28 março 2007

OS COURAÇADOS DE CALIDAD…

Tendo uma costela raiana, mesmo daquelas que bordeja a fronteira, desde pequeno que tenho interiorizado que, em produtos alimentares, havia em Espanha produtos naturais que eram verdadeiramente únicos, como aquele pão de trigo branco ou o solomilho, que é uma carne tenra de chorar por mais, que coexistiam com produtos industriais de uma mediocridade que os espanhóis guardavam ciosamente o segredo, como os refrigerantes La Casera (acima) ou os chocolates que tinham um efeito laxante ainda mais potente do que um clister…

Fruto provável do condicionamento industrial destinado a proteger as indústrias nacionais, tudo o que era de origem espanhola – especialmente os brinquedos, que recordo melhor – tendia a quebrar-se, deixar de funcionar ou uma outra qualquer vicissitude a um ritmo característico – e rápido. De tal forma que sempre interiorizei que a associação da palavra qualidade com o adjectivo espanhola, faz tanto sentido como as expressões humor alemão, modéstia francesa, discrição italiana ou pontualidade portuguesa.

Já adulto, descobri que esta falta de vocação para a produção industrial de qualidade era afinal uma vocação antiga em Espanha. E o exemplo que darei mostra a Espanha que conhecemos em todo o seu espavento e esplendor, excelente na imagem geral, mas completamente desatenta aos pormenores, como se se tratasse de uma sevilhana dançando com um lindíssimo vestido vermelho garrido, ornada de jóias, penteada e pintada com esmero, mas tendo-se esquecido de rapar os sovacos ou de os lavar…

Regressemos aos princípios do Século XX e à época em que os couraçados eram um argumento de poder mundial que era levado a sério. Era o Reino Unido a potência que os possuía em maior quantidade mas todas as outras ambicionavam possuí-los, nem que fosse pelo prestígio conferido pela presença de um entre a marinha de guerra de um país em relação aos seus rivais: o Brasil comprou 2, a Argentina também quis 2, para rivalizar com os do Brasil e o Chile acabou por comprar 1, para não ficar atrás da Argentina…
É evidente que a Espanha também quis os seus e, considerando-se muito superior às potências medianas como as latino-americanas do parágrafo anterior, quis logo três e, para mais, construídos em estaleiros espanhóis, em vez de comprados ao Reino Unido, como os outros haviam feito. Aos três navios da classe foram dados os nomes de España, Alfonso XIII e Jaime I (este último é o que está representado na fotografia acima). Quanto aos aspectos técnicos prefiro transcrever a opinião (traduzida) de um livro especializado (Warships*):

Estes três navios são passíveis de nota principalmente porque foram os couraçados mais pequenos e mais vagarosos a serem jamais construídos, apesar de terem provavelmente também a pior protecção em termos de blindagem**. Foram construídos pela SECN nos estaleiros navais de El Ferrol, e uma das maiores dificuldades de construção foram as dimensões das instalações disponíveis… Seguem-se as suas características técnicas: 15.452 toneladas de deslocação, 140 metros de comprimento, 8 peças de 305 mm como armamento principal…

Além da qualidade de construção, a história dos navios também é triste: o primeiro (España) acabou num recife ao largo de Marrocos em 1923… O segundo (Alfonso XIII), que veio a ser rebaptizado com o nome de España com a proclamação da República Espanhola em 1931, ficou do lado nacionalista na Guerra Civil (1936-39), mas afundou-se em 1937, ao embater numa das suas próprias minas… O terceiro (Jaime I), que ficara na posse dos republicanos, teve uma explosão interna acidental em 1937 que o tornou irreparável…
Actualmente (desde 1988) a Espanha possui um pequeno porta-aviões (o Príncipe de Astúrias, com quase 16.000 toneladas de deslocação e 196 metros de comprimento – na fotografia acima – que opera com aviões de descolagem curta ou vertical – AV-8B Harrier – e helicópteros), numa configuração que, ao contrário dos couraçados desta história, parece ter tido sucesso, tanto mais que já serviu de modelo para um porta-aviões tailandês, o Chakri Nareubet.

Julgo que a globalização já muito deve ter feito pelo desaparecimento daquelas verdadeiras aberrações industriais de outrora mas, voltando a um outro exemplo alimentar, e regressando especificamente ao caso dos refrigerantes, não me canso de continuar a achar um verdadeiro mistério como o colectivo das papilas gustativas espanholas mostra preferência pela Fanta Naranja quando em comparação com o Sumol ou pela Fanta Limón quando comparada com o Trinaranjus de limão…
* WARSHIPS From 1860 to the present day, David Miller, Salamander 2002
** Teoricamente, o aumento da blindagem de protecção aumenta a tonelagem de um navio e, em consequência, prejudica-lhe a velocidade. São parâmetros antagónicos, mas neste caso, estranhamente, os navios eram vagarosos e estavam mal protegidos .

1 comentário:

  1. “Vagarosos e mal protegidos”!
    É caso para dizer: um azar nunca vem só...
    Para desfiles, serviam!

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