...o doutor Ludwig Deppe, que fazia parte do corpo médico que acompanhava as tropas coloniais alemãs do general Lettow-Vorbeck, dedicava uma surpreendente atenção nas entradas do seu diário às vicissitudes gastronómicas de quem, como ele, dirigia um hospital de campanha nomadizado e que tinha que se abastecer, como um exército medieval, com aquilo que lhes era possível obter nas terras que atravessavam. As memórias do doutor Deppe vieram posteriormente a ser publicadas num livro denominado Mit Lettow-Vorbeck durch Afrika (acima). Mas a atenção por ele dada às questões da culinária quando perdido no meio do Tanganyka com uma guerra em curso não deixam de nos surpreender mesmo passados cem anos.
30 Setembro 1916: Aqui perde-se o conceito do tempo. O meu calendário pessoal está dessincronizado com o da história do Mundo! Hoje fui bem tratado por Hassani, o meu empregado. Trouxe-me quatro pombos para o almoço: dois cozidos - um com sago, o outro sem - e outros dois fritos, que estavam realmente saborosos, acompanhados de uma sopa. Comi os pombos cozidos para almoço e os fritos à ceia.
2 Outubro 1916: Hoje sinto-me enjoado. Hassani anda a cozinhar com samli (designação swaili para o ghee ou manteiga clarificada) em excesso, que, para mais, me parece que já não está fresco. O que pode ser rectificado se a gordura voltar a ser fervida com bananas verdes. Expliquei-lhe isso mas, em vez de bananas, foi usar ananases verdes. Passado um bocado, Hassani apareceu muito satisfeito com uns bocados de ananás fritos em samli. Devo culpar a inabilidade do rapaz em saber resolver os problemas ou terei de culpar as minhas lacunas em saber explicar-me em swahili? Provavelmente a segunda! Ontem também tentou fazer milk rolls (uma espécie de pães de leite), só que sem o leite, que é coisa que há muito tempo deixámos de ter. De qualquer modo, para o almoço de hoje tivemos lombinhos de springbok (gazela) acompanhados por tapioca cozinhada nas cinzas - excelente!
A campanha que se travou na África Oriental alemão prolongou-se até ao final da Primeira Guerra Mundial em Novembro de 1918 com as colunas de Lettow-Vorbeck a conseguirem evadir-se com sucesso aos seus perseguidores. O problema principal da campanha foi a logística: sem estradas e outras vias de comunicação tradicionais e sem o recurso aos tradicionais animais de carga por causa da praga da mosca tsé-tsé, cada exército necessitava de ser acompanhado por colunas de milhares de carregadores para assegurarem o transporte de tudo aquilo que um exército necessita para combater. Aqueles que adoecessem ou morressem eram substituídos por outros recrutados entretanto nas aldeias por onde as colunas passassem. Mas a escassez de meios tornava, como se compreende, os exércitos necessariamente frugais e é sobre esse pano de fundo que se desenha a personagem assaz curiosa do doutor Ludwig Deppe, exibindo um requinte de chef Avillez no mais desapropriado dos ambientes para tal. Em contrapartida, note-se o pormenor pragmático de Deppe falar com o mainato em swahili, a língua franca africana local, em vez de o fazer em alemão. Não estou a imaginar muitos oficiais médicos portugueses de então, e mesmo cinquenta anos depois disso, a fazerem o mesmo...
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