29 novembro 2020

A DEMAGOGIA EM TORNO DA DEMAGOGIA

Uma das maneiras mais descaradas de se ser demagógico, e que Helena Matos utiliza no raciocínio acima, é a de começar a sua versão da história pelo momento que lhe é mais conveniente. Convém lembrar que «a demagogia em torno da violência policial» foi precedida pela demagogia em torno da actuação policial. E recordar que, nos Estados Unidos, a série televisiva Cops começou em 1989 na Fox e que já se vai na sua 32ª época (com 1103 episódios!). Uma série onde já se sabe, de antemão - demagogicamente, que isto da demagogia funciona para os dois lados - que em todos os episódios os polícias são sempre bons e que os outros são sempre maus. Uma série que, de tão antiga e tão difundida, eu aposto que Helena Matos já deva ter visto, embora desconfie, pelo título que acima escreve, que a ela lhe possa ter escapado esse outro lado pró-policial da demagogia.
E talvez esta perenidade da série Cops a ajude a compreender o carácter peculiar da profissão policial e responder-lhe às perguntas que acima coloca, quando compara a dos polícias a outras profissões. É que eu não conheço série norte-americana equivalente denominada (hipoteticamente) Docs ou Judges em que se transmitissem cenas dramáticas nas urgências de um hospital ou numa sala de audiências. Reconhecendo-se o corporativismo arreigado de qualquer dessas corporações, tão escandalosamente parcial quanto o da corporação policial, constata-se contudo que as suas más práticas parecem não suscitar paixões sociais tão inflamadas quanto as das más actuações policiais. E, por falar nestas últimas, recordemos ainda que o exemplo documentado em vídeo mais antigo e famoso (mais uma vez na América) é o do enxerto de porrada arriado a um condutor negro chamado Rodney King em 1991.
E recorde-se ainda que foi a absolvição em tribunal dos quatro polícias filmados acima a bater em King que esteve por detrás dos distúrbios em Los Angeles em Abril de 1992. Mas será preciso esperar pelo menos mais uma década e meia para que a proliferação dos telemóveis com capacidade de filmar tornasse a guerra entre as duas demagogias simétrica. Exemplos de má conduta policial têm agora uma capacidade de difusão, graças aos canais da internet, que se podem vagamente equivaler às actuações policiais irrepreensíveis da série Cops (e equivalentes) nos canais da Fox. O resultado do que aparece publicado em canais do YouTube como Audit the Audit são episódios de uma relação real da América com a sua polícia que os mais de mil episódios da série rival nem sequer afloraram. Desconfio que a polícia americana não são apenas alguns dos broncos que aparecem nos vídeos de Audit the Audit.
Mas também o são. E os repórteres do programa Cops da Fox tiveram 30 anos para mostrar esse outro lado e (não por acaso) nunca o fizeram. O remate de toda esta história é aquela nossa tradicional predisposição para seguir as modas da América, agora em clima de se desforrar da polícia. Mas, para regressar aonde começámos, o que não se ponham são as pessoas do jaez ideológico de Helena Matos a armarem-se em sonsas, como se descobrissem que a demagogia crítica a respeito da conduta das forças policiais começou só há poucos anos, apenas quando passou a haver estas novas oportunidades técnicas de os filmar a cometer aqueles pecados que antes se escapavam, jamais comprovados, muito menos sancionados.  

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