30 janeiro 2008

O RACISMO, SEM COMPLEXOS DE INFERIORIDADE

Entre as cenas iniciais do filme Gandhi, há um episódio onde ele, jovem advogado e viajando na 1ª classe de um comboio sul-africano, se mostra genuinamente surpreendido pelas objecções de carácter racista colocadas por um dos seus companheiros de classe europeus e depois pelo revisor (também branco). Gandhi, recorda-se, acaba por ser expulso do comboio, atirado à força, mais a bagagem, para a plataforma da próxima estação…

Muitas das cenas posteriores desse filme contêm vários erros, alguns deles clamorosos, para satisfação das mensagens politicamente correctas e dos efeitos melodramáticos tão ao gosto das obras de Hollywood, mas esta cena será extremamente rigorosa e, mais do que isso, é simbólica do estado de espírito, até orgulhoso, com que as elites indianas a que Gandhi pertencia, encaravam naquela época(*) a sua condição de membros do Império Britânico.
De facto, os membros das castas indianas mais elevadas sempre se recusaram submeter-se ao estatuto subalterno para onde os europeus os queriam empurrar, nunca adquiriram complexos de inferioridade por causa isso, e existem até inúmeros exemplos do desdém com que eles encaravam terceiras raças. Até os mestiços e os kaffirs (**), que são menos avançados que nós, resistiram ao governo, escreveu Gandhi em 1906…

Claro que essa frase teria sido completamente imprópria para usar no filme, mostrando um Gandhi racista, maculando o herói santo que o resto do filme pretende construir… Mas, mesmo pensando pelos padrões rígidos de há 100 anos atrás, é argumentável que os indianos – por maioria de razão as suas castas elevadas… – e em mais do que um aspecto representassem uma civilização que se mostrava estar tão avançada quanto a europeia.
Veja-se como, mesmo ainda hoje e no campo das matemáticas, disciplina onde os trabalhos oriundos da civilização indiana se destacam nitidamente dos das suas homólogas, as realizações da Escola de Kerala são praticamente desconhecidas no Ocidente, muito embora a sua existência tivesse sido já contemporânea (entre o Século XIV e o XVII) à presença dos portugueses naquela mesma região do Sul da Índia.

E a excelência da investigação científica que ali se manteve pode ser comprovada com os Prémios Nobel da Física de 1930, Chandrasekhara Raman (1888-1970), ou de 1983, Subrahmanyan Chandrasekhar (1910-1995) ou a história de Srinivasa Ramanujan (1887-1920) . É mais do que coincidência que um grande centro de desenvolvimento actual de tecnologias de ponta se situe em Bangalore, também no Sul da Índia…
Foi só no final da Primeira Guerra Mundial (1919), que as elites indianas constataram que, mau grado o engajamento da Índia no conflito que terminara, os britânicos não faziam qualquer tenção de lhes conceder o regime de auto-governo que já fora concedido previamente aos Domínios controlados pelos europeus, como o Canadá (1867), a Austrália (1900), a Nova Zelândia (1907) ou a África do Sul (1910) e, posteriormente, à Irlanda (1922).

Só então apareceu o conflito anunciado e a história de (do filme de) Gandhi, depois de uma relação que fora benéfica para as duas partes mas que a partir dali passara a assentar num equívoco: as elites indianas consideravam que já não precisavam de tanto auxílio britânico para se governarem; e os britânicos achavam que os indianos eram escuros demais para se auto-governarem assim de imediato…
Mas como as pretensões de superioridade britânica nunca foram essencialmente levadas a sério pode perceber-se hoje numa série televisiva como Goodness, Gracious Me, protagonizada por indianos, onde eles parodiam descaradamente os tiques de paternalismo colonialista dos britânicos, invertendo os comportamentos: veja-se este sketch, onde um típico grupo de casais suburbano de Bombaim (***) vai jantar a um restaurante de cozinha… inglesa!?

(*) Finais do Século XIX.
(**) Expressão pejorativa e depreciativa africânder, usada para designar os negros na África do Sul.
(***) Simétrico àqueles que conhecemos tão bem do Algarve...

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