11 março 2007

QUANDO AS SONDAGENS ENGANARAM OS MILITARES E O EPISÓDIO DA SECESSÃO DO BANGLADESH

Pela sua própria natureza, compreende-se porque os regimes militares não são grandes adeptos de eleições. Se as eleições forem livres, ainda que o sejam apenas muito relativamente, instala-se sempre um certo elemento de incerteza na condução política do país, desagradável para quem o detém. E isso é sempre muito incómodo para o regime. Só que, por outro lado, as pressões internas e internacionais são grandes para que o regime militar comece a promover gestos para o retorno a um regime regular civil.

Aliás, a esmagadora maioria dos pronunciamentos militares são acompanhados de proclamações dos seus chefes onde, para além de justificarem o acto, se tranquilizam os cidadãos quanto à transitoriedade da atitude adoptada. Às vezes o transitório é um transitório de Santa Engrácia, como na Birmânia, onde o regime militar vigora há quase 45 anos (! - lá voltaremos...), mas a ideia que importa a reter é que umas eleições organizadas por um regime militar dão sempre bom aspecto para o exterior…

É claro que umas eleições devidamente organizadas são muito melhores do que aquelas que contêm elementos de incerteza. Durante anos a fio (1964-85), os brasileiros tiveram essa figura única da coexistência de uma ditadura militar com eleições onde havia um partido do governo (Arena) e um da oposição (MDB), que podiam ser assim legitimamente classificados porque ao primeiro não era permitido perder as eleições e, consequentemente, o segundo estava proibido de as ganhar.

Mas nem sempre as operações de controlo que os militares montaram sobre os aparelhos eleitorais tiveram este sucesso. Como as eleições se ganham na fase do escrutínio, fosse por inépcia do dispositivo montado para as acompanhar, à atenção e proximidade com que esse escrutínio por observadores independentes ou ainda pela ingenuidade de acreditar nos relatórios dos seus serviços de informações, vezes houve (raras) em que o regime perdeu as eleições que havia convocado. Eis algumas.
Segundo conta Mário Soares em memórias, antes da realização das eleições para a Assembleia Constituinte a 25 de Abril de 1975, o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, se calhar para o incentivar a assumir uma postura mais de esquerda, lhe havia comunicado que, de acordo com as informações de que dispunha, o seu partido (PS) iria ficar em terceiro lugar, atrás do MDP/CDE e do PCP… Se tiverem feito fé nesses dados, a (longa) noite do escrutínio deve ter sido uma desagradável surpresa para a ala militar comunista*…

Na Birmânia, ao fim de 28 anos de ditadura militar, em 27 de Maio de 1990 as autoridades militares promoveram eleições gerais de acordo com planos de reconciliação nacional estabelecidos um ano antes. A Liga Nacional para a Democracia (NLD), dirigida pela agora famosa Aung San Suu Kyi, ganhou 392 dos 489 lugares em disputa na Assembleia Popular, que nunca reuniu. Contrariamente ao que aconteceu em Timor, o Prémio Nobel da Paz (1991) a ela atribuído não teve aqui qualquer impacto político na evolução da situação.

A bem da verdade, a decisão do presidente indonésio Jusuf Habibie de promover um referendo sobre o futuro de Timor-Leste em Janeiro de 1999, não foi recebida lá muito bem entre o comando das suas forças armadas (ABRI). Mas também é verdade que a Indonésia estava numa situação de fragilidade política extrema e que a ABRI ainda dispôs de 6 meses para organizar as coisas de forma a evitar a derrota fragorosa que se veio a registar no referendo realizado em Agosto desse ano em Timor-Leste: 80% dos votos foram favoráveis à independência…

Mas, se os militares indonésios perderam uma pequena fracção do seu país, que, de resto, haviam anexado 24 anos antes, o recorde da ingenuidade vai para os militares paquistaneses que em 1971 acabaram por perder 15% do seu território e mais de metade da sua população… Uma asneira tão grossa precisa de uma explicação mais extensa: o Paquistão que nasceu em 1947, constituído a partir das regiões da Índia onde predominavam os muçulmanos, estava dividido em duas partes afastadas 1.500 Km entre si: o Paquistão Ocidental e o Oriental.

O primeiro, que mantém o nome do país, era quase seis vezes maior que o segundo (hoje o Bangladesh), embora fosse ligeiramente menos povoado. Era também a Ocidente que ficava a sede do poder político, e era daí que eram originários a esmagadora maioria dos membros topo da administração civil e das chefias militares. Os habitantes bengalis do Paquistão Oriental mostravam em relação ao estado paquistanês muito dos ressentimentos característicos de um regime de dominação colonial.

O regime militar paquistanês, que durava desde 1958, já dava mostras de desgaste, tendo o general Ayub Khan, que o dirigira desde o início, transferido os seus poderes para o general Yahya Khan em 1969, no seguimento de uma grande contestação social e política que, no Paquistão Oriental, se acumulava ainda com exigências de autonomia e mesmo de independência. O general acalmara parte dessa contestação com a promessa de eleições a realizar em Dezembro de 1970.

Era dado por adquirido que o regime conseguiria obter uma maioria de apoios da nova Assembleia a eleger. Por força da demografia, mais de metade (162) dos deputados da futura Assembleia de 300 membros era eleita em circunscrições do Paquistão Oriental. Num dos mais surpreendentes golpes de teatro eleitoral, o partido que se batia pelos interesses dos bengalis orientais (Liga Awami) passou de partido marginal do sistema político paquistanês a indigitado para o governo de todo o Paquistão, ao conquistar a maioria da Assembleia, com 160 dos 162 lugares do Paquistão Oriental…

Desnecessário será dizer que dos resultados políticos daquelas eleições (que os serviços de informações militares nunca anteciparam) havia que ceder o poder à, até então, marginal Liga Awami, o que nem a classe política civil do Paquistão Ocidental estava disposta a aceitar. Em consequência, a secessão do Bangladesh tornou-se politicamente mais do que legitimizada e quando a Índia a apoiou militarmente, a partir de Dezembro de 1971, forçando a rendição das forças armadas paquistanesas, o gesto acabou por ser aceite pelas duas superpotências.
Curiosamente, nesta terceira guerra indo-paquistanesa, um conflito onde sempre foram fortes as conotações religiosas de hostilidade entre hindus e muçulmanos, o Chefe de Estado-Maior das forças armadas indianas era parsi - Sam Manekshaw - e o comandante das forças no terreno (que se vê de turbante a assinar na fotografia da cerimónia da rendição das forças paquistanesas) era sikh - Jagjit Singh Aurora – e nascido no Paquistão… Para completar, o Chefe de Estado Maior deste último, J.F.R. Jacob era… judeu.

* Para os mais novos e os mais esquecidos o PS ganhou as eleições com 37,9% dos votos, seguindo-se o PPD com 26,4%, o PCP com 12,5%, o CDS com 7,6% e só então o MDP/CDE, com 4,1%.

1 comentário: