13 junho 2016

O JOSÉ GOMES FERREIRA LÁ DO SÍTIO

Explicar aos portugueses quem é François Lenglet (acima, à direita) pode simplificar-se: é uma espécie de José Gomes Ferreira em versão francesa. Em vez da SIC trabalha na France 2 mas é a mesma reputação de jornalista especializado em economia de estilo assertivo, de quem nunca tem dúvidas. A pessoa que com ele contracena na figura acima e no vídeo abaixo é Jean-Luc Mélenchon, a coqueluche política de uma certa esquerda intelectual francesa, os últimos vestígios soixante-huitards. Não tivesse a cena que vou narrar decorrido com ele e existiriam suspeitas fundamentadas que toda ela teria passado desapercebida. Numa entrevista televisiva de há umas duas semanas (abaixo), Lenglet confrontou o seu convidado Mélenchon com as actuações de três políticos internacionais que o segundo afirmava admirar: Chávez da Venezuela, Morales da Bolívia e Tsipras da Grécia. No novo estilo de jornalismo televisivo a que por cá também já nos habituámos, Lenglet também não pediu as opiniões de Mélenchon sobre os três políticos, deu-as ele próprio, porque neste figurino o que compete ao convidado é o trabalho de refutar as opiniões do anfitrião: ...dito de outra forma, (os três são) alguém que precipitou a falência do seu país, um corrompido e um traidor social. No seu estilo, mais exuberante que consequente, Mélenchon contra-atacou de imediato: ...meça as palavras senhor Lenglet, você é sem dúvida mais corrupto do que alguma vez será o Evo (Morales). A tréplica de Lenglet manteve o nível: ...não retiro nada do que disse, a namorada de Morales, que é a mãe do seu filho, beneficiou de encomendas do Estado de 500 milhões de dólares. Não me venha dizer que acha isto normal. Até Mélenchon se render: Bom, de acordo, tem razão.

A chatice é que, concedendo-lha, Lenglet não teria a razão toda que pretenderia ter, apesar de Mélenchon ser afinal incapaz de o desmentir. Como se pôde ler na época em que a história se tornou conhecida, no princípio de 2016, a namorada terá namorado muito pouco com Morales e o namoro aconteceu em 2007, há nove anos, o filho de ambos morreu ao nascer, a empresa que ganhou os 500 milhões de contratos é uma empresa de capitais chineses e não de interesse obscuros representados pela namorada, os diversos contratos foram escrutinados judicialmente e nada de anómalo se descobriu neles, a história serviu sobretudo como arma de arremesso político contra Evo Morales quando este disputou um referendo (que perdeu) em Fevereiro deste ano, referendo esse que pretendia prolongar a sua presença na presidência. Não é de estranhar que a embaixada da Bolívia tivesse reagido desagradada a tanta ignorância dita de forma tão assertiva. Mas o episódio também serviu para escrutinar a densidade das opiniões de Jean-Luc Mélenchon - sobre pessoas que ele afirma admirar! Gesto mais inédito, pelo militantismo implícito, foi a iniciativa de promover uma petição para o despedimento de François Lenglet. Sobre o gesto, compartilho opiniões que li sobre a sua inocuidade: tiram de lá um e põem lá outro que se vem a revelar tão parcial quanto o anterior; só a parcialidade é que pode ser de simpatia política diferente. O futuro destes programas políticos, em França como cá, consiste em reduzir-lhes progressivamente a seriedade até ao burlesco, como o sucesso de um formato como o do Governo-Sombra. Repare-se como, ao contrário das de José Gomes Ferreira, ninguém presta atenção às patacoadas de João Miguel Tavares.

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