31 agosto 2010

O «BUG» INFORMÁTICO-DESPORTIVO*

Estas fotografias foram tiradas em Julho de 1976 durante as competições de ginástica feminina dos Jogos Olímpicos de Montreal. São fotografias de duas actuações de uma jovem romena que ainda não completara 15 anos e que se tornaria uma legenda depois e por causa daqueles Jogos: Nadia Comăneci. Pela primeira vez nas competições olímpicas de ginástica, uma atleta fora classificada com a nota máxima de 10,00 pontos.
A organização dos Jogos considerara previamente que essa classificação seria improvável e por isso encomendara quadros electrónicos que exibiam apenas três campos numéricos… Ao encanto com a perfeição do exercício e com a graciosidade do corpo humano juntou-se a demonstração da superioridade do espírito humano sobre as máquinas, quando quase todos os presentes perceberam de imediato o significado real daquele 1,00 no visor…
* BUG - expressão de calão profissional para erros informáticos devidos a enganos originais na concepção do sistema.

30 agosto 2010

AS AMAZONAS RUSSAS

Toda a documentação e propaganda soviética da Segunda Guerra Mundial atribui uma enorme importância ao papel desempenhado pelas mulheres durante os quatro anos do conflito (1941-45). Estima-se em 500.000 o número de voluntárias que nele participaram nos quadros do Exército Vermelho, desempenhando as mais variadas funções, não apenas as de retaguarda como enfermeiras e condutoras, mas também em combate directo, pilotando aviões de caça ou como franco-atiradoras (abaixo).
Contudo, a Rússia já fora um país pioneiro no emprego de mulheres na frente de combate, e deve-o muito mais a razões de carácter cultural e antropológico do que a razões ideológicas. O aparecimento de mulheres combatentes antecede não só a Revolução de Outubro de 1917 que levou os bolcheviques ao poder, como estes últimos, quando o alcançaram, encararam durante os primeiros anos essas unidades femininas com enormes reservas, tendo mesmo desarticulado as unidades que encontraram.
Embora o Exército Imperial Russo não contasse oficialmente com mulheres quando do começo da Primeira Guerra Mundial em Agosto de 1914, sempre existira uma tradição milenar de mulheres guerreiras (que os Gregos da Antiguidade designaram por amazonas) nas regiões meridionais da Ucrânia e da Rússia. É por isso muito provável que, de forma anónima e/ou clandestina, houvesse algumas que integrassem os esquadrões de cavalaria dos famosos Regimentos de Cossacos.
Por outro lado, durante os três primeiros anos da Guerra (1914-17), houve quase 50.000 mulheres russas que se apresentaram para servir no Exército, embora apenas em funções auxiliares. Foi só com a Revolução de Fevereiro de 1917 que as novas autoridades russas – o Governo Provisório presidido por Alexandre Kerensky – decidiram criar as primeiras unidades combatentes femininas. Os seus objectivos principais eram o de fazer propaganda na retaguarda e, simultaneamente, moralizar as tropas da frente.
Comandadas por Maria Bochkareva (acima), o 1º Batalhão Russo Feminino da Morte estreou-se em combate em Julho de 1917, tendo-se saído bem (capturaram duzentos prisioneiros alemães…), mas não conseguindo aquele efeito galvanizador na moral do Exército que se esperaria do seu exemplo. Para esse fim, estas mulheres eram muito poucas e vieram demasiado tarde para conseguirem alterar aquele que era militarmente o desfecho mais previsível na Frente Leste: a desagregação do Exército Russo.
Por outro lado, politicamente, a existência das unidades femininas acabou por vir a ter um outro significado, quando um destacamento delas de Petrogrado (acima) foi mobilizado para defender o Palácio de Inverno (acima) do assalto (vitorioso) dos bolcheviques, quando da Revolução de Outubro de 1917. Fracassaram, mas foi assim que as mulheres guerreiras adquiriram a reputação de contra-revolucionárias e a antipatia dos bolcheviques… Significativa e simbolicamente, Maria Bochkareva morreu fuzilada por eles em 1920.

29 agosto 2010

FANTASIAS DE GUERRA

«Mal António de Faria apareceu, romperam em grande gemedouro e a pedir misericórdia. António de Faria mandou fechar as portas e pôr-lhe o lume por seis ou sete bandas. Como a construção era de madeira breada [...] o lume ateou-se rapidamente. Causavam horror os urros que os miseráveis soltavam; alguns lançaram-se pelas frestas que havia no tecto e vinham acabar nas pontas das lanças que os nossos soldados erguiam para os esperar
«No meu batalhão [em Angola] éramos 600 militares e tivemos 150 baixas. Era uma violência indescritível [...] Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. [...] E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava, e como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros.»

Desde o Século XVI, com a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, até ao Século XX, com este episódio mais recente envolvendo as carnificinas do aguerrido Batalhão de Caçadores 3835 de António Lobo Antunes, parece ser sina lusitana não deixar que a verdade atrapalhe uma boa narrativa de guerra. Já imaginaram o fracasso editorial que não seria se o soldadinho tivesse apenas ido com o Pai Natal e o palhaço no comboio ao circo?
Uma nota final para um exemplo da ignorância e incompetência na RTP (da jornalista Teresa Nicolau e da editora Vanessa Brízido). O entrevistado da notícia chama-se Carlos Matos Gomes, que por vezes usa o pseudónimo literário de Carlos Vale Ferraz e não Carlos Vaz Ferraz...

ARCHANGEL GABRIEL


Haverá imensos casos em que a pobreza das letras de uma música não nos desperta qualquer interesse. Outros não. Todos reconhemos uma letra bem trabalhada. Este caso de Angel Gabriel (2001) é um dos raros casos que me deixa na dúvida. Aquela inveja por Gabriel (pelas suas asas, pela sua luz, pelo seu coração...) poderá ter interpretações mais elaboradas? Se se permitirem essas interpretações, haverá então alguma razão particular para Gabriel ter sido despromovido de arcanjo a anjo?... A música é muito bonita!

28 agosto 2010

PORQUE HOJE É SABADO, DIA DE «PASSEAR» O EXPRESSO

Outro dia, encontrei-me pela enésima vez na situação de ter que contrariar um meu interlocutor que, a propósito de uma entrevista que saíra no Expresso (a com Carlos Queiroz), partia do pressuposto que eu comprara o jornal. Penso que já aqui escrevi que considero o Expresso uma fraude. Folheie-se o jornal e constata-se que mais de metade do espaço se destina à publicidade – há mesmo separatas inteiras dedicadas a ela! – e o que sai publicado na parte restante não justifica em quantidade e qualidade o dobro do preço cobrado, quando em comparação com as edições de fim-de-semana da concorrência.
Contudo, como fraude, creio que ela é simultaneamente uma fraude entrosada noutra fraude: a da preocupação com a informação e a cultura demonstrada pela classe média-alta portuguesa. Nesse aspecto, o jornal Expresso satisfaz como mais nenhum as necessidades daquela classe em mostrar essa preocupação com o menor cansaço intelectual: há um saco de plástico que passa por status, na realidade repleto de separatas que são para o lixo e depois, há os dois ou três cadernos de leitura obrigatória, cujas páginas se folheiam rápida e compassadamente, preenchidas pela metade com publicidade…
O Expresso é um jornal que, reconhecidamente, não serve para se ler. O Expresso serve apenas para mostrar que se leu – os cabeçalhos nos casos mais extremos da preguiça... Como em muitos outros exemplos, é um excelente paradigma de como colectivamente tendemos a ser – a começar pelas elites! – um povo superficial e pouco exigente consigo mesmo. O que nos torna tristes porque depois não gostamos de nos revermos assim. Mas, não nos esqueçamos, que se assim não fosse, nunca teríamos a oportunidade de possuir como faróis da intelectualidade mediática figuras tão distintas como Marcelo Rebelo de Sousa ou Vasco Correia Guedes…

27 agosto 2010

O MARIDO OU O POLÍTICO?

A carreira política de George Wallace (acima, do lado esquerdo, em segundo plano) foi repleta de peripécias conforme sugerirão as outras fotografias deste poste. Mas o meu destaque vai para o momento da fotografia inicial, para a qual é preciso uma pequena explicação. Wallace fora eleito Governador do Alabama (1963-67) e a Constituição Estadual impedia-o de se reapresentar ao cargo. Sendo um homem imaginativo e cheio de expedientes, Wallace lembrou-se da sua mulher Lurleen B. Wallace (acima, à direita) para concorrer às eleições de 1967, que ela ganhou.

Para além da antipatia intrínseca suscitada por ser um cacique estadual, George Wallace podia ufanar-se de despertar uma notoriedade nacional e um ódio rábico dos sectores mais liberais da sociedade norte-americana de então ao apresentar-se como uma das figuras mais destacadas a defender a manutenção da segregação das raças - não fosse o Alabama um dos Estados da região conhecida como o Sul Profundo. Acontece porém que apareceu um pequeno problema no esquema engendrado por si para se manter por interposta pessoa à frente do Alabama…
Fora diagnosticado um cancro no útero a Lurleen Wallace que depois metastizara para outros órgãos apesar de ter sido extraído e as perspectivas de evolução da doença não se afiguravam promissoras. Regressemos então à fotografia inicial, que foi tirada à entrada do M.D. Anderson Hospital de Houston, Texas, em Março de 1968 onde a governadora Lurleen Wallace se iria submeter a mais sessões de quimioterapia. Antecipando que iria perder o acesso ao poder e a mulher, é caso para nos perguntarmos a quem pertencerá aquela expressão preocupada de Wallace: ao marido ou ao político?

E antes que alguém pense que a pergunta possa ser cruel, convém que saiba que até ao fim George Wallace negou publicamente a gravidade da doença da mulher, continuando a manter os seus compromissos pessoais para a sua candidatura presidencial de 1968, a que Lurleen só começou a faltar na última semana antes da morrer em 7 de Maio de 1968. No dia anterior, cancelara a sua última entrevista televisiva em que iria dar mais uma vez o seu apoio à candidatura do marido… Quanto ao Vice-Governador que lhe sucedeu, tornou-se rapidamente um dissidente da facção Wallace

AINDA O BOCA DOCE, MAS A PRETEXTO DELE

Ontem só me referi a ela, elogiando-a. Hoje será de toda a justiça afixá-la aqui, à tal Crónica imortal de Miguel Esteves Cardoso escrita a pretexto do pudim Boca Doce e publicada no Expresso em Outubro de 1985 (clicar em cima da imagem para a ampliar). Cavaco Silva acabara de ganhar as eleições legislativas e afigurava-se uma incógnita a forma como se viria a desempenhar do cargo de Primeiro-Ministro. Acima disso, como constantes do comportamento lusitano de então e de sempre, a Crónica contém conceitos fundamentais para a antropologia pátria. A começar pela constatação que em Portugal nós não comemos porque – ou seja, por uma causa – antes comemos parai.e., com uma finalidade.

26 agosto 2010

O PUDIM BOCA DOCE AO LONGO DOS TEMPOS

Nem imagino quantos se lembrarão ainda dos pudins Boca Doce (pretexto para uma das crónicas imortais de Miguel Esteves Cardoso, mas isso é outra história…) e do seu inesquecível jingle publicitário: O Boca Doce é bom, é bom é! Diz o avô e diz o bebé!
Mas o que me importa aqui é que acompanhem através do tempo como a mesma mensagem publicitária se adaptou aos tempos. Começou pela criança ser gulosa e atrevida e fintar o avô para lhe roubar o pudim. Depois os velhos passaram a pertencer à terceira idade
E pertencer-se à terceira idade era uma nova maneira jovial de se ser velho e é por isso que é o avô que passa a roubar o pudim à neta. Mas roubar um pudim a uma criança não será um acto demasiado violento para fazer a uma criança?… Inverta-se então a cena.
O avô passa a dar o pudim à neta e a cena perde toda a piada. No último anúncio avô e neta aliam-se. Mas o mais significativo da cena é afinal o sorriso de condescendência como a mãe aceita as colheradas da filha que aparecem no pudim. As da filha, não as do pai...

25 agosto 2010

O PEQUENO CASO DO PLÁGIO DO CASO LAVON

Fui surpreendido quando vim a descobrir uma entrada na Wikipedia em português em que o texto fora retirado porque era idêntico ou muito semelhante àquele que eu colocara aqui no Herdeiro de Aécio sobre esse mesmo assunto – o Caso Lavon (veja-se abaixo). A surpresa foi tanto maior quanto não fora eu sequer a colocar aquele texto na Wikipedia… O texto, a respeito de uma operação de espionagem israelita que se tornara num fiasco e que precisara de um bode expiatório (Pinhas Lavon, acima), fora colocado por mim em Fevereiro deste ano para explicar que, como mais uma vez acontecera no Dubai, os israelitas não têm vergonha nenhuma quando precisam de desencadear operações de guerra suja no exterior – são impermeáveis às recriminações da opinião pública mundial
Já respondi numa caixa de comentários deste blogue a alguém que me desafiava a contribuir para a Wikipedia, que isso me obrigaria a adoptar uma sobriedade no tratamento dos textos que os tornaria chatos – pelo menos para mim que os escrevo… Ali, para ir buscar um exemplo já ao meu poste anterior, estaria proibido de comparar o egocentrismo obcecado que deu mostras António do Crato depois de ter partido para o exílio com aquele que dá mostras Pedro Santana Lopes – uma comparação que eu até acho muitíssimo apropriada… Neste Caso Lavon ainda pensei em enviar a permissão para que a entrada voltasse a ser publicada até me lembrar que, ao fazê-lo, estaria a legitimar à posteriori a atitude de um imbecil que se havia decidido a plagiar-me indirectamente sem sequer me pedir a opinião...

RECORDANDO A BATALHA DE ALCÂNTARA (1580)

Foi há 430 anos, precisamente neste dia 25 de Agosto, que se travou a Batalha de Alcântara, opondo o Corpo Expedicionário de Filipe II, que era comandado pelo Duque de Alba, às forças que se haviam pronunciado a favor de António do Crato. A gravura acima é aquilo que mais próximo teremos de uma imagem de época dessa Batalha. Terá sido desenhada algum tempo depois, possivelmente para explicar como decorrera a acção a Filipe II, usando uma vista panorâmica a partir de Monsanto (clicar em cima da gravura para a ampliar), mostrando os principais locais da acção, desde a Torre de Belém, à direita, até ao Castelo de Palmela (!!!) a cinco léguas de distância, no canto superior esquerdo…
Sabe-se qual foi o desfecho da Batalha – a vitória decisiva das forças favoráveis à unidade ibérica – mas perderam-se muitos detalhes sobre as condições em que a Batalha foi travada. A começar pelo local. Depois do Século XVIII, com a construção do troço elevado do Aqueduto das Águas Livres, perdeu-se a perspectiva de paisagem que então existiria, e que acima se procura recuperar, numa fotografia datada de 1920. Note-se porém que, nos finais do Século XVI, as duas encostas não teriam habitações excepto no fundo do vale, mais fértil, onde haveria algumas junto à ribeira de Alcântara que então estaria quase seca – era Verão (abaixo). Crê-se que o dispositivo de defesa assentaria na ponte que a atravessava...
Sobre a qualidade das tropas combatentes, a superioridade era claramente das unidades profissionais do Corpo Expedicionário do Duque de Alba. Do outro lado, em Portugal nunca houvera muitos profissionais, vários deles haviam morrido em Alcácer Quibir dois anos antes e muitos dos que então sobreviveram não estavam agora com a causa de António do Crato. Sobre a quantidade das tropas combatentes (os efectivos) a nossa ignorância demonstra-se pelo facto das entradas da Wikipedia em português, castelhano e inglês sobre a Batalha de Alcântara se referirem efectivos totalmente díspares: terão sido 9.800 defensores contra 7.250 atacantes, 27.500 contra 19.800 ou 8.500 contra 14.800?...
Os números da versão inglesa (os últimos) são os únicos que referem a fonte e são os que mais se aproximam dos estimados por Carlos Selvagem em Portugal Militar (p. 345): 7.000 contra 16.000. Segundo este último, que se recusa a dar ao recontro a categoria de batalha – chama-lhe Acção da Ribeira de Alcântara – o ataque das tropas do Duque de Alba ao centro do dispositivo defensivo do inimigo iniciou-se às 7 da manhã de 25 de Agosto de 1580, levando as suas tropas a atacar viradas para Nascente, com o Sol nos olhos, uma daquelas decisões erradas que só se torna verosímil se atendermos à atitude desafiadora e sobranceira para com os inimigos que costuma ser tão típico dos dirigentes castelhanos…
Porém, a vitória final ter-se-á ficado a dever a uma manobra de envolvimento dos terços espanhóis pelo flanco esquerdo enquanto os que haviam desencadeado aquele ataque frontal inicial, depois de repelidos, se limitaram a fixar os defensores até eles se verem sob o perigo de cerco e começarem a debandar. Pelo que viria a fazer depois, António do Crato vir-se-ia a revelar uma espécie de Pedro Santana Lopes precoce, mostrando–se tão obcecado com os interesses da sua causa quanto obtuso aos danos que o seu país sofreria por causa disso. Teria sido, muito provavelmente, um mau rei. O nacionalismo veio depois a recuperar-lhe a imagem por ter tido razão antes de tempo… E hoje, como seria?...

24 agosto 2010

A REGRA IMPLÍCITA

O senhor da fotografia abaixo chamava-se Nelson Rockefeller (1908-79) e era o Vice-Presidente dos Estados Unidos (1974-77) no momento em que ela foi tirada em 1976. Como o seu apelido indica, Rockefeller era rico, imensamente rico, mas era mais conhecido pela sua carreira política (fora Governador do Estado de Nova Iorque entre 1959 e 1973) e pelo seu posicionamento ideológico: era um Republicano liberal, algo que nos dias que atravessamos será quase do domínio da arqueologia da ciência política. E também pela atitude descontraída de estar na política, não pertencesse ele a uma das famílias mais poderosas dos Estados Unidos.
Numa ocasião em que acabara de discursar num comício numa cidade do interior do seu Estado (Binghamton), e depois de ter sido provocado por um grupo na assistência que não se calara durante o seu discurso, Rockefeller reagiu a mais uma boca com o gesto acima que tanto o veio a popularizar. No dia seguinte, o instantâneo aparecia em toda a imprensa norte-americana, acompanhado de comentários onde predominava a censura, o que era uma surpresa na medida em que Rockefeller gozara até aí das simpatias gerais da comunicação social. Mas o Vice-Presidente rompera com uma das regras implícitas à actividade…
Rockefeller violara aquela regra não escrita (mas universalmente aceite) que os políticos em campanha têm que cortejar sempre a audiência e ignorar olimpicamente as provocações que lhe possam ser endereçadas. Ora essa coreografia é uma das vantagens decisivas para os jornalistas que acompanham políticos. Sem ela, e se estes últimos se tornam imprevisiveis e respondem no mesmo tom do insulto que receberam (como acontece com o mal amado Nicolas Sarkozy no vídeo acima), os jornalistas ficam com receio de, como intermediários entre os políticos e o público, se ousados, poderem vir a receber também o mesmo tratamento.

23 agosto 2010

YURI GAGARINE COMO TOP MODEL DO SOCIALISMO CIENTÍFICO

Entre a dúzia de fotografias que sintetizem o Século XX, mal terá estado a selecção se ela não incluir a fotografia acima ou uma sobre o mesmo tema da conquista espacial. Esta acima, apesar de cuidadosamente posada, com um Yuri Gagarine sonhador que não encara a objectiva, é a minha favorita, batendo toda a concorrência, incluindo a da Apollo 11. Um dos paradoxos da Corrida Espacial é que, sendo uma daquelas actividades onde faria todo o sentido valorizar o trabalho colectivo da equipa, que até é um dos aspectos doutrinários mais valorizados pelo marxismo-leninismo, os dirigentes soviéticos preferiram no caso, optar por um Herói individual para protagonizar esses feitos da equipa. Foi também tendo isso em conta que Yuri Gagarine veio a ser cientificamente seleccionado para ser o primeiro cosmonauta. De baixa estatura e sem grande presença, o Herói do primeiro voo tripulado no espaço compensava isso com carisma, um sorriso contagiante e uma atitude simples, despertando a simpatia de quem com ele privava de perto e de longe.
Gagarine, tanto cativava a raínha Isabel II no lanche que esta lhe ofereceu, ao confessar-lhe que não fazia a mínima ideia qual a finalidade da maioria dos adereços do serviço de prata, quanto cativara a multidão que o viera esperar ao aeroporto de Moscovo para a recepção oficial, quando marchava pelo tapete vermelho com o atacador direito desapertado (abaixo)…

22 agosto 2010

DE GAULLE - LA SOLITUDE

Será difícil associar duas pessoas mais diferentes que Charles de Gaulle (1890-1970) e Léo Ferré (1916-1993), mas também é verdade que dificilmente encontraremos um título mais adequado para a fotografia acima do primeiro do que o título de uma das canções de maior sucesso do segundo: La Solitude (A Solidão), abaixo (1971). Pois é uma verdadeira solidão a que retrata esta fotografia tirada a de Gaulle em Junho de 1969 na Irlanda, quando ele tinha 78 anos e já estava no crepúsculo da sua vida e carreira política. A solidão parece apenas perturbada pelo vento que levanta o seu sobretudo. Menos de dois meses antes, o general perdera um referendo que apresentara ao eleitorado francês, demitira-se da Presidência da República e afastara-se de vez da política francesa. Viria a morrer 17 meses depois.

21 agosto 2010

SHAFT

Se há filmes que têm um início que se aproxima da perfeição como The Big Chill, há filmes cujo início é o filme. Em Shaft (acima, de 1971), depois do impacto dos primeiros cinco minutos com a apresentação do genérico, acompanhado de um dos mais poderosos temas musicais da história do cinema, não há continuação que aguente aquele ritmo. De resto, suponho que já nem interessará saber mais pormenores sobre John Shaft. É um gajo coolYou´re Damn´ Right!

20 agosto 2010

VÍDEOS JORNALISTICAMENTE HISTÓRICOS E VÍDEOS VERDADEIRAMENTE HISTÓRICOS

O vídeo abaixo foi afixado no You Tube sob o título: Vídeo Histórico com as últimas tropas combatentes abandonando o Iraque. É um segmento da reportagem da MSNBC cobrindo a operação televisiva de mostrar aos norte-americanos a sua retirada do Iraque – e por isso foi marcada para as 04H00 da manhã no Iraque, hora incómoda para os que estão de saída, mas a melhor hora para a audiência televisiva nos Estados Unidos…
No vídeo, a jornalista que está em Bagdade bem poderá alegar que a solenidade do momento a arrepia e lhe provoca pele de galinha, mas a verdade é que a data de momentos equivalentes do passado, nomeadamente a da retirada das últimos tropas combatentes norte-americanas do Vietname do Sul, é uma data envolvida em controvérsia, sendo a mais razoável a de Agosto de 1972, há precisamente uns 38 anos atrás…
Porém, não haverá vídeos desse momento histórico, porque os verdadeiros vídeos e fotografias históricas não surgem em função das conveniências da comunicação social mas em função da realidade, como acontece com o vídeo acima, datado de finais de Abril de 1975 e esse sim histórico, mostrando os momentos finais do regime sul-vietnamita. Se fosse a sério, mandava a precaução esperar alguns anos antes de classificar esta retirada do Iraque…

19 agosto 2010

ICBM

Depois de MAD (Destruição Mútua Assegurada em inglês), o acrónimo mais conhecido a ter sido popularizado pela Guerra-Fria foi ICBM (Míssil Balístico Intercontinental). Os ICBM são mísseis que, quando lançados, estão programados para descreverem uma trajectória balística (acima) com alcances superiores a 5.500 km e que em caso de guerra transportariam ogivas nucleares para serem detonadas no local de impacto.

O primeiro ICBM operacional foi o R-7 soviético (acima), que se tornou famoso não como arma de guerra, mas no campo da astronáutica, a partir de versões adaptadas que o tornaram no veículo lançador tanto do primeiro satélite artificial (Outubro de 1957) como do primeiro voo tripulado (abaixo, Abril de 1961). Sendo um sucesso científico, verificou-se – um segredo bem guardado à época! – que o R-7 era um fiasco do ponto de vista militar.

É que a arma que fora concebida para (evitar) causar o Apocalipse (abaixo, a cena final do filme Dr. Strangelove) precisava de cerca de 20 horas de preparação prévia antes do lançamento para enchimento dos depósitos e não podia ser deixada nesse estado de prontidão mais de 24 horas consecutivas por causa do efeito corrosivo do combustível sobre o metal. A demora em a accionar tornava-a vulnerável a qualquer ataque preemptivo¹.

Passaram-se 50 anos e ainda bem que a Guerra-Fria acabou e as nossas preocupações com o Holocausto nuclear desapareceram com ela, porque quando se observa tanto a mobilidade como a versatilidade de lançamento de um míssil RT2 – PM Topol russo moderno (abaixo – entretanto os mísseis norte-americanos também passaram pela mesma evolução...), fica a sensação que o Holocausto de hoje chegar-nos-ia como um estalar dos dedos

¹ Encontrei numa ligação a propósito da expressão um bom exemplo de como quem se propõe esclarecer dúvidas de português tem de perceber doutros assuntos que não só o português. Ao contrário do que lá está sugerido, um ataque preemptivo é conceptualmente diferente de um ataque preventivo. A substituição de uma expressão por outra é, portanto, um disparate.

18 agosto 2010

O NASCIMENTO DA ÍNDIA E DO PAQUISTÃO EM TRÊS FOTOGRAFIAS

Já aqui me referi algumas vezes a este assunto também conhecido como a Partição da Índia assim como o fiz em relação à realidade que existia antes de Agosto de 1947. Contudo, mais do que explicações e sendo a sociedade indiana uma sociedade intrinsecamente estratificada, gostaria de seleccionar três fotografias que mostrassem de forma sintética como cada uma das grandes classes sociais indianas terá reagido ao acontecimento.
Acima, a classe dirigente (Jinnah e Gandhi), ciente das suas responsabilidades, faz um esforço para mostrar uma cordialidade que não existe… Ao centro, a classe média dos funcionários, descobre em si um novo patriotismo em prol da sua futura pátria, o que leva a disputas livro a livro pela repartição do espólio de uma biblioteca… Em baixo, o povo saqueia e mata e milhões fogem. Retoque tipicamente indiano, os abutres também participam...

17 agosto 2010

AS DUAS RÚSSIAS

As duas fotografias aéreas deste poste podem sintetizar duas formas completamente distintas de conceber a Rússia. Na de cima vemos o Kremlin em Moscovo, uma fortaleza cerrada de concepção medieval ao redor da qual a cidade se veio a desenvolver. Foi a residência oficial dos czares até ao Século XVIII e depois de 1918 até à actualidade. Adjacente às suas muralhas vê-se, ao fundo, a famosa Praça Vermelha.
Na de baixo, vemos o Palácio de Inverno em São Petersburgo, um palácio clássico num estilo muito mais ocidentalizado e aberto, com a sua fachada principal virada para a enorme Praça do Palácio e que desempenhou o mesmo papel de residência oficial dos monarcas russos entre 1762 e 1917. Comparando-as, até mesmo os rios adjacentes aos dois lugares (o Moskva e o Neva, por esta ordem) parecem fluir de forma diferente...
Para lá de quaisquer considerações ideológicas, é significativo que Lenine tenha alcançado o poder na Rússia conquistando o edifício de baixo em 1917 mas tenha preferido vir a exercê-lo ocupando o edifício de cima... Os seus sucessores mantiveram a sua decisão que veio depois a ser prorrogada pelos presidentes eleitos democraticamente que ocuparam o Kremlin depois de 1991. São duas concepções do exercício de poder na Rússia…

16 agosto 2010

A QUESTÃO DO IDIOMA NACIONAL SUL-AFRICANO

Escondida por detrás da questão maior e mais delicada da diminuição das diferenças na distribuição de riqueza entre as várias raças e regiões sul-africanas (veja-se o mapa acima), existe um outro potencial problema político para o futuro, o de saber qual será a evolução da importância relativa das línguas daquele país. Em 1994, com a ascensão ao poder do ANC, o país passou a ter, em vez dos dois tradicionais de origem europeia do regime anterior (africânder e inglês), um total de onze idiomas nacionais. Todos esses nove novos idiomas nacionais eram, naturalmente, línguas africanas.
A decisão teve tanto de simbólico quanto de difícil implementação prática. Apesar das soluções imaginativas o novo Hino Nacional da África do Sul só contemplou espaço para usar cinco idiomas. Forjado em 1997 a partir da justaposição de duas melodias diferentes, tornou-se por isso no único Hino do Mundo que não termina no mesmo tom do início. A letra também teve que ser um pouco improvisada e pelo detalhe desse improviso poderemos perceber a importância relativa entre as diferentes línguas assim como a sua implantação geográfica (ouçamo-lo acima e vejamos a letra e as explicações mais abaixo).
Nkosi sikelel' iAfrika (Deus abençoe África)
Maluphakanyisw' uphondo lwayo, (Que eleve alto a Sua Glória)

Estes dois versos iniciais são cantados em Xhosa. Este privilégio dever-se-á ao facto do Xhosa ser o idioma materno de Nelson Mandela, Thabo Mbeki e da maioria dos outros dirigentes históricos do ANC como Oliver Tambo e Walter Sisulu. Para além, claro, de acordo com os dados do Censo de 2001, ser o idioma materno de 17,6% da população da população sul-africana.
Yizwa imithandazo yethu, (Deus ouça as nossas preces)
Nkosi sikelela, thina lusapho lwayo. (E nos abençoe, Seus filhos)

A tradicional rivalidade entre xhosas e zulus traduz-se na preocupação de que os próximos versos serem cantados em Zulu. Sendo o maior grupo linguístico sul-africano, representando 23,8% da população, os zulus foram conhecidos por se terem distanciado politicamente do ANC. Só recentemente, com a eleição para a presidência em 2009 de Jacob Zuma, os zulus viram um dos seus a ocupar o cargo supremo do país.
Morena boloka setjhaba sa heso, (Deus proteja a nossa nação)
O fedise dintwa le matshwenyeho, (Suprima todas as guerras e sofrimentos)
O se boloke, O se boloke setjhaba sa heso, (A nossa nação, proteja a nossa nação)
Setjhaba sa, South Afrika - South Afrika (A nossa nação, África do Sul, África do Sul)

A opção pelo Sotho para cantar esta segunda quadra é aquela que me parece mais difícil de explicar. O Sotho é um idioma importante demograficamente (7,9% da população) mas há outros idiomas oficiais sul-africanos que ficaram excluídos que têm mais peso demográfico – o Tswana, por exemplo. Por outro lado, ao Sotho falta-lhe a importância política dos outros quatro idiomas seleccionados para o Hino...
Uit die blou van onse hemel, (Ressoando dos nossos céus azuis)
Uit die diepte van ons see, (E dos nossos mares mais profundos)
Oor ons ewige gebergtes, (Para lá das montanhas eternas)
Waar die kranse antwoord gee, (Onde se escutam as repetições do eco)

Muda a melodia para introduzir a quadra cantada em Africânder, que é um trecho do Hino do regime anterior, naquela que terá sido a decisão mais contestada na composição. Mas o Africânder, mais do que apenas o idioma da repressão do Apartheid, também é a terceira língua materna mais falada na África do Sul (13,3% da população) e que é largamente maioritária (acima) nas regiões sudoeste do país.
Sounds the call to come together, (Soa o apelo à unidade)
And united we shall stand, (E unidos permaneceremos)
Let us live and strive for freedom (Deixem-nos viver e pugnar pela liberdade)
In South Africa our land. (Na África do Sul, a nossa terra)

Obviamente, o Inglês ficou para o fim, incluindo a mensagem positiva de unidade por dever ser a língua mais acessível a todos os sul-africanos. Note-se contudo no mapa de cima como o Inglês é a língua materna de muito pouca gente na África do Sul (8,2% da população) e como ela se concentra nas regiões urbanas. E tê-lo-ia sido de menos gente ainda, se o questionário do referido Censo de 2001 tivesse sido diferente¹.
Neste momento, por causa das taxas de crescimento demográfico, as línguas de origem africana estão a ganhar importância. Mas a tendência para o futuro da África do Sul, se nela se preservar o regime democrático, será para que a maioria negra deixe de se comportar como um bloco monolítico por detrás do ANC e se comece naturalmente a dividir por causa dos conflitos de interesses diferentes entre as várias comunidades linguísticas e regionais que a compõem. E será muito interessante ver então o emprego do papel das várias línguas sul-africanas na evolução dessa situação²

¹ Perguntava-se aos inquiridos qual das 11 línguas nacionais usava em casa, ou então se usava outra, sem especificar. Muitos imigrantes preferiram escolher a resposta inglês em vez de outra – apenas 0,5% das respostas. Um caso evidente dessa distorção em favor do inglês foi o das respostas da comunidade indiana: 94% das respostas (um milhão de respostas!) indicavam que o inglês era a língua de casa e não o hindi, o gujarati, o tamil, o punjabi, etc., como seria de esperar.² Uma análise prospectiva interessante (porém datada e um pouco académica demais...) do que poderá ser a evolução das línguas na África do Sul pode ser lida no Capítulo 7 de Words of the World.

15 agosto 2010

MÃE É (CADA VEZ MAIS) MÃE

Antigamente, nos tempos em que se cumpria o serviço militar obrigatório, a ida para a tropa era encarada como um abandono definitivo dos confortos caseiros, nomeadamente aqueles únicos, que só as mães sabiam dar. Agora, quando o serviço militar deixou de ser obrigatório na maioria dos países ocidentais, percebe-se pelos exemplos dos países que o mantêm (como é o caso dos da Europa de Leste) que outras transformações sociais profundas estarão em curso e que as sentinelas já não conseguem barrar a entrada às mães às portas dos quartéis: acima vê-se uma mãe a segurar a AK do filho enquanto ele conferencia com os seus camaradas de armas. Se antigamente se dizia que Mãe é Mãe a tendência parece ser para que Mãe seja cada vez mais Mãe

14 agosto 2010

OS HOMENS DO PRESIDENTE, UMA REALIZAÇÃO DOS ESTÚDIOS WALT DISNEY

No passado dia 9, em jeito de efeméride, evoquei o discurso de há 36 atrás em que Richard Nixon se demitiu do cargo de Presidente dos Estados Unidos e, por arrasto, o Caso Watergate, que esteve por detrás do gesto. E em jeito de contraste, adicionei uma fotografia do funeral de François Mitterand, com as suas duas famílias, evocando-as e, por arrasto, a todos os outros segredos que ele protegeu com a cumplicidade dos jornalistas encarregados de cobrir as suas actividades durante os 14 anos que foi Presidente de França. Enquanto o primeiro episódio é motivo de orgulho dos membros da classe (porventura dos mais frequentemente referidos), o segundo é daqueles que é, como se diz metaforicamente, sempre varrido discretamente para debaixo do tapete pelos mesmo membros da classe. E, se este poste fosse em formato de reportagem, assim seria uma boa forma de o terminar, sob as palavras fortes do contraste deste maniqueísmo do combate entre o bom jornalismo e o mau jornalismo.

Mas nem sempre deve ser assim porque a evolução da História a sério muitas vezes não se restringe aos ciclos semanais da informação jornalística. A História que conhecemos do Caso Watergate (cujos detalhes creio ser dispensável tornar a contar aqui) em 2010 é muitíssimo diferente daquela com que ela se encerrou nas páginas dos jornais há 36 anos atrás. O momento mais importante nessa evolução terá sido aquele dia de Maio de 2005 em que, depois de mais de 30 anos de segredo, a pessoa que era a fonte das principais notícias do Caso e que ficou conhecida pela alcunha pitoresca de Garganta Funda resolveu sair do anonimato. Chamava-se Mark Felt e fora um dos mais altos quadros do FBI na época dos acontecimentos. E a grande maioria da informação com que ele municiou os dois jornalistas heróis (Bob Woodward e Carl Bernstein) para que eles brilhassem com as suas investigações jornalísticas, era originária do material que lhe aterrava regularmente na sua secretária profissional. Ou seja, o FBI vigiava por rotina as actividades dos próprios presidentes...
A revelação de quem Felt era e do cargo que desempenhara terá sido caso para levantar retrospectivamente muitas questões pertinentes sobre a ética de, invocando o sacrossanto argumento da protecção da fonte, ter sido escondido da opinião pública durante mais de 30 anos um aspecto fundamental do Caso Watergate ou da justiça dos louros que haviam sido atribuídos às investigações de Woodward e Bernstein. Durante essas três décadas, os jornalistas e os responsáveis do Washington Post que conheciam a identidade de Felt permitiram, por omissão e porque certamente lhes convinha, a criação de uma espécie de fábula sobre a importância do jornalismo de investigação independente numa democracia, único instrumento possível para a denúncia dos segredos do aparelho do Estado, que os membros deste costumam esconder ciosamente, fora do alcance da opinião pública. Uma treta! Com a identificação de Felt percebe-se que o Caso Watergate não foi nada disso: um dos braços poderosos do tal aparelho do Estado instrumentalizou a imprensa para conspurcar um outro braço, teoricamente mais poderoso e a quem devia obediência, até que outros braços rivais levaram ao derrube do seu titular.

E também na altura ficou por investigar a própria pessoa de Mark Felt para se tentar perceber o que o motivou a fazer o que fez. Uma ironia acabrunhante é que o próprio Felt veio a ser acusado e condenado em 1980 por ter, enquanto dirigente do FBI, ordenado assaltos com colocações de escutas ilegais a sedes de organizações suspeitas, afinal precisamente aquilo que esteve na origem do Caso Watergate em 1972… Obviamente, não o terá escandalizado os métodos usados pela a famosa equipa de Canalizadores da Casa Branca. Veio a deduzir-se então (em 2005) que a causa, muito mais prosaica, fora o despeito. Felt era a terceira pessoa mais graduada do FBI quando o seu dirigente de sempre J. Edgar Hoover morreu em Maio de 1972. Mark Felt esperava vir a ser o sucessor mas, em vez disso, o Presidente preferiu fazer uma nomeação política para desanuviar o FBI de 37 anos consecutivos de controlo de J. Edgar Hoover. Felt levou a mal, resolveu vingar-se… e todos os jovens jornalistas recém formados ainda hoje ouvem falar do memorável trabalho de investigação de Woodward e Bernstein!
Mas não será apenas isso. Em 1972, Woodward e Bernstein tinham menos de 30 anos e podiam ser dois jovens jornalistas tão ambiciosos quanto inexperientes, mas Ben Bradlee, o seu chefe, já passara dos 50 e, sabendo a identidade da fonte que os alimentava, saberia o que estava em jogo e por onde quereria ir. É que, em termos mediáticos, tão suculenta teria sido a história que se veio a publicar, a de um Presidente sem escrúpulos e que possuía equipas privadas para os seus golpes sujos, como a história de uma agência federal (FBI) que afinal se regia por regras próprias e que até se dava ao desplante de espiar por rotina o próprio Presidente, a pessoa a quem deviam obediência. Em suma, durante mais de 30 anos, a cumplicidade concertada de Bradlee, Woodward e Bernstein permitiu não só que todo este lado sórdido do Caso Watergate permanecesse escondido da opinião pública, como que, ainda por cima, uma fábula mentirosa se construísse em cima do Caso. Quem gostar de perorar sobre deontologia da classe dos jornalistas tem aqui bastante com que se entreter…

Mas, coisa outra, mais interessante para o caso, são as consequências que as confissões de 2005 deveriam ter na leitura do que se passou. Um filme como Os Homens do Presidente, que foi estreado e estrelado em 1976 por uma constelação de que faziam parte Robert Redford (como Bob Woodward), Dustin Hoffman (Carl Bernstein) e Jason Robards (Ben Bradlee) passou a ter a validade como documento histórico de um daqueles filmes de entretenimento dos Estúdios da Disney que são baseados vagamente em acontecimentos reais – só que, ao contrário da Branca de Neve, do Dumbo ou do Bambi, não são desenhos animados... Continuar a invocar o filme e a manter a fábula do jornalismo de investigação em que ele assenta, cinco anos depois do impacto da confissão de Mark Felt e dois anos depois da sua morte, não é somente nostálgico, é estúpido, obtuso e mesmo sinal de ignorância