29 de Julho de 1950. A edição daquele dia do Diário de Lisboa conferia um destaque de primeira página à situação na Bélgica onde, após cinco anos de exílio voluntário, o rei Leopoldo III acabara de regressar, legitimado por um referendo que tivera lugar em Março daquele ano. E não fora nada bem recebido... O conteúdo da notícia do Diário de Lisboa (que se pode ler no fim do poste) revela-se, a esta distância temporal de 70 anos, mais alarmista do que esclarecedor. Como dali se pode concluir, há uma caracterização política no movimento daqueles que se opõem ao retorno do monarca ("socialistas e liberais", como o descreve o jornal), mas há sobretudo uma caracterização regional e cultural, e essa o jornal mal a aflora. Como se percebe facilmente pelo mapa abaixo, com os resultados do referendo de Março, destaca-se ali nitidamente uma mancha vermelha que se opusera ao retorno de Leopoldo III, mancha essa que se centra à volta da região francófona da Valónia. No computo global, o retorno do rei fora aprovado por 57,7% dos votantes, mas os resultados haviam sido díspares, se contados entre a comunidade flamenga (72%) e a comunidade valã (42%). O regresso do rei fora rejeitado, ainda que tangencialmente, na própria capital, Bruxelas (48%). Havia mais do que uma razão para a objecção dos valões a Leopoldo III, mas disso já eu falei num outro poste, onde aproveitei para rematar o desfecho desta história - a renúncia de Leopoldo III em seu filho em 31 de Julho, seguida da abdicação formal a 15 de Julho de 1951. Mas há uma lição que se pode extrair destes acontecimentos de há 70 anos: é que a aritmética dos resultados eleitorais tem que ser apreciada com muito atenção quando o assunto político em causa é o da viabilidade de um monarca: o retorno de Leopoldo III foi legitimado por uma maioria absoluta (57,8%). Porém essa maioria era heterogénea. Para além disso, aqueles que se opunham ao seu regresso, não gostavam mesmo nada dele. E quando isso acontece, o papel de qualquer rei perde o sentido. E quem rodeava Leopoldo III ter-lhe-á explicado isso. E é por isso que não estarei a ser propriamente visionário quando antecipo enormes dificuldades para o futuro de Filipe VI no trono espanhol: qualquer visita que o monarca espanhol faça à Catalunha tornou-se num desastre de relações públicas, protagonizado por aqueles que agora tomaram o rei como a corporização do centralismo castelhano. Como acontecia na Bélgica, um rei parcial de um país dividido, não serve para nada.
«Bruxelas, 29 – Numa atmosfera quase de revolução, o Gabinete católico da Bélgica, constituído por partidários do rei Leopoldo, decidiu ontem á noite fazer esforços para chegar a um compromisso com os adversários não comunistas do soberano – os socialistas e os liberais. Esta informação foi hoje dada de origem autorizada. Durante a sessão do Conselho de Ministros, estes concordaram em que devem recomeçar negociações entre os três grandes partidos do país.
O chefe do Governo, Jean Duviesart, falando pela rádio, apelou para o «senso comum» do povo e anunciou que o rei deseja conferenciar com os representantes dos vários partidos políticos para poder com toda a imparcialidade encarar as medidas para «promover uma política de união». Mas avisou que isto só se pode conseguir «na calma e dignidade» e disse aos amotinados que os actos de sabotagem seriam energicamente punidos.
Nos círculos políticos declara-se que as negociações entre católicos e os socialistas e liberais conduziram quase a um acordo na base de que Leopoldo delegaria as suas funções durante um certo período em seu filho, o príncipe Balduíno. Isso foi, porém, antes dos partidários do rei terem obtido a maioria em ambas as Casas do Parlamento, do que resultou o regresso de Leopoldo a Bruxelas.
A situação em todo o país era hoje caótica. O movimento da greve geral – que partiu da zona industrial da Valónia – espalhou-se pelo país, paralisando a vida de cidade para cidade e esta manhã ameaçava envolver o grande porto de Antuérpia. Os actos de violência são ainda raros e as cenas quase revolucionárias nas ruas de Bruxelas limitaram-se a gritos subversivos.
Mas o perigo aumentou durante a noite. Todas as estradas e linhas férreas que conduzem á capital estão cheias de manifestantes da região da Valónia de língua francesa, que avançam. Obedecendo ao apelo para
a greve da Federação Geral do Trabalho, milhares e milhares de operários inactivos percorrem as ruas e praças de Bruxelas proferindo gritos contra o rei
e procurando encontrar quem quer que se atreva a levantar a sua voz em favor do monarca. A atitude de expectativa era ainda hoje a ordem das autoridades. As forças de polícia ainda não fizeram fogo, mas o estado de espírito dos agentes da autoridade agrava-se depois de uma semana de quase contínua tensão (Reuter).»
O problema da Catalunha parece ter adormecido por causa da pandemia. Mas o desprestígio de Felipe VI não está suspenso.
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