Há coisas que sabemos, que sempre soubemos, mas que importa relembrar vistas de quando em vez. Foi o caso do resultado da assembleia-geral do BCP que ontem se realizou no Porto: entre os 843 accionistas presentes, uma expressiva maioria (66%), teria preferido que Miguel Cadilhe tivesse assumido a direcção do banco; ponderadas essas vontades com a sua representatividade como accionistas então o resultado daria – como deu – uma reviravolta espectacular, com uma verdadeira maioria de congresso do PS* mostrando-se a favor da lista liderada por Santos Ferreira.
Mas não é minha intenção criticar os procedimentos que acima descrevi. É uma questão de liberdade e, naquele enquadramento, as regras pelas quais são conduzidas estas sociedades são conhecidas e só delas faz parte quem quiser. Não se trata de uma democracia, trata-se de decisões assumidas por votação. O que me incomoda é a argumentação – que parece estar extremamente em voga – que quanto maior for a parcela da economia administrada pelas regras que ontem assistimos postas em prática naquela assembleia geral, tanto mais eficiente e feliz será a sociedade onde vivemos.
Na última década da disputa ideológica da Guerra Fria, os predecessores dos actuais liberais, ultra-liberais e ainda-mais-que-liberais, inventaram um slogan que hoje se pode considerar o simétrico, em disparate, do famoso centralismo democrático tão em voga no lado soviético: era o capitalismo popular. É que, mesmo roubando expressões que eram queridas à parte contrária (democrático no Ocidente, popular no Leste), o centralismo não tinha nada de democrático e o capitalismo não tinha nada de popular… Os resultados da assembleia geral mostram a relevância dessa popularidade…
Episódios como os de ontem relembram-nos quanto, por vezes, aqueles princípios que temos por adquiridos, como o da correspondência um homem - um voto podem afinal ser bem mais frágeis do que pensamos. Afinal, nas eleições políticas do Século XIX, quase todos os países usaram, de uma forma ou outra, o voto censitário**. E não me surpreenderia nada que, algumas cabeças muito mais avançadas aí da blogosfera e dos jornais, ressuscitassem o assunto, numa época que parece quase medieval na confusão entre o que é de César e o que é de Deus, entre o que tem valor e o que tem preço…
Como curiosidade final, refira-se o exemplo da constituição rodesiana, redigida pelos representantes da minoria branca, depois da declaração unilateral de independência do Reino Unido em 1965. Nela, a população branca*** elegia 50 dos 66 deputados, os outros eram negros. Parecia ter lógica: aquela era a proporção aproximada com que cada comunidade contribuía para as receitas fiscais do país. Previa-se que a representação negra iria aumentar à medida que, futuramente, se elevasse a proporção das suas contribuições fiscais. Nunca aumentou. A história do Zimbabué fez-se por um caminho bem diferente…
* Para quem estranhe a analogia, relembre-se que para o XV congresso do PS (Novembro de 2006), José Sócrates foi reeleito como secretário-geral com 97,2% dos votos dos militantes. Ontem a lista vencedora recebeu os votos dos representantes de 97,8% do capital…
** O voto censitário foi uma forma de, ou restringir o direito de voto a quem dispusesse de uma certa riqueza mínima, ou conferir maior capacidade de representação a quem fosse mais rico.*** 265.000 pessoas, ou seja, cerca de 6% da população total rodesiana da época.
Mas não é minha intenção criticar os procedimentos que acima descrevi. É uma questão de liberdade e, naquele enquadramento, as regras pelas quais são conduzidas estas sociedades são conhecidas e só delas faz parte quem quiser. Não se trata de uma democracia, trata-se de decisões assumidas por votação. O que me incomoda é a argumentação – que parece estar extremamente em voga – que quanto maior for a parcela da economia administrada pelas regras que ontem assistimos postas em prática naquela assembleia geral, tanto mais eficiente e feliz será a sociedade onde vivemos.
Na última década da disputa ideológica da Guerra Fria, os predecessores dos actuais liberais, ultra-liberais e ainda-mais-que-liberais, inventaram um slogan que hoje se pode considerar o simétrico, em disparate, do famoso centralismo democrático tão em voga no lado soviético: era o capitalismo popular. É que, mesmo roubando expressões que eram queridas à parte contrária (democrático no Ocidente, popular no Leste), o centralismo não tinha nada de democrático e o capitalismo não tinha nada de popular… Os resultados da assembleia geral mostram a relevância dessa popularidade…
Episódios como os de ontem relembram-nos quanto, por vezes, aqueles princípios que temos por adquiridos, como o da correspondência um homem - um voto podem afinal ser bem mais frágeis do que pensamos. Afinal, nas eleições políticas do Século XIX, quase todos os países usaram, de uma forma ou outra, o voto censitário**. E não me surpreenderia nada que, algumas cabeças muito mais avançadas aí da blogosfera e dos jornais, ressuscitassem o assunto, numa época que parece quase medieval na confusão entre o que é de César e o que é de Deus, entre o que tem valor e o que tem preço…
Como curiosidade final, refira-se o exemplo da constituição rodesiana, redigida pelos representantes da minoria branca, depois da declaração unilateral de independência do Reino Unido em 1965. Nela, a população branca*** elegia 50 dos 66 deputados, os outros eram negros. Parecia ter lógica: aquela era a proporção aproximada com que cada comunidade contribuía para as receitas fiscais do país. Previa-se que a representação negra iria aumentar à medida que, futuramente, se elevasse a proporção das suas contribuições fiscais. Nunca aumentou. A história do Zimbabué fez-se por um caminho bem diferente…
* Para quem estranhe a analogia, relembre-se que para o XV congresso do PS (Novembro de 2006), José Sócrates foi reeleito como secretário-geral com 97,2% dos votos dos militantes. Ontem a lista vencedora recebeu os votos dos representantes de 97,8% do capital…
** O voto censitário foi uma forma de, ou restringir o direito de voto a quem dispusesse de uma certa riqueza mínima, ou conferir maior capacidade de representação a quem fosse mais rico.*** 265.000 pessoas, ou seja, cerca de 6% da população total rodesiana da época.
Caro A.Teixeira:
ResponderEliminar"""E não me surpreenderia nada que, algumas cabeças muito mais avançadas aí da blogosfera e dos jornais, ressuscitassem o assunto, numa época que parece quase medieval na confusão entre o que é de César e o que é de Deus, entre o que tem valor e o que tem preço…"""
Já ressuscitaram.
blogoexisto.blogspot.com/2007/02/dever-o-voto-ser-pago.html
Não tem directamente a ver com o BCP, mas o discurso é de algum modo semelhante ... com Stuart Mill lá escondido na argumentação...
DISSIDENTE-x
PS: O Google tem uma opção que permite activar o recebimento de comentários que não os baseados só nos blogs do Google, mas continuando à mesma a não permitir comentários anónimos.
Caro A.Teixeira:
ResponderEliminar"""E não me surpreenderia nada que, algumas cabeças muito mais avançadas aí da blogosfera e dos jornais, ressuscitassem o assunto, numa época que parece quase medieval na confusão entre o que é de César e o que é de Deus, entre o que tem valor e o que tem preço…"""
Já ressuscitaram.
blogoexisto.blogspot.com/2007/02/dever-o-voto-ser-pago.html
Não tem directamente a ver com o BCP, mas o discurso é de algum modo semelhante ... com Stuart Mill lá escondido na argumentação...
DISSIDENTE-x
PS: O Google tem uma opção que permite activar o recebimento de comentários que não os baseados só nos blogs do Google, mas continuando à mesma a não permitir comentários anónimos.
E desculpas pela duplicação de comentários ...
ResponderEliminarMeu Caro Dissidente:
ResponderEliminarSe a legenda identificativa da série X-Files era “The Truth is out there, a da blogosfera podia ter sido nela inspirada para um “O disparate is out there”… E, embora tenha fortes suspeitas que ele também existia para o caso a que me referia, não me tenho na conta de um Fox Mulder que se disponha a ir à procura da sua existência…
Mas agradeço-lhe honestamente a referência…