13 outubro 2016

A IMPERMEABILIDADE AO RIDÍCULO

O mais antigo episódio análogo de que se suspeita, terá acontecido com Júlio César, que se celebrizou por ter escrito A Guerra das Gálias ao mesmo tempo que as combatia. Mas o episódio do género que terá tido mais projecção mediática recente terá acontecido com John F. Kennedy, quando contratou um ghost-writer (Ted Sorensen) que se veio a revelar bom demais para a tarefa para a qual fora contratado: o seu Retratos de Coragem recebeu um Prémio Pulitzer em 1957. E John Kennedy não se desmanchou e lá foi receber o prémio, mas isso não impediu que Eleanor Roosevelt, a viúva do antigo presidente Franklin Delano, tivesse mimoseado o ambicioso senador democrata com um trocadilho verrinoso a propósito da atitude e do título do livro, de quem esperava que Kennedy se fizesse menos ao retrato mas mostrasse mais coragem (a de confessar que não fora o autor do livro). O livro deixou de constar do mito John F. Kennedy. Entre nós, em paralelo com o sucesso editorial que acompanhou a publicação de Portugal e o Futuro (1974), tornava-se quase obrigatório especular sobre a identidade do(s) seu(s) verdadeiro(s) autor(es) por detrás de António de Spínola. O futuro viria a justificar ainda mais aquelas dúvidas porque as diferenças de objecto, de estrutura e de estilo são enormes quando comparadas com obras posteriores atribuídas ao mesmo autor. O general possuía a sua corte de admiradores (spinolistas) mas, incondicionais que se mostrassem, eram ainda assim prudentes na argumentação em prol de alguns traços de carácter do seu chefe - que não podia ser considerado um intelectual. Os tempos mudaram e o caso actual de José Sócrates parece ser substancialmente diferente desses outros. A autoria do primeiro livro de José Sócrates está rodeada de controvérsia? Então o que de melhor haverá a fazer (considerar-se-á entre os indefectíveis do antigo primeiro-ministro) é publicar um outro livro, denso, partindo da teologia de São Paulo para chegar à sociologia de Max Weber, conforme se pode ler na sinopse enviada para a imprensa. É um gesto que não consegue reverter a imagem adquirida pelo autor nem as suspeitas que sobre si recaem, e, pior, tanta é a inoportunidade que se torna mesmo ridículo, como a Imprensa Falsa acima se encarrega de demonstrar. Por muito que a queiram disfarçar de determinação e/ou convicção este género de gestos, a impermeabilidade em compreender o ridículo da sua própria actuação, nunca me pareceu e continua a não me parecer nem inteligente nem uma virtude política.

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