Ao contrário de um dos estilos literários que mais se associará aos ingleses, o policial clássico de Arthur Conan Doyle e de Agatha Christie, o enredo do Brexit também se sintetiza numa questão, mas esta apresenta-se de forma subtilmente diferente: em vez da interrogação Who done it? (às vezes corrompida para Whodunit), o que o leitor quer saber é se Will they do it? Será que os britânicos votarão pela saída da União Europeia? Um amigo meu ainda hoje me perguntava onde é que se podia encontrar na internet sites onde se lessem opiniões favoráveis à saída. É uma pergunta que é bem mais pertinente do que se pode pensar à primeira vista: neste assunto, assim como, já agora, no das presidenciais americanas e em favor da candidatura de Trump, dificilmente se pode encontrar maior discrepância entre o que as sondagens nos mostram ser a opinião pública britânica (e também norte-americana) e aquilo que se pode ler pela opinião publicada pela comunicação social dos respectivos países. Há pessoas a pensar aquilo, com certeza, seja o Reino Unido fora da UE, seja Donald Trump a presidente dos USA, nós é que não conseguimos dar por elas.
A forma como o referendo do Brexit está a ser acompanhado mediaticamente em Portugal limitar-se-á a reflectir a falta de equidistância entre posições que se constata na origem. Sobram em opiniões aquilo que falta em considerações que possam enquadrar e reduzir a efervescência das consequências da votação do próximo dia 23. Por exemplo, só a dois comentadores li o esclarecimento que a adesão original do Reino Unido fora posteriormente validada por um referendo que teve lugar em 5 de Junho de 1975. Os britânicos podem orgulhar-se de terem sido dos poucos povos europeus a terem sido consultados quanto à adesão à CEE (não foi infelizmente o nosso caso, nem quando da adesão, nem depois de promessas expressas por José Sócrates nos anos 2000). Esse referendo de Junho de 1975 registou uma afluência decente de 65% e uma maioria robusta de ⅔ dos votos em favor da adesão, adesão essa que já tivera lugar, mesmo assim, quase dois anos e meio antes. Curiosamente, o partido que se mostrava mais dividido nessa época quanto à atitude a tomar fora o trabalhista, então no governo, e foi Harold Wilson o primeiro-ministro a fazer o show-off para consumo doméstico de renegociar as condições de adesão que haviam sido originalmente acordadas pelo governo conservador de Edward Heath. Quando David Cameron apareceu em Fevereiro deste ano a negociar um estatuto especial para o seu país, apenas estava a fazer uma reencenação de uma história de 41 anos. Convinha que isso tivesse sido mais lembrado.
Uma outra questão que se tem estado a perfilar como progressivamente mais importante ao ritmo dos resultados das sondagens é o das consequências da saída do Reino Unido da União Europeia. Aqui, e ao contrário do referendo de Junho de 1975 que, mesmo assim, é referido com alguma regularidade na comunicação social britânica (embora muito menos por cá), não consegui encontrar quem se tivesse referido ao precedente da saída da Groenlândia da CEE. Que raio, é apenas a Groenlândia, não é um grande país, mas apenas a região autónoma de um pequeno (a Dinamarca). Só que, desde 1979 e reforçado por um referendo que teve lugar em 1982, a verdade é que a Groenlândia deixou de fazer parte da União Europeia, mesmo continuando a fazer parte da Dinamarca. Foi uma deserção tão suave que mal se deu por ela. Uma das questões que mais acirrou a secessão - aspecto a que também somos sensíveis - foi a questão da soberania sobre as suas águas territoriais. Não é crucial, mas reconheça-se que esta deserção nórdica, conjugada com a recusa sucessiva (por duas vezes: 1972 e 1994) da Noruega em fazer parte da União, estraga severamente aquela imagem propagandística da instituição comunitária como um El Dorado de que todos querem fazer parte. Mas o tom dominante entre a opinião publicada é o de pré-tragédia em caso de separação e escrever sobre secessões que acabaram por correr bem é desaconselhável: a quem interessa lembrar que entre 1963 e 1965 Singapura fez parte da Malásia, para depois se separarem acrimoniosamente, e que hoje os dois países se contam entre os mais prósperos da Ásia e mantêm relações diplomáticas normais?
Quanto ao assunto concreto em si e para onde vão as minha simpatias, começo pelas evidências: sendo parte remotamente interessada, não sou parte interveniente, o que me desresponsabiliza do que decida. Na verdade, não vou decidir nada, nem sequer voto. É como a participação da selecção portuguesa no Euro 2016: vibrar com a nossa selecção mais não esconde do que a nossa incapacidade de interferirmos no seu desempenho. Mas, mais do que uma simpatia pelo Brexit, o que tenho sobretudo é uma profunda antipatia pelo Bremain e pela propaganda que lhe está associada. Já cultivei a ilusão que a sanção da saída do Reino Unido poderia vir a ter um efeito colateral (benéfico para Portugal) sobre a conduta de Bruxelas. Mas parecem acumular-se indícios que não é nada disso que vai acontecer. A propósito de muitas análises que já li sobre este assunto, há por aí uma ideia errada de que as grandes convulsões europeias foram resultado de políticos bem intencionados a oporem-se a políticos mal intencionados. Que foi assim que começaram as Guerras Mundiais. Mas não é verdade. A Alemanha não invadiu a Polónia para começar a Segunda Guerra Mundial. A Alemanha estava convencida que, depois da assinatura do seu acordo com a União Soviética, a França e o Reino Unido não teriam coragem de lhe declarar guerra quando forçasse a entrada na Polónia (como já fizera antes na Áustria e na Checoslováquia). Só que a Alemanha se enganou. Sabe-se o resto. A grande e feliz diferença é que agora não vão morrer milhares por causa disso, mas as certezas que se lêem por aí parecem tão assertivas e tão diáfanas quanto as de 1939.
Muito bem lembrado, a "assimetria de informacao" que vai sendo publicada pela comunicacao social afora, mais ou menos compreensivel em Portugal, se bem que para mim, muito surpreendente ver gente a avancar argumentos, obviamente pre-fabricados e pre-digeridos no seio da campanha remain como se fossem seus o que e um absurdo obviamente, porque do ponto de vista portugues a analise deveria ser sobre as consequencias PARA PORTUGAL dos resultados do actual referendo. E como e que Portugal se deveria eventualmente posicionar no seio da UE, em caso do RU votar pela saida, durante a profunda crise politica que se seguira.
ResponderEliminarQuanto Gronelandia e Noroega, bem sei que e dificil de se saber estando em Portugal mas sao assuntos que ja foram abordados na campanha interna no RU, geralmente levantado pela campanha remain - no caso da Gronelandia a dizer que mesmko para um territorio irrelevante como esse o processo de saida demorou 10 anos a ser concluido contraponto dos optimistas 2 a 5 anos apontados pelo leave para as negociacoes de saida do RU. Quanto a Noroega, geralmente para dizerem que eles estao fora mas tem de cumprir todas as regras comunitarias... limito-me aqui a transmitir as mensagens emitidas, eu nao concordo com elas.
Pela minha parte sou pelo Brexit - e pelo Brexit votei. Tenho pena que tanto a campanha leave como remain sejam dominadas por argumentario e ideologia neoliberal e de extrema direita, incompetencia da esquerda e do Labour que estao a bracos com contradicoes irreconciliaveis porque sonham com uma reforma da UE que nao e possivel com a arquitectura que foi feita.
Enfim, argumentario do Leave - ou melhor o oficial, aquele que arrasta a maioria do eleitorado pode-se ler no site do UKIP, ou nos blogues pessoais do Michael Gove, Boris Johnson ou Ian Duncan Smith. Argumentario de esquerda - que tambem existe e emerge aqui e alem - e que e extremamente dificil de ver, tem de se procurar partidos ou correntes partidarias muito mais minoritarias no seio do SNP do Labour e outros partidos mais pequenos do panorama politico britanico.
De notar que o voto Leave relanca a possibilidade do referendo escoces. A Escocia votara esmagadoramente pelo remain - duvidas quanto a numeros - mas entre 60 a 70% do eleitorado escoces e pelo remain. Nestas condicoes, se o voto das outras regioes "arrastar" a Escocia para fora da UE, havera uma grave crise de legitimidade. Por outro lado o parlamento de Westminster e soberano, referendos desse tipo, para serem legitimos tem de ser ratificados por Westminster - se o Leave ganhar, Cameron tera de se demitir, a questao , como se diz no RU e se se demite 3 minutos ou 3 horas depois dos resultados anunciados... nessas condicoes, de turbulencia politica interna, em que no curto prazo o novo primeiro ministro sera alguem como o Boris Johnson, populista londrino mas fortemente condicionado pelo UKIP ultramontano, direita reacionaria e acima de tudo verdadeiro vencedor do referendo, nao e de todo certo que um novo referendo quanto a questao escocesa seja aprovado.
Mas tudo isto que escrevo e, no fundo, nada mais que espuma dos dias do ponto de vista portugues. Regressando ao ponto do seu post a minha resposta e que, apesar da pergunta que o seu interlecutor fez e interessante e relevante do ponto de vista britanico, e um "moot point" do ponto de vista portugues. Em portugal, a(s) pergunta(s) que se deveria(m) fazer sao:
1 - quais as consequencias para a UE de cada um dos resultados
1.1 - sera que a expressao da vitoria de qualquer dos lados modula a resposta anterior?
2 - Quais as consequencias directas para Portugal das conmsequencias a nivel comunitario que qualquer dos resultados do referendo terao?
3 - Como deve Portugal se comportar perante os resultados?
E por ai fora nesta linha de raciocinio.
Esta e a minha modesta opiniao. E por aqui fico que ja escrevi demais.
Agradeço-lha. Complementa muito bem (talvez melhor d)o que escrevi e numa perspectiva de quem acompanha o assunto directamente e como parte interveniente. Constato pelo que me diz que, felizmente, o debate é mais aprofundado do que os ecos dele que aqui chegam.
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