
No
passado dia 9, em jeito de efeméride, evoquei o discurso de há 36 atrás em que Richard Nixon se demitiu do cargo de Presidente dos Estados Unidos e, por arrasto, o
Caso Watergate, que esteve por detrás do gesto. E em jeito de contraste, adicionei uma fotografia do funeral de François Mitterand, com as suas duas famílias, evocando-as e, por arrasto, a todos os outros segredos que ele protegeu com a cumplicidade dos jornalistas encarregados de cobrir as suas actividades durante os 14 anos que foi Presidente de França. Enquanto o primeiro episódio é motivo de orgulho dos membros da classe (porventura dos mais frequentemente referidos), o segundo é daqueles que é, como se diz metaforicamente, sempre
varrido discretamente para debaixo do tapete pelos mesmo membros da classe. E, se este
poste fosse em formato de reportagem, assim seria uma boa forma de o terminar, sob as palavras
fortes do contraste deste maniqueísmo do combate entre o bom jornalismo e o mau jornalismo.
Mas nem sempre deve ser assim porque a evolução da História a sério muitas vezes não se restringe aos ciclos semanais da informação jornalística. A História que conhecemos do
Caso Watergate (cujos detalhes creio ser dispensável
tornar a contar aqui) em 2010 é muitíssimo diferente daquela com que ela se encerrou nas páginas dos jornais há 36 anos atrás. O momento mais importante nessa evolução terá sido aquele dia de Maio de 2005 em que, depois de mais de 30 anos de segredo, a pessoa que era a fonte das principais notícias do
Caso e que ficou conhecida pela
alcunha pitoresca de
Garganta Funda resolveu sair do anonimato. Chamava-se
Mark Felt e fora um dos mais altos quadros do FBI na época dos acontecimentos. E a grande maioria da informação com que ele
municiou os dois jornalistas heróis (Bob Woodward e Carl Bernstein) para que eles
brilhassem com as suas
investigações jornalísticas, era originária do material que lhe
aterrava regularmente na sua secretária profissional. Ou seja, o FBI vigiava por rotina as actividades dos próprios presidentes...

A revelação de quem Felt era e do cargo que desempenhara terá sido caso para levantar retrospectivamente muitas questões pertinentes sobre a ética de, invocando o
sacrossanto argumento da
protecção da fonte, ter sido escondido da opinião pública durante mais de 30 anos um aspecto fundamental do
Caso Watergate ou da
justiça dos louros que haviam sido atribuídos às
investigações de Woodward e Bernstein. Durante essas três décadas, os jornalistas e os responsáveis do
Washington Post que conheciam a identidade de Felt permitiram, por omissão e porque certamente lhes convinha, a criação de uma espécie de
fábula sobre a
importância do jornalismo de investigação independente numa democracia, único instrumento possível para a denúncia dos segredos do aparelho do Estado, que os membros deste costumam esconder ciosamente, fora do alcance da opinião pública. Uma treta! Com a identificação de Felt percebe-se que o
Caso Watergate não foi nada disso: um dos
braços poderosos do tal aparelho do Estado instrumentalizou a imprensa para conspurcar um outro braço, teoricamente mais poderoso e a quem devia obediência, até que outros
braços rivais levaram ao derrube do seu titular.
E também na altura ficou por investigar a própria pessoa de Mark Felt para se tentar perceber o que o motivou a fazer o que fez. Uma ironia acabrunhante é que o próprio Felt veio a ser acusado e condenado em 1980 por ter, enquanto dirigente do FBI, ordenado assaltos com colocações de escutas ilegais a sedes de organizações
suspeitas, afinal precisamente aquilo que esteve na origem do
Caso Watergate em 1972… Obviamente, não o terá escandalizado os métodos usados pela a famosa equipa de
Canalizadores da Casa Branca. Veio a deduzir-se então (em 2005) que a causa, muito mais prosaica, fora o despeito. Felt era a terceira pessoa mais graduada do FBI quando o seu dirigente de sempre
J. Edgar Hoover morreu em Maio de 1972. Mark Felt esperava vir a ser o sucessor mas, em vez disso, o Presidente preferiu fazer
uma nomeação política para desanuviar o FBI de 37 anos consecutivos de controlo de J. Edgar Hoover. Felt levou a mal, resolveu vingar-se… e todos os jovens jornalistas recém formados ainda hoje ouvem falar do
memorável trabalho de investigação de
Woodward e
Bernstein!

Mas não será apenas isso. Em 1972, Woodward e Bernstein tinham menos de 30 anos e podiam ser dois jovens jornalistas tão ambiciosos quanto inexperientes, mas
Ben Bradlee, o seu chefe, já passara dos 50 e, sabendo a identidade da fonte que os
alimentava, saberia o que estava em jogo e por onde quereria ir. É que, em termos mediáticos, tão
suculenta teria sido a história que se veio a publicar, a de
um Presidente sem escrúpulos e que possuía equipas privadas para os seus golpes sujos, como a história de
uma agência federal (FBI) que afinal se regia por regras próprias e que até se dava ao desplante de espiar por rotina o próprio Presidente, a pessoa a quem deviam obediência. Em suma, durante mais de 30 anos, a cumplicidade concertada de Bradlee, Woodward e Bernstein permitiu não só que todo este lado sórdido do
Caso Watergate permanecesse escondido da opinião pública, como que, ainda por cima, uma fábula mentirosa se construísse em cima do Caso. Quem
gostar de perorar sobre deontologia da classe dos jornalistas tem aqui bastante com que se entreter…
Mas, coisa outra, mais interessante para o caso, são as consequências que as confissões de 2005 deveriam ter na leitura do que se passou. Um filme como
Os Homens do Presidente, que foi estreado e
estrelado em 1976 por uma
constelação de que faziam parte Robert Redford (como Bob Woodward), Dustin Hoffman (Carl Bernstein) e Jason Robards (Ben Bradlee) passou a ter a validade como documento histórico de um daqueles filmes de entretenimento dos
Estúdios da Disney que são baseados
vagamente em acontecimentos reais – só que, ao contrário da
Branca de Neve, do
Dumbo ou do
Bambi, não são desenhos animados... Continuar a invocar o filme e a
manter a fábula do jornalismo de investigação em que ele assenta, cinco anos depois do impacto da confissão de Mark Felt e dois anos depois da sua morte, não é somente nostálgico,
é estúpido, obtuso e mesmo sinal de ignorância…
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