18 setembro 2015

REVIVER FESTIVAIS COM A OBRIGATÓRIA CRÓNICA DO DIA SEGUINTE (1968 e 1969)

Para os nostálgicos como eu, os festivais RTP de outrora estão hoje perfeitamente acessíveis assim como a recordação daqueles momentos. O que eu ainda não vi feito (e por isso aqui o faço) é a combinação entre esses festivais e as crónicas formadoras de opinião que eram publicadas nos jornais do dia seguinte – neste caso as de Mário Castrim no Diário de Lisboa para os festivais de 1968 e 1969. Quem as escreveu, quando as escreveu, nem imaginaria que, no futuro, os seus comentários (normalmente negativos no caso de Castrim) pudessem ser intervalados com o objecto das suas críticas para que o leitor avaliasse da sua pertinência e razoabilidade. Mas, melhor que as críticas tantas vezes corrosivas que faziam o estilo de marca de Mário Castrim, o que faz valer a pena ler ainda hoje estas crónicas tão cínicas e, ao mesmo tempo, tão ingénuas, parecem-me ser os seus entusiamos elogiosos como aqueles que acompanharam a crónica da vitória de Desfolhada no festival de 1969, um poema viril (de Ary dos Santos) para uma canção eslava, carácter acentuado pelo penteado de Simone, semelhante (...) aos gorros moscovitas (!).

1968

Felizmente o desfile principiou (...), Mirene Cardinalli, o gesto miúdo, a voz a morrer-lhe na garganta, a perder o pé da orquestra, não se percebe uma palavra do que diz, e ainda por cima o som começa a pregar-lhe a partida, som sentimental com tremidos na garganta, o vento poder-se ir embora porque Mirene não vai com ele.
Mendes diz-nos que «á primeira se segue naturalmente a segunda...» e a Tonicha ali está como representação viva do axioma.

Tonicha bem disposta. Os olhos ratinhos a dominar a situação. Um sorriso a escapar-se para os cantos da boca. Marialva ou Emma Peel? A câmara não tem rebuço em nos apresentar uma cançonetista em rodagem para o êxito. Tonicha está confiante. Consultou a pitonisa e esta garantiu-lhe o passaporte para Londres. Tonicha não tem a menor dúvida. Ele sabe, há meses, que aquilo havia de acontecer: Londres era o seu destino. Tonicha, com a segunda canção, apresenta-se já como grande triunfadora.

Nicolau Breyner é menos ambicioso. Não sabe bem o que quer, quer apenas um pouco mais, Nicolau Breyner transformado em Nicolau Sanremo, entretido em tomar aquilo muito a sério, chega a ser comovedor tanto dramatismo, e para quê, meus senhores!, não sei porquê mas pareceu-me que o tom sério de Nicolau tinha muito de gozo, de piada, de fábula...

João Maria Tudela, não. Sério, mas sério mesmo. Ali nunca se brinca. Muito menos com andorinhas e com vento. É pecado. Olhos em alvo, enquanto furiosamente os violinos fazem cócegas. Uma canção em perfeita linha tudélica, um Tudela demasiado andoríneo, longe e aéreo como uma visão. Com a grande vantagem, sobre todos os concorrentes, de uma dicção que é o seu melhor trunfo.

José Cid cantou a “Balada pra D. Inês”, o único instante em que o crítico foi obrigado a um momento de reflexão. Aí aconteceu alguma coisa. A letra, é verdade, tem um traçado medíocre. Banalíssima, não há nela um verso a arder. A melodia segue a esteira que “El-rei D. Sebastião” veio desbravar. No entanto, quer pelo tema, quer pela tentativa de procurar um caminho de construção melódica que pode ser frutuoso, esta “balada” foi a pequena árvore desta planície campeã da banalidade.

Em relação a Calvário e a Simone de Oliveira verifica-se um fenómeno semelhante: o público está saturado deles e eles estão saturados de si próprios. Calvário é correcto a cantar, mas nada mais do que isso. Calvário distancia-se dia a dia dos gostos do público. Quando canta, Calvário dá tudo, como bom profissional que é. Dá tudo a quem não merece nada: a canção não vale aflitivamente o menor esforço. Calvário tem a pouca sorte de certos médicos a quem só vão parar casos fatais.

Simone de Oliveira cantou duas obras-primas da mediocridade. Cantou-as sem a mínima convicção desgarrada, nitidamente perdida na primeira interpretação. Coube-lhe ainda o segundo lugar no mau gosto da noite na parte declamada da última canção, em que esteve perfeitamente dentro da maneira e do espírito revisteiro do Parque Mayer. O género não lhe quadra. Fado Falado houve um – e esgotou a matéria.

Propositadamente guardei para o fim a canção escolhida para representar a Televisão portuguesa em Londres. Chegando aqui, não vale nenhuma atitude de indignação ou de impaciência. Apenas o silêncio se justificava se, muitas vezes, o silêncio não servisse de capa à cumplicidade...

É preciso que se diga que na canção deste ano tudo se conjuga para fazer dela a pior não apenas de todas as canções vencedoras, mas a pior de todas as canções do festival e do espectáculo de ontem. A letra? Escandalosamente, gritantemente coisa-nenhuma, vácuo perfeito. A melodia? Qualquer coisa que ninguém entoará nunca, morta antes de nascer.Carlos Mendes foi o espectáculo da noite no que se refere ao mau gosto das atitudes, ao amadorismo da interpretação. Em qualquer desses planos o intérprete somou um negativismo como até hoje não acontecera em nenhum festival de Televisão. Claro que até Abril será mentalizado e ensaiado. Mas para Londres, espere-se o pior. (Não, enganou-se Mário Castrim. Em Londres a canção ficou classificada num medíocre 11º lugar entre 17 concorrentes mas, mesmo assim, foi a melhor classificação de uma canção portuguesa até aquela data).

1969
Directo. Com uma breve paragem para meter anúncios. Palavras, poucas. Havia que resolver o problema das canções, resolver a questão de um festival, dessa ponte por debaixo do qual tanta água passou. Água nem sempre muito clara – nem muito tranquila...
O problema não tardaria a ficar resolvido. Como em certos combates de boxe, terminou ao primeiro «round». Quando Simone de Oliveira acabou a sua explosão, nenhuma dúvida restava. Tudo o mais que viesse faria apenas figura de «damas de honor». O «swing» simoniano acertara em cheio: o adversário estava no tapete adormecido pesadamente. Nem sequer era preciso contar até 10...
...Mas as 10 canções tinham de vir. Pode falar-se de «suspense»? Pois fale-se. Talvez uma inquietação, o pressentimento de uma surpresa maior. Talvez – quem sabe? – pudesse vir uma canção ainda melhor para tornar este festival ainda mais memorável. Havia nove cartas na mesa. E há artistas que conseguem tirar da manga as surpresas mais surpreendentes. Falava-se muito, por exemplo, em Daniel...

Infelizmente, Daniel não pôde dar a medida exacta do seu temperamento de cançonetista. A voz foi, desde o início, abafada pela orquestra, perigo que eu temia. Eu e os técnicos encarregados do negócio. Perigo que, pelos vistos, não foi possível evitar.
Por outro lado, a toada que era a sua, acabou por ficar quase irreconhecível no ribombar complicado da orquestra. A límpida voz de Daniel casa-se mal com as estridências inconsequentes e dominadoras de tamanho conjunto.
No entanto, o jovem cançonetista apresentou-se com uma sobriedade exemplar. Simultaneamente alheado e lúcido. Sem a viola onde costuma guardar as mãos, preferiu não fazer uso delas. Não as queimar. A presença de um rosto jovem onde se espelhavam, em exageros, as inflexões da canção, foi das notas mais simpáticas do festival.
A canção, dadas embora as limitações apontadas, merecia melhor sorte, o poema de Fernando Vieira e a melodia enraizada em tradição portuguesa eram dois motivos poderosos para garantir melhor posição a «Fios de Esperança».

Teresa Paula Brito não conseguiu dominar o seu nervosismo. A voz saia-lhe abafada da garganta. Os gestos incontrolados ou mecânicos. Muitos versos lhe ficaram perdidos na memória. Jovem, fica-lhe muito tempo para recuperar. E talvez não seja uma cançonetista de festivais, quem sabe. Talvez venhamos a ter melhores notícias dela quando cantar sem competir. Ignorará ainda Teresa que numa sociedade de base mercantil se vive sempre em competição?

Lilly Tchiumba foi a intérprete de «Flor Bailarina». Cantou uma canção que não era para ela e da maneira que não era a sua. E vestida de modo que a não favorecia. Ai que saudades eu tenho da Lilly nada de cerimónias, que saudades tenho da Lilly de tanga e descalça a cantar e bailar á maneira da sua gente! Que saudades eu tenho de uma Lilly-espectáculo, muito longe desta Lilly parada, sem nervo! Que saudades de uma Lilly não parecida com ninguém, a milhas desta que se parece com todas! A ela, que tão bem sabe mover os pés, mandaram-lhe que desse ás mãos para cima e para baixo, pesadamente como se avalisasse a sua própria derrota...
Lilly Tchiumba, que por alguma razão escolheu este nome artístico, vai duramente aprendendo que o abandono da autenticidade se paga caro...

Valério Silva não tinha muito a defender. Cabia-lhe defender bem, contudo, o que fora confiado á sua guarda. E nem isso fez. Vestiu com exagero de babeiro; cantou com exagero de expressões. Fez largo consumo de braços e olhos. De punho cerrado apertado ao coração, até aos 10 dedos esbanjados, atirados á cara do infinito, de tudo houve em Valério. Tudo é, muitas vezes, igual a nada.

Madalena Iglésias tinha esperança na sua canção. Esperanças fundadas. Poema de não envergonhar ninguém, se descontarmos uns quantos (muitos...) por cento de literatice, um fundo musical a recordar Gershwin e (o que era muito importante) o que pode considerar-se a melhor orquestração do torneio. Acrescente-se que Madalena defendeu com a maior seriedade a sua canção – embora a perturbação fosse visível. Naquela hora, Madalena sentia o chão fugir-lhe debaixo dos pés. A sobriedade de ontem nada tinha de comum com a euforia ridícula de «Ele e Ela». Ontem, terá sentido que não agarrava o público. O seu gesto final foi a assinatura do tratado em que se considerava vencida.

Também Artur Garcia preferiu o caminho da simplicidade. Foi muito diferente do Artur Garcia exuberante de outros tempos. Infelizmente para si, a canção, quer musical, quer poeticamente, não lhe dava a menor «chance». Perdeu-se a canção? Perdeu-se o que estava perdido. Mas salvou-se o cançonetista do naufrágio. Valha-nos isso.

O «Duo Ouro Negro» não fez mais do que uma imitação de si próprio. A pior interpretação da noite. O balancear mecânico, papagueado, dá-que-dá, sem um mínimo de imaginação, faz-que-anda mas-não-anda e aquele final, aquele final de aflição, esquecidos de meter uma segunda com o automóvel já a meio da subida...
«Ouro»? Talvez. Mas de pechisbeque.

O público bateu palmas. Gostou de Fernando Tordo. Teve alguma razão para isso. Tordo não esteve mal nem se mostrou nada impressionado. A sua canção, ridiculamente arcaica, fazia lembrar, no que respeita á poesia, aqueles móveis do século XVII fabricados agora em Guimarães. O publico foi – e com razão – mais sensível á melodia que procurava uma raiz nacional. Raiz velha, sangue novo. Sangue novo não havia na «Cantiga». Tenho no entanto a impressão que o nosso cançonetismo ganhou, a partir de agora, mais um intérprete.

O festival encerrou com o fôlego, o ímpeto, o a-todo-o-gás, de Maria da Fé. Não sei se a canção se aproveitava do «folclore» ou do «folclorucho». A sombra de Amália (e de certas cançonetices de Amália...) nunca deixou de estar presente na interpretação de Maria da Fé. Hum... Quer-me parecer que a Beira Baixa enxertada em Alfama não dá frutos saborosos.
Do que se disse no princípio desta crónica se pode já concluir que «Desfolhada» venceu com inteiro merecimento. A qualidade do poema teve a justa correspondência na interpretação de Simone de Oliveira, que chamou a si, de um só golpe, a intuição e a experiência. Nada na sua interpretação foi deixado ao acaso. Foi violenta, ou impetuosa, ou dolente – quando devia ser. Deu a cada frase, a cada palavra, a cor que lhe convinha. A força com que arrancou, descolou todos os competidores desde a partida. Cheguei a temer o seu aspecto demasiado «Fedra». A breve trecho, até isso esqueceu. Simone foi ontem a locomotiva pesada da canção ligeira. As suas unhas estavam cravadas na «Desfolhada». O mais forte ditava a sua lei.

Claro que não há apenas Simone. Ali, Simone é mais uma peça na engrenagem. O poema de José Carlos Ary dos Santos é trabalho de poeta e não de fanqueiro, como habitualmente acontecia. Ary dos Santos, que já merecia ser lido, merece agora ser cantado. O seu poema está longe das muitas lamechices que infestavam os nossos ouvidos. É um poema viril. Um poema adulto a pedir de hoje em diante, para ser cantado, não uma voz – mas multidão de vozes. Este grão de milho dará uma grande seara. Com o poema de Ary dos Santos, demonstrou-se a viabilidade de uma canção ligeira mais digna, no nosso País.
A melodia de Nuno Nazaré Fernandes aproveita com muita inteligência a lição aprendida de Mary Hopkin. É uma canção eslava. O penteado de Simone fazia ainda mais carregar o semblante eslavo da canção, semelhante como era, aos gorros moscovitas.
Não nos iludamos, porém, com estas aparências. Há muito de tradição portuguesa na «Desfolhada». Nela se descobrem ainda ecos, toadas de canções infantis da nossa terra. As palmas, essas, fazem parte do folclore universal.
Canção que será assobiada e cantada. Canção que iremos bailar. Canção com a qual poderemos dar as mãos e fazer roda, segue, canção, o teu destino de canção ligeira até que, depois de queimada no frenesim do quotidiano, te desfaças em fumo, desapareças, e já talvez de ti ninguém se lembre!

A Apresentadora
Está muito longe de se considerar de bom nível a actuação da apresentadora, Lurdes Norberto. Com isto não quero referir-me apenas aos vários enganos de que foi vítima, a acusar um nervosismo de que a julgávamos imunizada pela prática do palco em obras, essas sim, de responsabilidade.
A verdade é que Lurdes Norberto nunca esteve natural, nunca se alheou de si própria. Parecia uma principiante a ler a sebenta. E eram, aquelas primeiras palavras, tão fáceis de saber de cor...
Presença ninguém lha negará. Mas isso não é o bastante. A um apresentador exige-se o desembaraço, o espírito, o poder de encaixe, o sentido de reportagem que faltaram por completo a Lurdes Norberto. Por outro lado, o cabelo louro e o vestido branco confundiam-se com os tons brancos ou claros dominantes no cenário. Não vai já sendo tempo de se pensar a sério nestes “pequenos” pormenores?
Organização
Casimiro, o cenógrafo deste festival, preveniu-nos logo na reportagem do «Horizonte» que não iriamos ter um festival de cenários, pois o festival era de canções. Com isto queria significar que de maneira nenhuma procuraria desviar a atenção dos telespectadores numa concorrência desleal.
Disse e cumpriu. Imperou a simplicidade de processos e com isso só lucrou o festival da canção.
Notória foi igualmente a deficiência na captação de som. Alertado estava todo o mundo sobre as menos boas condições acústicas do local. Pergunto se tudo se terá feito para vencer as dificuldades. Se, nesse esforço, colaboraram técnicos, músicos, orquestradores. Se não haveria ali orquestra a mais...
A realização, de Oliveira Costa, distribuiu o mal pelas aldeias. Ela pecou pelos defeitos que envolvem estas realizações feitas em salas que não apresentam as condições mínimas para o efeito. As quatros câmaras fixas provocaram as mutações bruscas responsáveis de tanta quebra de ritmo. Preocupado com o aspecto funcional do seu trabalho, o realizador descurou outra faceta importante: a da reportagem, a relação de ambiente, a relação entre a realidade a viver e a realidade a dar, a ver. As câmaras não foram o ponto de encontro entre dois mundos. Não sorriram uma única vez. Que diabo, não estávamos positivamente no Cabo Canaveral em lançamento lunar de grande gala...
Apesar destes encómios e recomendações de Mário Castrim, em Madrid, onde se disputou o Festival da Eurovisão desse ano, a canção ficou classificada em penúltimo lugar entre 16 concorrentes.

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