20 abril 2022

O EFEITO DE ATIRAR UMA PAPAIA AO AR

Não sei se já repararam, mas é instintivo. Quando se atira uma papaia (ou qualquer outra futura madura) ao ar, e depois se recolhe a mão sem manifestar intenção de a apanhar de volta, há sempre alguém que o faz por nós. É tudo uma questão de técnica: lançá-la suficientemente alto para que os outros vejam bem a papaia, esconder ostensivamente a mão para que esses mesmo percebam claramente que a não vamos recolher. Ser uma papaia ou um outro fruto muito colorido ajuda, porque chama a atenção. Porém, a papaia não pode ir muito alto, porque dessa maneira dá tempo para que os outros se interroguem porque razão não somos nós a apanhar a papaia que atirámos. Ora bem, o mesmo efeito acontece com certas frases. Só que a nuance não está na altura do voo da papaia, mas no cuidado como a frase é dita. Se feito com subtileza, escapa-nos a estupidez inclusa. Observemos esse efeito papaia no habilidoso título da entrevista dada hoje por António Horta Osório ao Público (abaixo). Quem é que se mostra «satisfeito com um rendimento médio de 1100/1200 euros por mês»? Melhor: que figura é essa do «como país» a que ele se refere? Os países têm estados de alma, de satisfação e insatisfação com os rendimentos que auferem, é isso? Os luxemburgueses são ambiciosos, os burquinabês são calaceiros? Este é o género de conversa da treta que aponta deficiências mas não explica nada, não justifica nada, é apenas o preliminar da buzzword que o entrevistado vai tentar impingir na entrevista: «ambição». Mas a habilidade consistirá em sugerir que o que ali lemos resulta de reflexão apurada. Na verdade, Portugal encontrava-se no 37º lugar na lista dos rendimentos per capita de 2020, isso é que é factual. Como é que Portugal poderá subir relativamente nessa lista é assunto mais aprofundado do que uma «buzzword» de circunstância. O que consta da entrevista é só um exercício de fingir que se dizem coisas interessantes, um malabarismo com papaias ou com os frutos que se quiser.

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