04 outubro 2016

UMA HISTÓRIA DE DUAS ÉTICAS

Eu bem pedi no facebook se havia alguém que se dispusesse a traduzir o artigo abaixo...
As expressões “ética da convicção” e “ética da responsabilização” dirá muito pouco à grande maioria de quem se expresse em português. Na Alemanha, contudo, os seus equivalentes – Gesinnungsethik e Verantwortungsethik – são palavras familiares. Os especialistas empregam-nas corriqueiramente quando convidados para um qualquer debate televisivo. E um anfitrião atreve-se a socorrer-se de uma delas como desbloqueador de conversa num jantar de amigos que se pretenda assim mais “exigente” do ponto de vista intelectual. Os dois conceitos assentam no contraste existente entre o idealismo e o pragmatismo que impregna a actuação política. Mas eles também incluem uma tensão moral “muito especificamente germânica”, na explicação de Manfred Güllner, sociólogo e politólogo. Quem esteja interessado em compreender o comportamento da política alemã, desde o euro até aos refugiados, o melhor que tem a fazer é familiarizar-se com o antagonismo daquelas duas palavras.
Elas devem-se ao sociólogo Max Weber, que as empregou num discurso que proferiu em Janeiro de 1919 diante de um grupo de estudantes esquerdistas numa livraria de Munique. A Alemanha acabara de perder a Primeira Guerra Mundial. O Kaiser abdicara, o país estava imerso num surto de revoluções onde até Munique estava em vias de se tornar na capital de uma - muito breve - “República Soviética da Baviera”. Munido apenas de um punhado de apontamentos esquematizados, Weber proferiu ali uma lição que se viria a tornar num clássico da Ciência Política. (“A Política como Vocação” só viria a ser traduzida para inglês depois da Segunda Guerra Mundial – e para português ainda depois disso) A palestra de Weber vogou naturalmente por cima dos ensinamentos da História mas o seu objectivo principal seria o de refrear o romantismo utópico que impregnava as ideologias que então se disputavam pela condução da nova Alemanha, incluindo as daqueles que estavam sentavam diante de si. O orador descreveu o que considerava uma “oposição abismal” entre dois tipos de ética. Os que seguiam as suas convicções e que desejavam preservar a sua pureza moral, independentemente das consequências que as suas políticas tivessem tido no mundo real. “Se uma acção bem-intencionada levar a maus resultados, então, nos olhos desse actor, não é ele mas o mundo, ou a estupidez dos outros homens, ou a vontade de Deus que os assim fez, que é afinal o responsável pelo mal causado.” Em contraste, alguém que se oriente pela responsabilidade tem de “levar em consideração as deficiências do povo (...) nem sequer tem o direito de assumir que ele se irá comportar da maneira apropriada e perfeita”. Este género de político irá responder por todas as consequências dos seus actos, até mesmo os involuntários. Weber não deixou também quaisquer dúvidas para onde iam as suas simpatias: os primeiros, dizia de sua experiencia, são “nove vezes em cada dez, umas baratas tontas”.
A visão predominante da actualidade, coincidente com a de Weber em 1919, é que a “Alemanha tem um excesso de Gesinnungsethik”, como o diz Wolfgang Nowak, que foi assessor de Gerhard Schröder quando este foi chanceler. A propensão de pós-guerra dos alemães para a expiação por causa do seu passado nazi tornou a atitude ainda mais exacerbada. Em geral, essa “ética da convicção” é mais prevalente entre a esquerda e os protestantes e ligeiramente menor entre os conservadores e católicos, de acordo com a opinião de Manfred Güllner.
É assim que os sociais-democratas, que se vêem a si próprios como cruzados pela justiça social, dão frequentemente a impressão de si próprios de serem não apenas incapazes mas também de se mostrarem indisponíveis de governar, como se a responsabilidade não fosse (também) sua, ainda na opinião de Güllner. Isso poderá ajudar a explicar porque o chanceler da Alemanha só foi social-democrata durante 20 anos desde 1949, quando em comparação com os 47 anos em que o titular do cargo foi democrata-cristão. Muitos dos pacifistas mais estridentes da Alemanha são, entretanto, luteranos. Margöt Kaßmann, a antiga dirigente da igreja, sonha com uma Alemanha sem exército algum. Ela repudia a força mesmo para evitar ou interromper um genocídio.
Mas a ética da convicção também existe no centro-direita político que desde a década dos 1950’s se impregnou do projecto europeu como sendo um fim em si mesmo, uma forma da Alemanha ser pós-nacional e assim dissolver a sua culpabilidade em conjunto com a sua soberania. Acidental ou deliberadamente, e em todos esses anos, os alemães não se deram ao trabalho de reparar que a grande maioria dos outros europeus nunca compartilharam desse seu objectivo. Quando irrompeu a crise do euro, muitos conservadores opuseram-se aos resgates por causa de uma ética de convicção, segundo a opinião de Thilo Sarrazin, um controverso especialista local. Era uma inaceitável quebra das regras por parte dos países em crise – mesmo que o preço a pagar fossem consequências imprevisíveis para o espaço de circulação da moeda.
A “ética da responsabilização” defende que esse género de atitudes, mais do que a sua impraticabilidade, está errada, e que aquilo que pura e simplesmente não funciona não pode revestir-se de qualquer sentido moral. Aqueles que têm governado a Alemanha têm pertencido maioritariamente a este campo. Na década dos 1980’s milhões de alemães protestaram nas ruas contra a modernização do arsenal nuclear da NATO, mas o chanceler Helmut Schmidt permitiu que os misseis fossem instalados, aceitando a lógica incontornável da dissuasão. (O reconhecimento que recolheu dos seus camaradas sociais-democratas foi sobretudo desdém.) Durante a crise do euro, Angela Merkel concordou relutantemente com os resgates para que se salvaguardasse a coesão da zona monetária.
É tudo isto que torna a decisão dela em abrir historicamente as fronteiras da Alemanha aos refugiados em 4 de Setembro de 2015 num acontecimento ainda mais notável. “Ela abraçou entusiasticamente uma ética de convicção”, conforme a descrição de Konrad Ott, um professor de filosofia que é também autor de um livro sobre migração e moralidade. Na altura o seu gesto alinhou-a com uma “cultura de bem-vindos”, ao mesmo tempo que os alemães normais se voluntariavam para ajudar os refugiados e a sua imprensa celebrava o magnifico exemplo humanitário dado por todo o país. A Chanceler Merkel recusou-se a adiantar um tecto quanto ao número de pessoas em necessidade, uma posição que ainda hoje mantém.
Mas como previam os “éticos da responsabilização” (que é o clube que Angela Merkel mais frequenta), a disposição da opinião pública mudou rapidamente. Outros europeus acusaram a Alemanha de um “imperialismo moral”, o lado negro da Gesinnungsethik. E muitos alemães começaram a sentir que o que está a ser pedido à sua sociedade é demasiado. Alguns deles, num desenvolvimento que não surpreenderia Max Weber, estão a tornar-se xenófobos.
A história deste último ano pode assim ser vista como a tentativa de Angela Merkel em regressar à ética da responsabilização sem trair as suas convicções. Isso está a incluir morder a língua quando lida com uma Turquia progressivamente mais autoritária mas de cuja cooperação necessita para que o fluxo de imigrantes seja reduzido e controlado. Max Weber haveria de achar o seu dilema fascinante. Como ele próprio disse, mesmo alguém que se guie por uma ética da responsabilização “atinge um ponto em que tem que dizer: 'É por isto que me bato e não posso agir de outro modo'. E isso é algo de genuinamente humano e comovente.”
 
À margem do artigo, mas numa espécie de explicação preemptiva quanto à ausência de outros textos de Max Weber sobre a Alemanha de Weimar  até à ascensão do nazismo, diga-se que ele veio a morrer ano e meio depois de ter dado a lição aqui mencionada, em Junho de 1920, uma das vítimas tardias da famosa gripe espanhola.

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