motivo para que nos estampidos que regem o mainstream da comunicação social norte-americana haja agora uma oportuna reviravolta na sinusoide que já se preparava para anunciar a consagração eleitoral de Hillary Clinton. Ainda bem porque seria um anúncio excessivo. Faltam pouco menos de duas semanas para o dia das eleições e já se percebeu que a candidata democrata não é pessoa que cative eleitorado, é mais o seu rival que o afugenta, e por isso a vitória, que permanece muito provável, não deverá, ainda assim, ser esmagadora.
Porém, é engraçado como simultaneamente com as movimentações maciças da opinião publicada, o volume de informação à volta das eleições presidenciais norte-americanas se torna tao pletórico que se pode elaborar sobre o cenário político que se quiser. Ainda hoje consegui ler em defesa da tese de um hipotético regresso de Trump ao jogo que «As sondagens apontam uma nova aproximação de Trump a HC, agora na margem dos 3/4%. Trump volta a estar à frente da HC na Florida por 2%». Por acaso e no que diz respeito ao disputadíssimo estado da Florida, só nos últimos nove dias foram publicadas nada menos que 7 sondagens: e Hillary Clinton (HC) aparece em 5 delas em vantagem, noutra registava-se um empate, e só na sondagem da Bloomberg a vantagem ia para... DT (Donald Trump). Há que constatar quanto foi pontaria a do nosso opinador para só ter dado por essa. Com tal riqueza de informação, consegue-se construir um ecossistema compatível com as nossa convicções, qual aquário para peixes tropicais e das cores que nós quisermos. E opina-se de acordo com isso até ao desmoronar das ilusões. Ainda ontem um colunista do Observador recordava, a propósito de um texto seu, um episódio que eu desconhecia, ocorrido quando da cobertura pela Fox News das eleições presidenciais de há quatro anos. Quando se anunciou a vitória de Obama no estado do Ohio, o resultado equivalia à confirmação definitiva da sua reeleição. Em estúdio, parecia que algo colapsara e ficou tudo com um ar de não saber o que fazer a seguir.

Mas cedo a descrição a quem terá assistido à cena em directo: «Já há várias semanas que toda a gente sabia que Obama era o muito provável vencedor. (...) Mas quem ia seguindo os órgãos de comunicação republicanos percebia que eles sempre davam como adquirida a vitória de Mitt Romney. Muitas vezes faziam debates discutindo se Obama ainda tinha algumas hipóteses de ganhar. Basicamente, viviam no seu mundo. Apenas olhavam para as sondagens feitas pelos órgãos de comunicação alinhados à direita e todas as que eram organizadas ou encomendadas pelos outros órgãos, como, por exemplo, o New York Times, a CNN ou a NBC, eram vistas como uma tentativa de manipulação de informação.» A culminar o embaraço, «alguns dos comentadores entraram em estado de negação. Karl Rove, que tinha sido o grande arquitecto das vitórias eleitorais de George Bush, chegou mesmo a desafiar os analistas da Fox News, argumentando que estavam a fazer mal as contas e que tinham sido precipitados a declarar a vitória de Obama. A coisa foi tão ridícula que a pivot teve de ir em directo falar com os analistas para estes poderem responder a Karl Rove.» Inconformado e mesmo depois das explicações, como um último moicano, Karl Rove chegou a ir buscar o episódio da Florida de 2000...

Ou seja: engana-se quem deduzir que, com o aproximar da data das eleições, as opiniões dos analistas tenham tendência para confluir num mesmo desfecho. Pode não acontecer. Quanto muito, torna-se mais fácil identificar quais serão as opiniões mais delirantes. Mas os verdadeiros desfechos parece-me que continuarão reservados para a noite eleitoral.

ECLIPSES DE PRIMEIRA E ECLIPSES DE SEGUNDA

Quando se consulta um calendário com as datas dos próximos eclipses descobre-se que houve um solar, anular, espectacular, visível em toda a África equatorial há menos de dois meses. E que irá haver outro, do mesmo tipo, também no hemisfério Sul, daqui por quatro meses, visível em todo o seu esplendor no sul do Chile e da Argentina, sobre o Atlântico e terminando em Angola. Pois bem, um site chamado ZAP.aeiou (que eu não sei se é português se brasileiro) ignora tudo isso para se dedicar a fazer eco à publicidade dada ao eclipse seguinte, a ter lugar seis meses depois, só porque esse vai ocorrer nos Estados Unidos. É compreensível, e mesmo natural, que os acontecimentos políticos ocorridos nos países mais poderosos sejam noticiados com maior destaque do que nos secundários, mas que essa segregação se aplique também a fenómenos como os astronómicos é, não apenas um atestado de incompetência e preguiça de quem produz a informação, como uma exibição de submissão intelectual ao que vem da América a roçar o ridículo.

26 outubro 2016

OBVIAMENTE

O sucesso da campanha para abandonar a União Europeia sugere que, para vastos sectores do eleitorado, as identidades e culturas nacionais são mais importantes que o bom comportamento da economia. (Daniele Albertazzi, Universidade de Birmingham) Só quando as ouvimos bem estruturadas é que nos apercebemos do quanto é necessário que sejam constatadas as verdades óbvias.

O PÚBLICO E OS PRIVADOS

Depois da embaraçosa divulgação pela Wikileaks de alguns discursos de Hillary Clinton para um selecto auditório na Goldman Sachs, cujo teor não é muito conforme às versões aguadas que os estados maiores da sua imagem imaginam que o eleitorado preferirá ouvir, agora calhou a vez a Theresa May ser escutada a proferir uma conferência para a mesma organização em Maio passado, a propósito das suas perspectivas sobre o Brexit, perspectivas que não se encaixam com a versão pública que tem vindo a assumir depois de ter assumido o cargo de primeira ministra. Para além da coincidência irrelevante de se tratar de duas mulheres em cargos de topo, realce-se a outra coincidência, essa bastante mais preocupante, a da diferença dos seus discursos quando eles se realizam indoors e para uma audiência seleccionada e as versões outdoors para o povo at large, que, por acaso, é quem as elege apesar de se saber que as campanhas eleitorais são financiadas predominantemente pelos primeiros. A franqueza (e a de Donald Trump é um susto) também pode - e deve - ser um atributo político...

OS ESPIÕES TAMBÉM PODEM TER AMIGOS E A ALEMANHA NEM SEMPRE É UM ESTADO DE DIREITO

Discreto e curiosíssimo este anúncio publicado numa página interior (22) da edição do Diário de Lisboa de 18 de Outubro de 1968. O major Silva Pais (o director da PIDE) e um grupo de amigos mandam rezar missa pelo eterno descanso do general Horst Wendland, recentemente falecido em Munique. O alemão, grande admirador de Portugal, fora um antigo oficial da Wehrmacht, mas tornara-se num executivo do ramo das informações depois da guerra e ocupava o cargo de subdirector do BND (o serviço de informações da Alemanha Federal) quando do seu suicídio com uma arma de fogo, ocorrido dez dias antes da publicação deste anúncio. É um detalhe que não consta, como seria de esperar, da notícia, mas os amigos portugueses de Wendland também só conheciam então a versão oficial para as causas daquele gesto: Wendland teria ficado despeitado, ofendido e deprimido por ter sido ultrapassado na sucessão ao cargo de director do BND. Outros acontecimentos tornaram essa versão simplista muito menos plausível: algum tempo antes, um desertor checoslovaco chamado Ladislav Bittman* denunciara uma lista de toupeiras do StB (serviços de informação checos) dentro dos serviços alemães e o suicídio de Horst Wendland foi apenas o primeiro de uma lista de acidentes que aconteceram a um sortido de altos funcionários alemães no período de algumas semanas: o almirante Hermann Lüdke, que também se suicidou, mas com uma caçadeira; Hans-Heinrich Schenk do ministério da Economia, que se enforcou; Edeltraud Grapentin, dos serviços de Imprensa federais que, como apropriado para uma senhora, se matou com uma overdose de comprimidos; o coronel Johannes Grimm que, à coronel, se suicidou com um tiro; e Gerhard Böhm, finalmente, do ministério da Defesa, que se afogou no Reno. Os acontecimentos não passaram desapercebidos à imprensa, mas a comissão parlamentar de inquérito formada para os investigar conseguiu a proeza de não descobrir nada(!). De todo o episódio extraíram-se duas grandes conclusões: a) que o aparelho do Estado Federal Alemão estava profundamente infiltrado de espiões (e isso viria a confirmar-se quando em 1974 se veio a descobrir um que até era o confidente mais próximo do próprio chanceler Willy Brandt); b) que esse mesmo aparelho não se ensaiava nada de proceder a execuções extrajudiciais (e isso viria a confirmar-se quando em 1977 os líderes do grupo terrorista Baader-Meinhof apareceram suicidados enquanto presos).
 
* Recorde-se que a invasão soviética da Checoslováquia ocorrera em Agosto de 1968.

25 outubro 2016

O YIN E O YANG DAS REDES SOCIAIS

Pareceram-me muito interessante as reacções à notícia com a revelação da identidade do blogger Miguel Abrantes e as suas relações com Sócrates, que foi publicada na semana passado n'O Sol. Essas reacções valeram muito mais que a notícia porque observando quem reagiu e como reagiu permitiu que se completasse um círculo taoista do Yin e do Yang quando complementadas com as reacções que ocorreram há três anos, por ocasião de outras revelações, essas publicadas na Visão, a respeito da relação de Pedro Passos Coelho com as redes sociais.

Três anos serão uma eternidade em termos do padrão do tempo dos blogues mas apenas um momento fugaz quando em termos de filosofias orientais...

O «VERDE DA CARRIS»

Numa época em que se consagraram e se tornaram moda, as evocações ao amarelo da Carris, permitam-me esta evocação ao seu parente pobre, menos folclórico, o verde da Carris, os autocarros de dois andares que, entrados ao serviço em 1947, foram por três décadas o emblema do transporte rodoviário dentro de Lisboa. Cresci com eles. Impressionavam. Desde logo pelo assustador roncar ritmado dos motores quando se encostavam a nós as paragens onde os aguardávamos, motores em cima dos quais se empoleirava o condutor como se estivesse num aquário, nesses anos em que conduzir era ainda uma forma de os trabalhadores se diferenciarem. A comunicação com o picas (quem? - perguntarão as gerações mais novas), o seu colega que, no interior, estava encarregue de vender e picar os bilhetes, processava-se em código: para arrancar depois de todos os passageiros terem entrado, duas batidas com o alicate dos bilhetes numa das inúmeras superfícies metálicas do autocarro, fossem os varões ou as pegas nas costas dos assentos. Mas era a entrada, à retaguarda e aberta, como se vê na fotografia acima, que lhe conferia toda uma outra personalidade no universo dos autocarros. Aliás, houve outros modelos de autocarros de dois andares cujas portas se fechavam quando em andamento e com isso se perdia todo o carisma da viatura. É fácil de imaginar o que acontecia às horas de ponta, onde o com-jeitinho-há-sempre-espaço-para-mais-um fazia com que se formasse um cacho de pessoas ajoujando o autocarro e adernando-o para trás e para a direita. Assustava mas não era nada de grave, que os autocarros estavam preparados para adernar lateralmente até 35º. Com um roncar ainda mais resfolegante, quase asmático, o autocarro lá partia, como se se tratasse de um navio estivado de forma negligente. Claro que anos e décadas desse tratamento depois se pagavam: tanta fora a carga suportada pela (mais frágil) plataforma traseira que ela começava a ceder e o grau de inclinação em relação à horizontal tornava-se uma boa medida dos anos de serviço e da veterania do autocarro. No caso da fotografia acima, por exemplo, o autocarro terá sido posto ao serviço em 1962/63 e, pela condição da plataforma, a fotografia foi tirada muito poucos anos depois disso, certamente ainda na década de 60.

24 outubro 2016

OS «CASUS BELLI» DE OUTUBRO DE 1941

Casus Belli é uma locução latina, que se traduz pela expressão caso de guerra e que se aplica a propósito de algum facto que, pela gravidade que é atribuída por uma delas, possa vir a provocar uma confrontação declarada, e mesmo violenta, entre duas partes - pessoas, organizações ou países. E embora a locução pudesse ser tratada de forma um pouco equívoca no Oeste protagonizado por Lucky Luke (acima), a verdade é que a diplomacia norte-americana de há 75 anos conhecia-a perfeitamente para os evitar, aos casus belli. No Outono de 1941, a Segunda Guerra Mundial já completara dois anos, alargara-se até, nesse Verão, à União Soviética e à Europa Oriental, mas os Estados Unidos, manifestando as suas simpatias, mantinham a sua neutralidade porque consideravam não se ter deparado ainda com aquilo que considerariam um casus belli capaz de os levar a envolverem-se directamente no conflito com a Alemanha. Em Outubro de 1941 essa atitude foi posta à prova com os incidentes encadeados de dois navios de guerra que realizavam escoltas no Atlântico, o USS Kearny (dia 17) e USS Reuben James (dia 31). Nos dois casos os navios acabaram torpedeados por submarinos alemães depois de preâmbulos em que as versões dos dois lados divergem, no episódio do Kearny (fotografia de cima) com o resultado de 11 mortos e 22 feridos e no episódio do Reuben James, bastante mais grave, com o afundamento do navio e a morte de 115 dos 159 homens da tripulação. As reacções domésticas nos Estados Unidos foram de ultraje, mas as consequências mínimas: de concreto, apenas a militarização da Guarda Costeira. O ritmo da transição para a guerra desejado pela administração Roosevelt seria o mais gradual possível. Vale a pena evocar estes tempos longínquos de há 75 anos atrás, em que os Estados Unidos evitavam a todo o transe mostrar-se diplomaticamente agressivos. Só que, já então, a História não era escrita por eles: os japoneses, ao atacar Pearl Harbor em Dezembro de 1941, terão estragado os desejos e o calendário de Roosevelt, e os Estados Unidos tiveram mesmo que entrar na Guerra. Mesmo assim convém recordar que foi a Alemanha e a Itália que tomaram a iniciativa de declarar a guerra aos Estados Unidos quatro dias depois...

É MAU...

Por um lado é má a substância da notícia, a do antigo primeiro-ministro a dispor-se a entrar numa guerra de palavras com o futuro presidente da Caixa Geral de Depósitos, quiçá querendo potenciar a antipatia gerada pelo ordenado elevado do seu adversário, mas arriscando-se a uma surpresa desagradável, na eventualidade de ter que cobrar a sua reputação: quantos meterão a mão no fogo confiantes de que é Passos Coelho que está a dizer a verdade?...
Por outro lado, a notícia pode ainda tornar-se pior ao ver-se a forma de como é noticiada. A jornalista consegue repetir por duas vezes o mesmo erro em dois parágrafos consecutivos, escrevendo priveligiada. Não só mostra não fazer a mínima ideia de como se escreve a palavra que lhe está na raiz - privilégio - como fica a especulação que o jornal onde trabalha está a esmagar os seus custos de tal forma, que já nem há dinheiro para instalar um banal corrector ortográfico...

23 outubro 2016

A BUSCA PELAS ORIGENS DA CRISE ECONÓMICA, POR CÁ E LÁ POR FORA

Nesta semana que findou, o Financial Times e a The Economist coincidiram na análise a um livro que foi publicado no início deste mês e que se intitula The Innovation Illusion. Parece ser um livro polémico: segundo os autores, a estagnação do crescimento económico que se regista em todo o mundo capitalista deve-se ao próprio sistema. Citando algumas passagens do comentário publicado pela revista inglesa, aquele que fora o motor do desenvolvimento capitalista, a tão mencionada destruição criativa, descrita por Joseph Schumpeter est(ar)á hoje kaput. Com excepção de algumas vedetas, como a Google ou a Amazon, o capitalismo está a envelhecer e a acomodar-se. E a tão culpada regulação excessiva será apenas uma parte ínfima do problema. As causas principais est(ar)ão na própria evolução do capitalismo. Para exemplo: as 100 maiores firmas europeias foram todas fundadas há mais de 40 anos. Enfim, qualquer das duas publicações citadas (cujas simpatias ideológicas são conhecidas), fazem uma análise crítica ao livro, daquelas passíveis de despertar o nosso interesse em vir a adquiri-lo. A ausência de crescimento económico é o problema de fundo, não apenas da situação económica mundial mas também sobretudo da situação económica portuguesa. Enquanto isso e nesta mesma semana, cá por Portugal, o jornal Público (cujas simpatias ideológicas têm evoluído) prefere destacar a opinião de Maria de Fátima Bonifácio, que nos propicia uma outra perspectiva sobre as causas daquela mesma estagnação do crescimento económico. Com ela fala-se da revolução tecnológica, da deslocação da criação da riqueza e no fim, ceterum censeo, da culpa que é - surpresa!.. - da social-democracia (que é a mesma coisa que o estado social e que está esgotada...). Quando assim se fala de globalização esquecem-se deste seu outro aspecto colateral: o da comparação e da evidência do valor dos vates cá da paróquia...

A CONFIRMAÇÃO DE UM INSUCESSO PELO GRANDE CONCORRENTE

O objectivo colateral (mas inconfessado) da Agência Espacial Europeia (ESA), caso alcançasse um sucesso total com a missão Schiaparelli, era o de entrar para um clube muito restrito: o das entidades que haviam conseguido fazer aterrar com sucesso um engenho na superfície de Marte, que tinha um só membro, a NASA. E assim continua, depois do fracasso daquela missão, mas registe-se o retoque de embaraço quando a confirmação do insucesso é feita recorrendo aos meios que a concorrente tem em operação naquele planeta (MRO). Esclareça-se que a imagem acima se decompõe em duas: o ¼ do lado direito corresponde à ampliação do rectângulo que está assinalado na imagem maior. Na interpretação das imagens, admite-se que o ponto escuro superior é o local de impacto da sonda e o ponto claro abaixo o local onde o paraquedas, esse sim suavemente, chegou à superfície marciana.

AS MAMAS TROCADAS DE HEIDI KLUM

A modelo Heidi Klum tem actualmente 43 anos. Na fotografia da esquerda ela terá uns 20 anos, na da direita uns 40. É uma mulher bonita que continua bonita mas o paradoxo das duas fotografias é que em cada uma delas ela enverga as mamas que devia ter quando da outra. As mamas úberes que lhe parecem ter sido implantadas quando era jovem foram entretanto removidas na maturidade - depois de quatro gravidezes! - para um modelo de mamas a lembrar os de uma adolescente. A evolução inversa à de uma mulher normal.

22 outubro 2016

O CHOCOLATE COMACOMPÃO E A BOLAMA

Eu nunca comi o chocolate comacompão com pão. Respeitava um ritual: nem o desembrulhava; com a unha do polegar rasgava metodicamente a prata que o embrulhava (diga-se que este embrulho que a imagem acima apresenta já é o do depois do 25 de Abril, quando as disposições revolucionárias aboliram uma outra cobertura adicional em celofane onde aparecia estampada a imagem do chocolate no meio de duas fatias de pão de forma), vincando os três regos que separavam as quatro barras que o formavam. Depois havia o partir cuidado das barras do chocolate, individualizando-as para serem engolidas inteiras, metendo-as à boca e deixando-as derreter metodicamente, para que no processo se evidenciassem as passas e os bocadinhos de amêndoa insertos no chocolate. Nunca achei que aquele chocolate se valorizaria se fosse comido com, ou se fosse associado ao, pão. Anos mais tarde, eu até poderia vir a explicar que o comacompão se afigurava como um caso emblemático de um processo de branding incompetente por parte da Regina que o fabricava. Era a qualidade do produto que o fazia vender-se e que ainda hoje desperta saudades. Mas, para o que interessa, ele representava para mim um dos paradigmas da bolama. A bolama é um conceito difícil de transmitir aos que não foram alunos do Colégio Militar, porque a bolama não se define, a bolama é (ou era). A definir-se do que se trata, seria uma daquelas entradas robustas, de preencher uma coluna inteira de uma página da enciclopédia, porque a bolama pode ser um doce, mas também podem ser salgados, até mesmo ovos mexidos, desde que os ovos tivessem sido gamados do galinheiro do pai da Rosa. Porque a bolama também não pode ser compreendida sem o conceito volátil da sua propriedade... Gamaram-ma, assim como eu também a gamei, alguma com o prazer acrescido do gamanço ter sido feito a alguém que o merecia. E era um consolo para a alma comer qualquer coisa rara que não tivesse vindo do rancho geral. Era um sentido de particularidade. Ao contrário de outras, que tenho ouvido evocadas com uma exuberância que por vezes me parece descabida, bolama é (era?) uma palavra do típico vocabulário colegial que tenho deixado de ouvir com o correr dos tempos. Porventura porque será uma das que, nos dias que correm e com um outro estilo de relação entre alunos e encarregados de educação, terá perdido a sua razão de ser?

21 outubro 2016

DOIS MUSEUS DE «TODOS NÓS»

Donald Trump não tem o exclusivo da desfaçatez. A primeira pergunta que se impunha que a jornalista Lucinda Canelas tivesse feito a Joe Berardo, perante o anúncio acima, era se ele já tinha saldado as dívidas que tem junto da banca portuguesa. E como não as saldou, os dois museus que Lisboa vai ter a caminho - se Lisboa os tiver, que isto são pessoas que não têm palavra nem inspiram confiança - não são para baptizar de museus Berardo mas sim Museus Todos Nós, contribuintes, que somos os que vamos arcar com o calote que ele pregou...

A CHATICE DE TER MEMÓRIA

Sinto-me tentado a concordar com José Pacheco Pereira: algumas notícias que se publicam na actualidade não estão concebidas para destinatários que tenham memória e a usem. Embora os seus textos se cinjam aos aspectos políticos do jornalismo (O esquecimento como arma política), noutros aspectos importantes, como é este caso acima do transporte aéreo, aquilo que se escreve hoje desdiz completamente o que foi o encadeado da argumentação que nos apresentaram no passado. É que eu lembro-me e os textos confirmam que a liberalização do transporte aéreo nos Estados Unidos em 1978 é que foi o grande indutor para que a União Europeia procedesse de igual modo, a partir da década de 90. Estávamos então por cá, e isso era um factor de pressão, com quase 20 anos de atraso em relação aos Estados Unidos. A concorrência iria fazer com que os preços dos bilhetes descesse por aí abaixo - e é verdade que eles desceram. Mas entrementes, explicavam-nos que era porque nos Estados Unidos existia uma verdadeira concorrência entre transportadoras aéreas que companhias de referência como a Pan Am ou a TWA acabavam por falir. E alertavam-nos para que, por cá, ou as companhias de bandeira (como a TAP) se adaptavam, ou sofreriam essa mesma sorte como de facto veio a suceder com a Sabena belga ou a Swissair suíça. Pois então agora, em 2016, a The Economist anuncia-nos que as transportadoras aéreas norte-americanas estão a ser ameaçadas pelas europeias? Como é possível tal fragilidade, depois de quase 40 anos de apuramento da espécie pelas saudáveis leis do mercado? E são as suas rivais europeias, comparativamente mais novas, que as ameaçam? Querem ver que a liberalização do transporte aéreo nos Estados Unidos não era afinal muito liberal? Ou então é a liberalização do transporte aéreo na Europa que afinal não é muito liberal... Seja qual for a verdadeira razão, para os consumidores comuns há as companhias low-cost, há as outras, e cá para mim a narrativa do transporte aéreo liberalizado perdeu coerência ideológica algures a meio do voo...

O SAPROPEL

Durante os meus sete anos de Colégio Militar terei ouvido, aprendido e usado centenas de alcunhas. Ainda hoje preciso de me disciplinar interiormente para tratar mais civilmente alguns dos meus amigos daqueles tempos. Trava-se - e creio que travamos todos, aqueles que lá andámos, nos casos das alcunhas populares que pegaram de estaca - um combate entre aquilo que é genuíno e aquilo que é conveniente. Mas o que eu queria aqui realçar, a propósito dessas alcunhas, é quando se descobre retroactivamente e ao fim de décadas, a sofisticação que acompanhava algumas das alcunhas que então usávamos, inconscientes que estávamos do seu mais profundo significado. Científico, como era o caso do Sapropel. O Sapropel aparece nesta fotografia acima, mas tive o cuidado de não o identificar e como, por outro lado, suspeito que actualmente tem uma aparência muito diferente, confio não estar a ser indiscreto. O seu anonimato estará praticamente garantido. O camarada que o baptizou é que era cá duma erudição, pois o sapropel, é uma palavra que resulta da «contração das palavras em grego sapros e pelos, que significa putrefação e lama, respectivamente». Trata-se de um «termo usado na geologia marinha para descrever sedimentos de cor escura que são ricos em matéria orgânica». Este «evento anóxico oceânico» produz uma matéria não muito agradável ao contacto. Tratava-se portanto de alguém com uma reputação vincada de manter relações difíceis com o saco de banho, a saboneteira, o shampoo, enfim, os produtos de higiene em geral, mas uma atitude corrigível que não era rara de encontrar na difícil adaptação dos anos iniciais de Colégio. Mas o que, ao fim de todos estes anos, torna o Sapropel diferente do Javardo e do irmão, o Javardinho, foi a capacidade de nos ter incutido desde tenra idade, que o sapropel era algo intrinsecamente sujo, embora sem sabermos concretamente do que se tratava. São estes os bons alicerces de uma sólida cultura geral.

20 outubro 2016

E AS PERSPECTIVAS DAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NORTE-AMERICANAS... (4)

Apesar do frenesim mediático que as acompanha e que, da génese local, se impõe depois ao resto do Mundo, as eleições presidenciais norte-americanas raramente são cerradamente disputadas. O sistema eleitoral, compartimentando as disputas ao nível de cada um dos cinquenta estados e fazendo com que o vencedor o seja em absoluto (i.e., sem consideração pela representação da minoria), permitiu antecipar na grande maioria das vezes como seria o desfecho das eleições. A maioria dos estados têm um voto tradicional: o mapa acima mostra como votaram os estados nas últimas dez eleições presidenciais, desde 1976. Na legenda, a variação vai desde o vermelho mais claro da extrema direita, representando os estados onde o candidato republicano venceu em todas as eleições deste 1976, até à extrema esquerda em azul mais claro, os estados do Minnesota e a capital, Washington D.C., onde o mesmo aconteceu pelo lado dos democratas - 10 vitórias dos candidatos democratas. Os estados mais escuros são os mais indecisos, mas uma apreciável parte deles não mudam - ou raramente mudam - de opinião. Mas, além de firmes, quando de cada eleição, as opiniões exprimem-se maciçamente. Este outro mapa abaixo, mostra-nos em que estados, nos últimos 48 anos (e doze eleições presidenciais), é que o candidato vencedor, fosse qual fosse a sua cor, venceu a eleição por uma margem inferior a 3% dos votos e também quantas vezes isso aconteceu. Não é coincidência que as áreas mais escuras dos dois mapas tenham algo de sobreponível. Esses são os estados onde, antecipadamente, se pode perceber o sentimento da opinião pública e o desfecho do resultado da eleição presidencial. Há quem os designe por swing states e é aí que os candidatos têm tendência a fazer incidir a esmagadora maioria dos recursos das suas campanhas, numa bizarra confusão entre causa e efeito - é que, reverter uma situação desvantajosa num desses estados, à custa de uma esforçada campanha de promoção, não implica necessariamente que a situação desvantajosa global da candidatura se reverta também... Mas as múltiplas sondagens que têm sido publicadas e que dão vantagem a Hillary Clinton em estados como a Virginia, o Ohio ou a Florida acabam por ter um significado mais consistente do que as sondagens nacionais.
Não interessa aos media reconhecerem que a eleição está decidida, senão deixam de ter assunto. Não interessa à candidatura de Hillary Clinton, por receio que esse reconhecimento desmobilizasse o seu eleitorado. E não interessaria também a Donald Trump, não fosse ele um marginal que só aceita as regras que lhe convêm. Ainda não houve eleições mas, ao permitir que aconteça o que está a acontecer em seu nome (afinal Trump é um candidato republicano), o aparelho do partido republicano já se tornou antecipadamente no maior vencido delas.

É SÓ PARA CONSTAR QUE POR AQUI TAMBÉM SE PUBLICAM COISAS INTELECTUAIS

«O fracasso das antigamente chamadas teorias matemáticas da guerra resulta precisamente da insuficiente atenção prestada ao elemento moral, que introduz factores de indeterminação que aumentam o risco.»
Quando me propus publicar nestes últimos dias um par de postes (1) (2) sobre o período da Restauração francesa não estava a contar com um afluxo súbito de novos leitores acompanhados de comentários complementares de ciência política, ironizando com a imagem de uma direita conservadora, ainda por cima reclamando-se do absolutismo, a utilizar-se dos instrumentos políticos de um sistema representativo, emanado dos princípios de representação popular que essa direita dizia combater. Há tópicos que se publicam, esquecendo destinatários, só para gratificação e um ou outro leitor ocasional, que isto da Restauração francesa não interessa nem ao menino jesus. Afinal, num blogue não somos menos do que num jornal, onde também se publica alguma coisa que não será bem para ser lida, mas apenas para que conste que também por ali há preocupações intelectuais...

O MOEDAS A FUNCIONAR

Quando se lêem estas reportagens no Observador, onde se realça um Carlos Moedas cheio de expediente que, a certa altura, até desenrasca um príncipe holandês que ficou preso num elevador, temos que reconhecer que exportámos a nata para Bruxelas e que quem a sabia toda eram os Espírito Santos.
Não foi a eles que os ouvimos, a pretexto de uma enrascadela qualquer que as empresas deles haviam arranjado lá para as bandas do Luxemburgo, lembrarem-se de pôr o Moedas a funcionar? E não é que se descobria que o Moedas funcionava mesmo? Quando o assunto mete Europa e ricos e famosos, o Moedas é cá duma eficácia...
(Ninguém se incomoda, ninguém se questiona, como é que Carlos Moedas é rebaixado a ser tratado da forma como o é? Seriam os Espiríto Santos que eram abusadores ou seria o próprio a mostrar-se servil?...)

19 outubro 2016

HISTÓRIA DA RESTAURAÇÃO 1814-1830 (2)

Se atentarem na capa desta História da Restauração 1814-1830 que aparece acima, aperceber-se-ão que se trata de um pormenor do mesmo quadro de Jean-Louis Ducis que comentei na primeira parte, mas com um particularidade curiosa: o editor inverteu a disposição da cena. Apenas posso especular sobre as razões para o ter feito, mas o resultado resulta para mim simbólico. Este livro de História da Restauração relata sobretudo a história política dessa Restauração e é, simultaneamente, um instrutivíssimo livro sobre ciência política. Porque o regime que vigorou em França durante aqueles dezasseis anos veio a revelar-se-me uma subversão de algumas ideias adquiridas que interiorizara antes de o ler. Uma delas era a ideia de que os monarcas do século XIX eram consistentemente mais retrógrados que o pessoal político dos países onde reinavam. E contudo não acontecia assim com Luís XVIII que se mostrava muito mais moderado e pragmático do que a classe política francesa do seu reinado (1814-1824). Esta última, onde pontificavam as grandes figuras da nobreza que, como o rei, se haviam exilado durante o período de 25 anos que vai de 1789 a 1814, sentir-se-ia muito mais representada pela pessoa do irmão mais novo do rei e seu sucessor como Carlos X (1824-1830). Porém, é a própria essência do legitimismo que os impediria de fazer algo no sentido de afastar Luís XVIII em prol do seu irmão. Era contrariada que essa classe política se submetia às evidências de que o regime não podia ser uma cópia do absolutismo que existira até 1789. A monarquia da Restauração era regida por uma Carta Constitucional, outorgada por Luís XVIII em 1814, onde se consagrava a existência de eleições para uma Câmara de Deputados, embora as condições exigidas para se ser eleitor e eleito fossem - como era comum na época - fortemente restritivas. Daqui resultava que, não raro, a composição (e a consequente atitude) dessa Câmara era mais radicalmente reaccionária do que as intenções do poder executivo representado pela vontade do rei (Luís XVIII). Ou seja, porque as forças conservadores levavam vantagem nas urnas, houve assembleias eleitas que, por serem ultra-realistas, ainda eram mais defensoras dos privilégios reais do que o próprio rei! (Uma subversão da lógica a justificar a capa invertida acima) E engraçado, esses absolutistas de então, divididos entre as suas convicções políticas profundas (onde não se atribuía qualquer valor à representação popular) e o órgão político onde possuíam mais força, optaram por deixar os seus princípios para outras ocasiões mais propícias e combater politicamente a facção mais moderada e liberal do regime no parlamento onde se sentiam em vantagem. Em política prática, as convicções das facções apenas existem conforme as circunstâncias. No caso da Restauração francesa dá-se a curiosidade disso acontecer com quem não é muito habitual.

18 outubro 2016

HISTÓRIA DA RESTAURAÇÃO 1814-1830 (1)

Em 1823, Luís António, o duque de Angoulême foi enviado por seu tio, Luís XVIII de França, para Espanha, à frente de um corpo expedicionário de 60.000 homens. Apesar dos seus 48 anos, o duque não era um militar e a direcção da campanha ficou a cargo do seu chefe de estado-maior, o general Guilleminot, por ironia um general de Napoleão, veterano de Waterloo. Mas a missão política de que o duque fora encarregado é que era importante: repor Fernando VII no trono de Espanha como rei absoluto, o bisneto de Filipe V (que fora o fundador da dinastia Bourbon em Espanha). Essa vitória política de instalar um Bourbon nos seus devidos direitos, ainda que no reino vizinho, representava uma espécie de sublimação por interposto país (da falta) de prestígio da Restauração que acontecera em França depois da queda de Napoleão. A Restauração francesa original acontecera por imposição das potências inimigas e não existia um feito de armas condigno que a justificasse. É para contornar isso que o episódio foi vivido em França de uma forma desproporcionada e que Paris é, ainda hoje, embelezada por uma enorme praça baptizada de Trocadéro em homenagem a um episódio menor dessa campanha, ocorrido perto de Cádis. É nesse mesmo espírito que foi pintado o quadro acima, assinalando o retorno triunfante do duque e das suas tropas a Paris, em 2 de Dezembro de 1823. Ao centro, sentado, está obviamente o monarca, Luís XVIII, a quem o duque presta a competente homenagem. Por detrás do duque, vêem-se à distância as tropas que desfilam pelos Campos Elísios e, ainda mais longe, um Arco do Triunfo de significado (ainda) incomodamente napoleónico. Do lado esquerdo do rei está o seu irmão e sucessor, Carlos X, pai do homenageado. Do lado direito as mulheres e as crianças da família real. O pequeno duque de Bordéus (3 anos), que seria então o terceiro na ordem de sucessão ao trono, acena com um chapéu emplumado, mostrando a continuidade da dinastia dos Bourbons de França. O autor da pintura é Jean-Louis Ducis (1775-1847), um discípulo menos conhecido e menos inspirado de David.

«OPCIONALNAUTA»

Não pode haver queixas de que haja falta de termos para designar os tripulantes das naves espaciais. Suponho até que haja uma certa controvérsia a esse respeito, tal a multiplicidade de opções aceitáveis: astronauta, cosmonauta, espaçonauta, taiconauta e até... angkasawan (confira-se aqui). O que seria simpático, e já que parece que o jornalista está a referir-se sempre ao mesmo, era empregar-se (no caso, o jornal francês Le Monde) sempre a mesma expressão num mesmo artigo... Para não se dar a impressão de um cosmopolitismo chic a despropósito...

O SUCESSO DA SONDA «SCHIAPARELLI»

Está em curso uma delicada manobra de três dias que irá tentar fazer com que uma sonda da Agência Espacial Europeia (ESA), baptizada com o nome do astrónomo italiano Schiaparelli pouse suavemente na superfície marciana. São operações que contam com vários fracassos, ofuscados pelos sucessos. No caso da ESA, neste projecto associada aos russos da Roscosmos, não se tratando da primeira tentativa, a verificar-se, será o seu primeiro sucesso. Mas, como se vê pela montagem acima e pelo vídeo abaixo, é só. Ao contrário das missões da NASA, não haverá um rover para se passear na superfície, nem novas fotografias espetacularmente atractivas da superfície marciana. E deverá ser por tudo isso que a comunicação social portuguesa se tem mostrado sido muito contida na forma como tem acompanhado os acontecimentos: vi uma coisa escrita pelo Diário de Notícias, outra dita pela TSF, mas o resto manterá uma prudente expectativa. É uma atitude muito discutível do ponto de vista da qualidade noticiosa, mas que me parece prudente e defensável: só se torna notícia aquilo que vier a ter sucesso. Só nessas circunstâncias é que a comunicação social em peso se associa à festa. Só não compreendo é porque não se aplica este mesmo critério (que me parece reservado para a ciência e outros assuntos menores) ao caso da política: por exemplo, porque não se espera que apareça mesmo o diabo para dar eco (e aí razão) às profecias de Pedro Passos Coelho?... Agora a sério: quem quiser seguir o assunto tem esta conexão on-line.

17 outubro 2016

OS DIAS DA HISTÓRIA

Todos os dias são dias da história e estes são bem evocados e de uma maneira rápida: em menos de quatro minutos. Apesar de passarem numa emissora discreta (Antena 2), não deixa de ser possível ouvi-los de outras maneiras como, por exemplo, aqui. Hoje fala-se do discurso proferido por Costa Gomes na Assembleia Geral da ONU há 42 anos. Para além do que se disse, haveria muito mais para dizer, nomeadamente sobre a descolonização que ali foi anunciada, mas... não se disse e isso será um dos bons segredos - a sobriedade - do programa de Paulo Pinto.

VINTE E CINCO MILHÕES DE PORTUGUESES

O império colonial português foi sempre representado pela propaganda do Estado Novo predominantemente pelas suas características geográficas físicas, em detrimento das características humanas. Estas tinham o interesse do exotismo da multirracialidade mas nada mais. A reforma constitucional de 1951, suprimindo o acto colonial, nada conseguiu fazer para mudar essa percepção. Típico daquela perspectiva, Angola aparecia considerada sempre como a maior colónia (depois província ultramarina...) portuguesa, quando isso só era verdadeiro em área geográfica, porque a população moçambicana sempre foi superior à angolana. Populacionalmente, Moçambique era maior do que Angola. Típico disso também, mas agora mais consequente do ponto de vista político, é a letra do hino Angola é nossa, aparecido em consequência da insurreição nacionalista angolana de 1961. É um sentimento de posse que não leva em linha de conta os angolanos. Na propaganda, Portugal podia ser do Minho a Timor, mas o Minho e Timor não eram realidades da mesma natureza.
Apesar das doses de propaganda, havia um pensamento corrente, claro e circunscrito do que se considerava Portugal. Típico ainda de como esse era o pensamento prevalecente entre o português comum, mesmo já durante o período das guerras em África, um júri nacional - no caso retratado acima é o do Festival RTP da canção de 1972 - aparecia composto por representantes dos distritos da metrópole, quiçá pelos das ilhas adjacentes, mas naturalmente sem a presença dos das províncias ultramarinas. É neste ambiente que, influência de um marcelismo que quereria mudar essa percepção (em 1972 elevara-se Moçambique e Angola à categoria de Estados), a mesma RTP passou a emitir em 1973 um programa de variedades intitulado Vinte e cinco milhões de portugueses (abaixo). Percebia-se a ideia: depois das misses*, era (mais) um espectáculo de variedades exibindo um modelo mais eclético, modernizado, do Portugal pluricontinental. Mas o título, bem intencionado de agregador de uma realidade nacional que afinal tinha 22 anos, acabava por causar desconforto em quem tivesse conhecimentos mínimos de geografia humana: os metropolitanos e os insulares haviam-se tornado numa minoria entre esses tais 25 milhões...
* Concorrentes de Angola (1971) e de Moçambique (1972) haviam ganho os concursos de Miss Portugal em espectáculos também transmitidos pela RTP e que tiveram uma grande repercussão social.