24 abril 2022

A PERSISTÊNCIA DA FURTIVIDADE DA OPERAÇÃO «URSO FURTIVO»

Os utilizadores da Wikipedia sabem quanto a versão dela em inglês é muito mais desenvolvida que as outras versões noutros idiomas (englobando 4,8 milhões de artigos versus quase 2,0 da edição sueca, surpreendentemente a que se situa em segundo lugar). Por isso, é algo rara a existência de artigos na Wikipedia de que não exista uma versão em inglês. Mais raro ainda é que isso aconteça quando o artigo em causa envolve anglófonos – no caso, norte-americanos. Pois bem, é isso mesmo que se passa com o incidente decorrido há mais de vinte anos no Peru, a propósito de uma operação que os norte-americanos terão baptizado na altura por Furtive Bear (Urso Furtivo) e passados todos estes anos permanece semi-furtiva, já que a narrativa dos acontecimentos apenas está disponível na Wikipedia em espanhol (acima) com a visão da perspectiva peruana do incidente.
Reproduzindo em parte o que mais acima consta do artigo da Wikipedia, em 24 de Abril de 1992, um avião C-130 (acima), que depois veio a ser identificado como norte-americano com uma tripulação de 13/14 militares a bordo, foi localizado pelos controladores aéreos peruanos a sobrevoar uma região de plantações de coca situado nos vales do Alto Huallaga. Instado a identificar-se o avião não apenas não reagiu como assumiu uma trajectória evasiva. As suspeitas peruanas de que se tratasse de um avião de traficantes combinaram-se com um período de relações políticas bastante tensas entre os Estados Unidos e o Peru. Não havendo qualquer solicitação formal dos primeiros para a realização de qualquer operação em território peruano, as autoridades peruanas sentiram-se à vontade para que a sua Força Aérea fizesse descolar dois Sukhois Su-22 de concepção soviética (abaixo) para interceptarem o avião que sobrevoava clandestinamente o seu espaço aéreo. Entretanto este, obedecendo às ordens da base de origem situada no Panamá, dirigira-se para o mar afastando-se o mais possível da costa peruana antes de inflectir para Norte, regressando à base. A intenção era afastar-se o mais rapidamente possível das suas águas territoriais, fora da jurisdição peruana. Fazia-o há poucos minutos, numa rota já afastada 60 milhas da costa, quando os dois Su-22 alcançaram o C-130. Aqueles fizeram-lhe o sinal internacional para os seguir e do Panamá veio a ordem ao piloto para os ignorar, uma daquelas corajosas decisões que se tomam muito mais à vontade da solidez das instalações de uma torre de controlo do que dentro de um avião: os Sukhois alvejaram o C-130. Os tiros furaram a fuselagem do aparelho, causando uma descompressão interna que sugou para o exterior um dos tripulantes. Além desse morto, outros seis membros da tripulação ficaram feridos nos repetidos ataques dos Sukhoi. Foi em muito mau estado, com um dos motores em chamas, em situação de emergência que o C-130 aterrou numa pequena base aérea militar do Norte do Peru. Aí os peruanos descobriram que se tratava de um avião transportando vários dispositivos de espionagem.
O resto do incidente foi um jogo caricato praticado pelas diplomacias dos dois lados, carregado de apontamentos de hipocrisia. Os peruanos alegaram o C-130 estava mal identificado e que o haviam considerado como um avião a realizar tráfico de cocaína. Os norte-americanos, por sua vez, notaram que o C-130 é um avião militar, improvável de ser usado por narcotraficantes. Os peruanos perguntaram, pelo seu lado, o que é que o avião andava a fazer no espaço aéreo peruano e porque não haviam sido notificados da sua missão. A isso os norte-americanos não respondiam mas sugeriam que as próprias chefias militares da Força Aérea peruana estariam corrompidas. Os pilotos peruanos foram condecorados, os norte-americanos indignaram-se e instaram o Peru a indemnizar a família do sargento Joseph Beard, Jr., que morrera. Como contrapartida (ou retaliação...), os peruanos apresentaram-lhes a factura dos custos de intercepção (US$ 20 mil) e não autorizaram a partida da aeronave sinistrada sem que aquela fosse liquidada. A lista das provocações é mais extensa mas, 30 anos depois, a Wikipedia parece apontar que os norte-americanos terão mais razão para se envergonhar do incidente do que os peruanos.

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