23 junho 2016

HÁ PRECISAMENTE CINQUENTA ANOS VIVIA-SE OUTRO MOMENTO «ASSUSTADORAMENTE HISTÓRICO», COMO O DO REFERENDO BRITÂNICO

Há precisamente cinquenta anos, 23 de Junho de 1966 (por coincidência também uma Quinta-Feira), pelo Mundo ainda se digeria (mal) a ressaca do anúncio feito três meses antes pelo general de Gaulle, presidente da França, que a partir de 1 de Julho desse ano, o seu país iria abandonar a estrutura militar da NATO. Não perdendo o balanço, a França solicitara ainda aos Estados Unidos que evacuassem as bases militares que, ao abrigo dos acordos da organização, aquele país mantinha em território francês. E, para acrescentar uma demão suplementar às tintas do desaforo, a 20 de Junho, o presidente francês iniciava uma visita de Estado (e de estadão) à União Soviética, o inimigo figadal do Ocidente contra o qual a NATO fora originalmente criada. A cumplicidade entre visitantes e visitados, o interesse de ambos numa publicidade desmesurada dada à iniciativa, fez os segundos mobilizar as tais massas populares como só os regimes socialistas sabiam mobilizar: numa das suas capas, a revista Paris-Match anunciava em rodapé que houvera 800.000 moscovitas nas ruas para receber o general de Gaulle. Mas o que me interessará mais aqui destacar foram as reacções em Portugal e do resto do Mundo. A capa do Diário de Lisboa de há cinquenta anos (acima) dava nota de um dos eventos da visita, um acordo espacial, mas o destaque (e o interesse) vai todo para um editorial assinado pelo jornalista Carlos Ferrão (1898-1979). Porque se torna difícil de o ler no original transcrevi-o mais abaixo na íntegra. Recomenda-se a leitura, por causa do alarmismo atribuído às consequências da decisão francesa e mesmo pela invocação do fantasma da reversão das alianças da guerra-fria. Hoje é evidente quanto aquela análise foi exagerada e inconsequente: de Gaulle não virou comunista nem sequer seu aliado. Mas é precisamente aquele mesmo género de análise jornalística, tremenda nas suas consequências, que tenho lida brandida repetidamente a propósito das consequências (vastas) se houver uma opção dissonante causada pelo referendo britânico (ou seja, se houver Brexit), acto eleitoral que se realiza, nem de propósito, cinquenta anos depois.
A Segunda Viagem
Em Dezembro de 1944 de Gaulle esteve em Moscovo acompanhado por Georges Bidault, então ministro dos Negócios Estrangeiros, que foi um dos promotores do golpe de Estado de 13 de Maio de 1958, o qual preparou o regresso daquele ao Poder. Bidault encontra-se exilado no Brasil. Assinou-se então o tratado franco-soviético, que devia ser, no pensamento dos seus autores, a reedição das alianças celebradas entre a França e a Rússia para conjurar o perigo alemão. Em vez desse resultado foi (sic), por duas vezes, a guerra, que teve por epílogo a derrota da Rússia na primeira e da França na segunda. De Gaulle é certamente o último francês a pensar que o regresso a esse método ultrapassado daria melhor resultado no nosso tempo. A sua segunda viagem a Moscovo não é a repetição da anterior e os seus efeitos, em caso algum, serão os mesmos.

Ao abandonar a Aliança Atlântica não foi apenas o princípio da integração que ele repudiou, mas também o da aliança militar que nela se baseava. Para lançar a semente da revisão política e estratégica que iniciou, fazendo sair a Europa e o Ocidente do ponto morto da guerra fria, de Gaulle não pode querer substituir uma aliança por outra, nem aceitar, em vez da integração que interpreta como subordinação aos Estados Unidos, a subordinação da França à União Soviética, pois outra coisa não seria a renovação do pacto franco-soviético de tivermos em conta a desigualdade existente entre os dois países. A sua visão do futuro é por vezes impregnada das evocações do passado, mas seria absurdo que quisesse preparar o primeiro moldando-o pelo que de pior teve, para a sua pátria, o segundo.

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