24 março 2022

O LERO-LERO DOS OBITUÁRIOS

Comece-se pelo mais importante: pela evocação e homenagem à recém falecida Madeleine Albright, uma daquelas figuras grandes da cena internacional pela qual se nutria genuína simpatia. Mas fiquemo-nos pela referência sóbria, contrastante, já que prosperam os desenvolvimentos pela comunicação social de todo o Mundo. Quem tenha interesse que leia os obituários. Mas nem a todos. Porque é aí que a porca torce o rabo. Tal será a vontade de dizer bem da defunta, que se cai em excessos. Tomemos este mesmo exemplo de Madeleine Albright, a que se atribui as suas opiniões sobre fascismos, comunismos e totalitarismos em geral, à sua condição de europeia de origem e refugiada política na sequência da ocupação da Europa pela Alemanha nazi. É uma explicação que até parece fazer sentido, mas, se fizesse sempre sentido, então aquelas convicções teriam sido também as mesmas convicções do seu antecessor Henry Kissinger. Recorde-se que Kissinger (56º) foi um antecessor de Albright (64ª) na secretaria de Estado norte-americana e que, apesar dos 14 anos que Kissinger leva de avanço à sua sucessora, tanto um como outra são europeus de origem (ela checa, ele alemão), judeus de origem e refugiados políticos nos Estados Unidos em consequência da ascensão do III Reich (ele desde 1938, ela desde 1948). Só se tornaram cidadãos americanos aos 20 anos. E no entanto, o registo da relação de Kissinger com regimes totalitários, e do valor que ele atribuiu no exercício das suas funções aos valores da democracia e da liberdade, é, no mínimo, bastante pragmático (para empregar uma expressão eufemística). Recorde-se o caso do golpe no Chile (1973), o famoso cinismo de que deu mostras quando do Verão Quente em Portugal (1975) ou a autorização concedida à Indonésia para invadir Timor-Leste no final desse mesmo ano (paradoxalmente, a reversão desta última foi, mais de 20 anos depois, uma das causas de Madeleine Albright). Em suma, as pessoas foram como foram. Merecem os elogios que mereceram. Mas, para dizer ainda melhor delas no obituário, não se esmerem em explicações que depois não colam. Kissinger vai completar brevemente 99 anos e, um dia destes, vão ter que escrever também o obituário dele... Já agora, «o último livro que li dela» não era assim nada de especial.

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