Nunca foi minha intenção usar este blogue para publicar traduções de trabalhos de outros. Mas apercebi-me ontem ao fazer uma ligação para um artigo já datado do Financial Times, em que se descreve o papel incontornável de Durão Barroso no derrube em 2011 do primeiro-ministro grego George Papandreou, que aquilo que eu dava por sabido de todos, afinal não o seria. Apesar de ter assinalado à época a importância do artigo publicado pelo Financial Times, apercebi-me, oito meses passados, que o mesmo não terá sido traduzido para português, nem o seu conteúdo terá sido sequer discutido devidamente na comunicação social portuguesa, apesar da importância do seu significado. Afinal esse Outono de 2011 foi constituído por meses em que se percebe retrospectivamente quanto o euro poderá ter estado à beira de um colapso por efeito de contágio. Agora não é importante discutir isso, muito menos a ignorância como atravessámos esse período, não se levantem aquelas questões impertinentes sobre a competência da comunicação social.
Recorde-se que em 31 de Janeiro de 2012, há precisamente três anos, a yield dos títulos da dívida pública portuguesa atingiram o pico de 18%, com um governo ainda fresco a fingir-se distraído esquecendo-se que fizera desse indicador – que associava à confiança dos mercados – uma das medidas do sucesso da sua governação. Na verdade, o cerne do problema das dívidas soberanas e do euro não estava, nunca estivera, em Portugal. Como se pode ler abaixo, importantes eram a Grécia (o elo mais fraco) e a Itália (o elo impossível de consertar), A tradução que fiz é parcial e cobre especialmente a questão da relação da União e dos poderosos dessa União com a Grécia. Acho importante recordar aquilo que então se passou para mais considerando os recentes desenvolvimentos políticos nesse país. Os méritos da história pertencem inteiramente a Peter Spiegel e ao Financial Times; as imagens, com excepção do gráfico acima, também são as do artigo, não se pretendem infringir as regras do copyright que o blogue não tem objectivos lucrativos; as lacunas da tradução são evidentemente minhas.
Tudo começou na Grécia, tal como acontece com quase tudo o que se relaciona com a crise da zona euro.
George Papandreou, o herdeiro da mais famosa dinastia política da Grécia, tinha regressado a Atenas após uma das mais conclusivas cimeiras de crise da UE para se deparar com um país em convulsão. A 27 de Outubro, em Bruxelas, tinha-se acordado o maior default de dívida soberana da história, envolvendo uma reestruturação da dívida grega de 200 mil milhões de €, que reduzia para cerca de metade a dívida de Atenas nas mãos de credores privados. Porém, dentro de portas, Papandreou estava em maus lençóis. Para um filho e neto de dois primeiros-ministros gregos que haviam sido detidos na mesma noite por uma junta militar golpista em 1967 - George Papandreou ainda se podia lembrar de como se armou nessa noite, com 14 anos, com uma caçadeira quando as autoridades entraram em sua casa - o que aconteceu no dia seguinte ao do seu regresso de Bruxelas foi particularmente enervante. Durante uma parada militar em Salónica que assinalava o aniversário da entrada da Grécia na Segunda Guerra Mundial, milhares de manifestantes anti-austeridade, incluindo radicais de direita e anarquistas, invadiram o percurso do desfile, forçando Karolos Papoulias, o presidente da Grécia, a abandonar a cerimónia. Papandreou viria a dizer posteriormente aos seus colegas primeiros-ministros que considerou o incidente como um sinal de que o seu país estava à beira de um outro golpe militar. "Por todo o lado se dizia que o governo era composto por traidores", lembrou Papandreou. "Apercebi-me quanto a situação estava a ficar fora de controlo." Naquele fim de semana, reuniu um pequeno grupo de conselheiros e revelou-lhes o seu plano: iria convocar um referendo nacional sobre o novo programa de resgate no valor de 172 mil milhões €. Aqueles que criticavam o acordo, a começar pelo líder da oposição, Antonis Samaras, mas incluindo os rebeldes dentro do seu próprio partido PASOK, seriam forçados a fazer uma opção, deduzia Papandreou, e a maioria apoiaria o plano e o resgate - especialmente porque sem os fundos de resgate, o colapso e a saída do euro seriam o resultado mais provável. A vitória no referendo dar-lhe-ia a legitimidade política para as reformas que os credores exigiam.
Mas George Papandreou não consultara ninguém fora de seu círculo mais próximo. Em vez disso, ele apresentou o seu plano como se se tratasse de um facto consumado aos deputados de seu partido numa reunião no dia seguinte. Muitos dos que estavam presentes ficaram em estado de choque, a começar por Evangelos Venizelos, o ministro das Finanças do governo de Papandreou. "Na noite de domingo, durante a nossa última reunião e pessoalmente em privado, Papandreou [falou] apenas referindo-se a uma proposta de [um voto de] confiança, não sobre um referendo", disse Venizelos, acrescentando que ele padeceu de dores abdominais agudas durante as horas seguintes, forçando-o a ir para o hospital. "Foi a consequência", diagnosticada pelo médico, "do stress." Outros tiveram uma preocupação de teor diferente. "Lembro-me que a primeira coisa que me passou pela minha cabeça foi:" Espero que ele tenha avisado a Merkel'", disse um outro ministro. Papandreou afirmou mais tarde que tinha dado a entender a sua intenção a alguns colegas seus, líderes de países da União. Alguns reconhecem terem umas vagas lembranças disso, mas outros dizem não se lembrar de nada. "Eu nunca o levei a sério", veio a dizer um deles. "Parecia um gesto um pouco desesperado." Mas quando Sarkozy se apercebeu que Papandreou tinha decidido colocar o seu acordo de resgate tão cuidadosamente trabalhado nas mãos dos eleitores gregos, explodiu. "Entrou em órbita", descreve um assessor seu. "Entrou completamente em órbita". Os mercados de obrigações que se haviam momentaneamente acalmado depois do acordo sobre a dívida grega, entraram em pânico. As yields dos títulos da dívida grega a 10 anos subiram 16,2% numa só sessão e, mais preocupante, a subida arrastou consigo as yields de títulos da dívida pública de outros países da zona euro, fazendo-os atingir valores que haviam forçado outros países a pedir o seu resgate: os da Itália, também a 10 anos, atingiram e ultrapassaram os 6,2%.
Nicolas Sarkozy convocou os seus conselheiros mais próximos para uma reunião de emergência no Palácio do Eliseu. De acordo com alguém na sala, a intenção inicial do presidente francês fora forçar Papandreou a “arrepiar caminho”: ou ele aceitava as condições de resgate incondicionalmente ou a Grécia seria forçada a sair do euro. Mas Henri Guaino, um confidente, também autor dos discursos de Sarkozy, fez-lhe ver que Charles de Gaulle fora um adepto dos referendos em detrimento das votações parlamentares. Pedir a Papandreou para cancelar um plebiscito seria um contra-senso consideradas as tradições gaullistas de que Sarkozy se reclamava. Foi assim que Sarkozy acabou por estabelecer uma alternativa: Papandreou poderia ir em frente com o seu referendo - desde que ele não fosse sobre as condições do resgate. Com isto Sarkozy telefonou a Merkel para que se acertassem numa estratégia comum. Eles iriam convocar Papandreou para ir a Cannes, onde a cimeira dos G20 iria arrancar daí a apenas 48 horas, e persuadi-lo a realizar um referendo mas onde se perguntasse se a Grécia queria ou não permanecer na zona euro. Em Berlim, Merkel estava hesitante sobre a questão da "Grexit", a saída da Grécia, com vários dos seus conselheiros - particularmente Wolfgang Schäuble, o poderoso ministro das finanças - argumentando como a saída poderia gerar uma maior coesão entre os 16 restantes membros da zona euro, o que facilitaria a solução da crise da moeda. "Ela estava muito interessada em que a questão fosse definida por um claro “in” ou “out”", disse um funcionário alemão. "Para ela... a questão fundamental era que os próprios gregos decidissem se queriam ficar dentro ou fora, e se eles se decidissem em referendo pela saída, quanto isso simplificaria os problemas.” Muitos funcionários da União ainda hoje se perguntam por que razão Papandreou se dispôs a aparecer em Cannes para ser tão maltratado. Se ele se surpreenderia com a fúria contra si por parte dos líderes da UE quanto partiu naquela terça-feira de manhã, o primeiro-ministro grego parecera também partir iludido com a chance de ganhar o apoio internacional para a sua ideia de um referendo num palco mediático global como o G20. Embora seja famoso por sediar o glamoroso Festival de Cannes, o Palais des Festivals é um calhau sem charme feito de pedra e vidro virado para o Mediterrâneo. Num esforço para dar aos longos salões bege do palácio alguma presença durante a cimeira, a organização cobriu-os de um verde fluorescente mas um nevoeiro feito de gotículas vindo do mar veio cobrir tudo e sujar os vistosos tapetes de um castanho enlameado.
Sarkozy convocou os líderes seus colegas para o palácio às 05:30 de quarta-feira, uma hora antes de se reunirem com Papandreou, para chegar a um acordo sobre a forma de o enfrentar. Os convidados incluíram Merkel; Jean-Claude Juncker, primeiro-ministro do Luxemburgo que presidia ao eurogrupo dos ministros das finanças; Christine Lagarde, do Fundo Monetário Internacional e os dois presidentes da UE, José Manuel Barroso e Herman Van Rompuy. Quando o grupo se reuniu numa pequena e desengraçada sala de conferências, mobilada por cadeiras rococó Luís XV e uma longa mesa, Sarkozy passou em volta uma única folha, onde se lia " Position commune sur la Grèce" - posição comum sobre a Grécia. "A ideia era colocar Papandreou de castigo no canto, contra a parede", disse uma pessoa na sala. O plano de seis pontos de Sarkozy, obtido pelo Financial Times, era claro e duro: Papandreou devia aceitar o plano de resgate acordado na semana anterior, e não seria prestado qualquer auxílio adicional até que o parlamento grego votasse o seu parecer favorável. "Estamos sempre prontos para ajudar a Grécia, apesar da decisão unilateral de anunciar [o referendo], sem qualquer notificação prévia," lê-se no ponto dois do plano, num claro reflexo da irritação de Sarkozy. O ponto seis não podia ser mais claro: "O referendo será apenas sobre a permanência da Grécia na zona do euro e na União Europeia." Papandreou afirmaria mais tarde que fora Sarkozy principalmente que argumentara com ele para mudar a redacção da questão a colocar a referendo para "dentro ou fora" do euro e que Merkel estivera do seu lado. Mas aqueles que estiveram na sala disseram que houvera pouca divergência no bloco de líderes, incluindo a chanceler alemã.
Acertada a posição em relação à Grécia, Sarkozy passou para o assunto que realmente os incomodava: a Itália. A ideia do referendo de Papandreou tinha criado um problema em relação à Grécia, mas também dera origem a uma ameaça muito maior: a de que o contágio de Atenas se espalhasse por toda a zona euro e aí nenhum país representava mais um perigo mais sério do que a Itália. Com uma dívida soberana de quase 2 Biliões € - a quarta maior dívida do mundo – os funcionários do ministério das Finanças italiano haviam estimado que um programa de resgate de três anos (semelhante aos da Irlanda e Portugal) custaria cerca de 600 mil milhões de €. Não havia dinheiro suficiente na UE ou do FMI para suportar esse montante. A Itália era simplesmente grande demais para resgatar. "Nós não podíamos aguentar a Itália", reconhecia um funcionário do Ministério das Finanças francês. "Ninguém podia aguentar a Itália e isso seria provavelmente o fim da zona euro." Christine Lagarde havia chegado a Cannes com um plano para atribuir a Itália um Programa Preventivo de 80 mil milhões de €, uma linha de crédito que poderia ser usada em caso de emergência, mas para usar apenas com um acompanhamento intensivo, evidenciando a Sílvio Berlusconi, o primeiro-ministro italiano, quanto ele tinha perdido a confiança de seus pares da EU para implementar as reformas económicas necessárias. Só depois delas implementadas, argumentou, é que os mercados começariam a emprestar novamente a taxas sustentáveis. "A Itália perdeu a credibilidade", disse Lagarde ao grupo. Mas qualquer decisão respeitante à Itália teria que esperar porque Papandreou estava prestes a chegar.
A reunião deixaria muitos participantes em estado de choque. No seu diário, François Baroin, o ministro das Finanças de Sarkozy, utilizou a expressão "guerra psicológica". Outros, no caso os dois presidentes da EU (Barroso e Rompuy), disseram depois às suas equipas que se haviam sentido extremamente desconfortáveis com a cena de um pequeno grupo de líderes europeus a forçar a mão de um primeiro-ministro democraticamente eleito de um país soberano. "Por mim, nunca vi uma reunião tão tensa e tão difícil", disse um outro assessor. Quando Papandreou acompanhado pelo ministro das Finanças Venizelos chegaram à sala de conferências, Nicolas Sarkozy deu início àquilo que um funcionário designou por “Sarkozy em Grande”: uma denúncia irritada e contundente da decisão de Papandreou em convocar um referendo. "É evidente que o sentimento era: tínhamos feito tudo para o ajudar, tínhamos feito tudo para o manter na zona euro, assumíramos riscos financeiros e políticos", descreve um membro da delegação francesa. "É a maior reestruturação da dívida do mundo de sempre e agora o que você faz é trair-nos."
Papandreou foi apanhado completamente de surpresa. "Ele começou a barafustar desabridamente sobre o referendo", disse ele depois de Sarkozy. E Venizelos: "A posição de Sarkozy foi muito ofensiva. Nada educada. Muito, muito forte e muito agressivo, com o objectivo de colocar a Grécia num dilema: dentro ou fora?". Os gregos tentaram reagir. Papandreou apresentou o seu plano: o referendo seria realizado dali a um mês e forçaria Samaras e os próprios rebeldes do PASOK a alinharem-se, uma vez que até mesmo os críticos mais virulentos não quereriam opor-se à única opção para que a Grécia permanecesse na zona euro. Em seguida, Papandreou leu a redacção da pergunta proposta para o referendo. "Alonguei-me um pouco demais", admitiu ele posteriormente. Merkel foi a primeira a responder e num registo pouco simpático. "Ou resolvemos isto aqui entre nós, ou vamos fracassar aos olhos do mundo", disse ela. "Wir müssen entscheiden" - temos de decidir. "Ou vocês querem ficar no euro ou sair." Aqueles que estavam na sala aperceberam-se que Papandreou perdeu visivelmente força anímica à medida que a luta prosseguiu. Com ele desgastado foi Venizelos que assumiu o combate, no que muitos viram como a percepção pelo ministro grego que o seu colega se tornara num activo político esgotado - e Venizelos, que sempre tinha cobiçado o lugar, movimentava-se na ocasião para explorar a oportunidade.
Houve uma subtil mudança na linguagem corporal de José Manuel Durão Barroso, que se sentara calmamente a assistir ao carnaval que se desenrolava diante de si. O presidente da comissão europeia contou depois aos seus associados que a cena que se desenrolava à sua frente dele o alarmava cada vez mais. Mais do que a conversa solta da saída do euro da Grécia, que os funcionários da comissão desde há muito tempo acreditavam que provocaria um pânico incontrolável no mercado para todos os países do sul da Europa, a perspectiva de uma campanha para o referendo grego durante um mês iria semear a incerteza durante semanas – que era exactamente aquilo que se estava tentando evitar, quando as yields dos títulos italianos estavam a atingir níveis perigosos. Sem o conhecimento de Sarkozy ou de Merkel, Durão Barroso havia chamado Antonis Samaras, o líder da oposição grega, antes daquela reunião ter lugar. Deduzia-se o quanto Samaras estava desesperado para evitar o referendo. Samaras disse a Durão Barroso, que, dadas as circunstâncias, estaria disposto a assinar um pacto de um governo de unidade nacional entre o seu partido da Nova Democracia e o PASOK - algo que ele tinha cuidadosamente evitado fazer por meses, na esperança de que pudesse chegar ao poder sozinho.
Durão Barroso chamou os membros do seu gabinete e outros funcionários da comissão para se reunirem na sua suíte do Hotel Majestic Barrière para traçar uma estratégia. Decidiu que não iria dizer nada a Sarkozy nem a Merkel daquela conversa mas, de acordo com pessoas na sala, começou-se a discutir nomes de possíveis tecnocratas para assumir o lugar de Papandreou num governo de unidade nacional. A primeira pessoa a ser falada oi Lucas Papademos, o economista grego que havia deixado o cargo de vice-presidente do BCE um ano antes. Dentro de uma semana, o Papademos poderia assumir o cargo. Ao assistir às intervenções de Venizelos horas depois, Durão Barroso viu ali a sua oportunidade. Sarkozy deu a reunião por terminada, relendo o seu plano de seis pontos e dizendo a Papandreou para voltar a Atenas para "tomar uma decisão", quando José Manuel Durão Barroso chamou Evangelos Venizelos de parte. "Temos que liquidar esse referendo", disse Durão Barroso. O ministro das Finanças grego concordou imediatamente. A morte da ideia do referendo seria também a liquidação política de George Papandreou.
Depois de umas breves declarações à imprensa, na qual disse que o referendo seria "uma questão de saber se queremos permanecer ou não na zona euro", o Papandreou voltou para o aeroporto de Nice para regressar. No carro, ele virou-se para Venizelos e disse que as coisas não tinham corrido tão mal como ele receava. Venizelos ficou incrédulo. Como o primeiro-ministro dormiu no voo de volta, Venizelos, encorajado pela conversa que tivera com Barroso, ordenou a um assessor que escrevesse uma declaração para ser liberada quando eles desembarcassem, às 4h45 de quinta-feira. "A posição da Grécia na zona do euro é uma conquista histórica do país que não pode ser posta em causa", lia-se no comunicado. "Esta conquista do povo grego não pode depender de um referendo."
O referendo imaginado por George Papandreou passara à história. Assim como o seu governo.